quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

CONTOS

No sertão da Solidão


Nasci no sertão de meu Deus, perto de uma curva do Rio Solidão, lá pros lados da Serra da Borborema.
Criado ouvindo o gemido da ema, o mugido do gado faminto e as lamúrias e ladainhas de minha avó.
Filho do nada e de Inalda, moça bonita que partiu para o Rio de Janeiro e morreu no cais do porto.
Assassinada por um estivador apaixonado. Enterro de pobre, vida de pobre, prostituta envelhecida precocemente.
Boi, gado, boiada, fome...
A vida me maltratando com as esporas do destino cravadas no lombo, a mão pesada do patrão, as marcas das amarras e das surras. Moleque matreiro, boi indomável, dei muitas e muitas rasteiras no corisco do azar.
Mas o pequeno boiadeiro cresceu, virou o rei da vaquejada naquelas terras, terras do Coronel Antonio Carlos, velho cruel e protetor.
Os amigos eram protegidos, mas os desafetos, bala e carabina, fuzil e estricnina, morte e sofrimento.
Varrendo todo o sertão da Bahia, égua baia, vida baia, no cocho da esperança, o sal penetra fundo e inunda de sede quem tenta a sorte.
Rei das vaquejadas, meu futuro estava traçado, montando os cavalos bravos e rompendo o sertão de Minas, lá no Jequitinhonha, acabando no mar, como o Riacho que norteava a vida, o riacho da Solidão.
Seu moço, não quero agradar a ninguém, se quiser pode ir embora que não me importo não, mas se quiser me conhecer, é melhor preparar o estômago e agüentar o tranco.
Filho de prostituta e do nada, sou víbora também, não sei suportar arreio, de tanto chicote não temo mais nada, nem a espora dos coronéis nem os anéis das Marias nem das Joanas.
Quero, antes, a liberdade do vento na cara. Essa marca nas costas lembra um A, mas não é marca do gado que não sou mais, é marca do chifre do touro bravo que montei, sangrando.
Liberdade, me falam que estás na bandeira mineira, eu acredito, pois é a minha bandeira, ainda que demorada.
De morada fiz o meu mundo nessa terra sem dono, sem rei, meu reinado.
Meu mundo é o novo, onde não existe mais gado, nem laço, sem cansaço e servidão.
Sem serventia, sem valentia, somente o vento na fuça, o vento tragando tudo. Me inundando de alegria.
Não quero ser coronel, nem quero coronel, não quero jagunço, nem gado e nem montaria.
Quero poder voltar para o Rio da Solidão, buscar minha avó, encontrar Inalda, minha mãe, atravessar o caminho do estivador no cabaret da praça Mauá, quero poder ser de novo um menino, sem marcas e sem esporas.
Quero ser o rei, reinado de menino, reisado e romaria, rota nova, vagando pelo sertão.
Ser tão e tão ser, certo no incerto da vida.
Espera sem espora, sem expor a cara pra tanto tapa. Tapados os olhos, os óleos sagrados de Deus nas costas, onde o A da cicatriz sumiu. Os calos da mão sendo substituídos pelos claros do caminho.
Viver em disparada, sobre meu cavalo correndo pelo sertão, desse reinado sem rei...

João Polino e os Morcegos

A noite, na roça, tem mistérios que justificam a afirmativa de Shakespeare de que “há mais mistérios entre o céu e a terra do que imagina nossa vã filosofia”.
Esse famosa frase do maior teatrólogo de todos os tempos, nunca chegou aos ouvidos de João Polino mas, o seu significado, era compreendido pelo mesmo que sempre dizia; “ nesse mato tem coelho”...
Vez em quando, na época em que começara a namorar sua amada Rita, João era obrigado a viajar por quilômetros e quilômetros a pé ou a cavalo para encontrar-se com sua amada.
A noite de Santa Martha era iluminada pelos candeeiros acesos e pelas lamparinas de querosene que deixam um certo aspecto fantasmagórico no povoado.
Bruxuleante, isso, bruxuleante, de bruxos e bruxas.
Bruxas como a Zefina Capadócia, famosa pelas curas e feitiços, desde amarrar o futuro de uma pessoa até abrir os caminhos de outra.
Dona Rita, católica fervorosa, não acreditava em nada disso mas, João Polino, que acendia uma vela pra Deus e outra pro diabo, não tinha dúvidas; a mulher era feiticeira mesmo, e das brabas...
Um dia, muito tempo depois disso, já com três filhos e esperando o quarto, dona Rita apareceu com um quadro esquisito.
Tossia e tossia, vez em quando chegava a vomitar. Aquela catarreira toda, denunciando um quadro pulmonar ligado ao excesso de poeira. Não chovia faziam alguns meses e a situação estava ficando calamitosa.
João, depois de ter ido à Igreja e pedido as bênçãos do Padre, sem resultados, resolveu, escondido de dona Rita, procurar a feiticeira.
Essa, esperta como ela só, e sabedora da baixa umidade que estava afetando o distrito e sabendo que, em situações parecidas, na capital emergente do país, Brasília, as pessoas resolviam o problema colocando uma bacia com água debaixo da cama, explicou a João o que teria que fazer para melhorar o quadro alérgico de Dona Rita.
Obviamente, não cobrava nada pelas consultas e pelos conselhos mas, como o caso era de difícil solução, explicou a João o que precisava ser feito.
Teriam que conseguir uma bacia repleta de urina de morcego para ser colocada por cima do guarda roupa , disfarçadamente, sem que dona Rita soubesse, para que funcionasse a magia.
João, entre crédulo e desesperado, já que tudo o que tinham ensinado não tinha adiantado, aceitou a sugestão e foi à caça dos morcegos.
Até que encontrou uma quantidade razoável dos mamíferos voadores, mas encher um balde de urina de morcego, convenhamos, é difícil até para o nosso engenhoso herói.
Dona Zefina, entendida dos assuntos extra terrestres e para normais, disse ao nosso amigo que, por uma módica quantia, poderia conseguir um pouco da tal urina, que era o último balde que ela possuía, essas coisas...
João, aceitou imediatamente tal oferta e retornou para casa, escondendo o pequeno balde e, sem que ninguém percebesse, escondeu-o em cima do guarda roupas, atrás de umas peças do enxoval de Maria, sua filha mais velha...
Passa um dia, passam dois, três, uma semana...
O cheiro da urina estava impregnando o quarto todo, e a casa começara a sentir os efeitos do “trabalho” ordenado pela bruxa...
Dona Rita estando nos últimos dias da gravidez, não poderia fazer nada, cabendo aos meninos, Maria e Joãozinho, o trabalho de limparem a casa...
E lava pra cá, esfrega pra lá e a catinga não desaparecia de forma alguma.
Claro que ajudada por uma frente fria que trouxe uma semana de chuvas contínuas e salvadoras, a “gripe” de dona Rita melhorou mas, a fedentina continuava, piorando a cada minuto que passava.
Até que, a vida tem suas coincidências que são, deveras, salvadoras, uma amiga de infância de dona Rita apareceu para visitar a família.
Após os preparativos e metade de um vidro de perfume gasto, a visita quis ver o enxoval de Maria.
Seu João tentou disfarçar mas dona Rita foi incisiva. Nessas alturas do campeonato, Joãozinho já tinha pego uma cadeira e estava subindo para pegar as peças do enxoval.
João Polino, preocupado, resolveu tentar impedira a ação do filho mas, era tarde demais.
Quando Joãozinho estava puxando os lençóis, fronhas e colchas, ao ouvir o berro de Seu João, assustou-se.
O balde veio junto e foi um festival de xixi caindo sobre todo mundo, principalmente sobre a visita curiosa.
Xixi não, urina fermentada e devidamente concentrada.
João Polino, mais que depressa, saiu do quarto e tentou se esconder da ira de Dona Rita; Maria, por outro lado, ao ver as peças do seu enxoval empapuçadas com aquela substância asquerosa, começou a chorar e xingar, xingar e se maldizer, se maldizer e chorar...
Joãozinho, todo molhado, com os cabelos grudados, passava a mão na cabeça e lamentava-se.
A visita foi embora jurando nunca mais voltar àquela casa de loucos...
E a morcegona, digo, Dona Zefina, pagava as contas na vendinha do seu Joaquim, feliz da vida...

Incêndios e Demônios

Todo menino é um rei, rei das suas ilusões, de seus fantasmas e de suas reinações.
Gilberto não era exceção, moleque correndo solto pelas ruas estreitas de terra batida da Santa Martha de João Polino...
Um dos brinquedos favoritos das crianças da zona rural é a confecção de caveira de abóbora. Quem nunca morou em cidade pequena, provavelmente não conhece a alegria que dá em assustar as pessoas, principalmente com as ditas caveiras, numa alegoria parecida com a dos dias das bruxas, um dia das bruxas acaboclado.
Pega-se uma abóbora, retire todo o seu miolo, corte a casca de forma que pareça um rosto e coloque uma vela dentro e é só esperar o resultado.
Estávamos em pleno mês de agosto, mês de cachorro doido.
A seca se arrastando há longos dois meses e o mato seco, totalmente esturricado. Nem sombra de nuvens no céu, uma verdadeira seca.
Pois foi nesse cenário que Gilberto resolveu fazer a sua caveira de abóbora, escondido de dona Rita, obviamente...
Um adendo, não se soltam tantos balões no interior quanto nas grandes cidades, eu mesmo fui ter maiores contatos com os balões riscando os céus no Rio de Janeiro, apesar de ser mineiro do interior. As queimadas são assustadoras e os balões, justamente por esse motivo, são evitados.
Mas, voltando ao nosso causo, encontramos com a meninada de Santa Martha capitaneada por Gilberto, em pleno alvoroço com os preparativos das estripulias daquele dia.
Catar uma vela de dona Rita foi fácil, já que a mesma, como toda boa devota, tinha sempre uma vela de estoque, além do fato da energia elétrica, recém chegada a Santa Martha não era muito confiável.
Pois bem, noite alta, e a caveira pronta.
Pronta e assustadora. Realmente os meninos tinham caprichado na confecção do artefato.
Entre os moradores de Santa Martha, tínhamos alguns que já nem ligavam mais para essas brincadeiras mas, dona Ziquinha estava com visitas em casa, uma prima do Rio tinha chegado há alguns dias e trouxera a tira colo, uma amiga carioca, desacostumada, pois, com as traquinagens interioranas.
A tal amiga era uma senhora assustadiça e neurótica, estava até fazendo tratamento com um psiquiatra e fora aconselhada por este a passar uns dias num local tranqüilo.
Esse era o principal motivo que a levara a Santa Martha, onde o cheiro do mato, o gosto da broa de milho, o café de guarapa, a paçoca, a galinha ao molho pardo, os ovos caipiras e a comidinha feita no fogão a lenha eram reconfortantes.
Acontece que, apesar do silêncio interrompido somente pelos grilos, corujas e sapos, a nossa visitante não estava tendo os resultados desejados.
Passando alguns dias, dona Ziquinha aconselhou a sua amiga a dar umas voltas, quem sabe o ar da noite poderia ter algum efeito sobre a melancolia que atingia Maria das Graças.
Estava Gracinha caminhando serena e calma pelas ruas quando, de repente avistou a imagem fantasmagórica de uma cabeça sem corpo brilhando e rindo para ela.
Assustada, pegou uma pedra e atirou contra a escultura dos meninos.
A caveira caiu ao chão imediatamente, levando a vela acesa com ela.
Vela acesa em mato seco, imaginem o mafuá.
Corre corre para cá, o fogo alto invadindo os quintais das casas, dona Rita e João Polino com baldes de água na mão.
Ritinha chorando e rezando, Oracina, por outro lado orando e “amarrando” o demônio do incêndio, um alvoroço absoluto!
Enquanto isso, Gilberto, meio sem graça, se escondeu num beco onde encontrou a desesperada Gracinha.
A partir daquele dia, Beto arranjou uma defensora sem igual, pois nada tirava da cabeça da pobre senhora que o culpado dessa confusão era o próprio demônio que, disfarçado de caveira, ao ser atingido pela pedrada disparada por ela, se vingou ateando fogo no matagal.
O psiquiatra da pobre mulher se arrepende até hoje da péssima idéia de mandar a paciente ir para o interior a procura de paz e descanso...

Quem vê cara...

Ritinha era muito gulosa e isso tinha suas conseqüências. Adorava frutas, qualquer tipo de fruta. Principalmente jabuticaba.
Não sossegava enquanto não se empaturrava dos pequenos frutinhos saborosos e suculentos,
Dona Rita tinha cansado de avisar que não engolisse os caroços; e Ritinha obedecia fielmente.
Outra fruta que gostava muito era goiaba; tanto da branca quanto da vermelha; muitas vezes ignorava se tinha ou não os costumeiros bichinhos que iam parar no estômago da voraz petiz.
Ibitirama estava crescendo e isso significava melhoria da saúde e da educação. A inauguração de um pronto socorro tinha sido motivo de vários dias de festa, com a presença do Secretário Estadual de Saúde, inclusive.
Entre os médicos que começaram a trabalhar no pronto socorro havia alguns bem famosos, como o doutor Norton Fagundes e o doutor Pedro Elias, lá de Guaçui.
Havia também uma jovem médica, vinda de Vitória, dona dos seus vinte quatro anos de idade e zero de experiência.
Impecavelmente vestida, usando um jaleco todo branco, daqueles que são obtidos com muito anil e muita força nos braços da lavadeira.
Naquela tarde haveria a inauguração oficial do Pronto Socorro e a doutora estava mais do que nunca, enfeitada e limpa, impecavelmente limpa.
Paralelamente lá em Santa Martha, totalmente alheia aos festejos, Ritinha dona dos seus seis anos e de um rosto angelical cobertos por um cabelo louro e com bochechas rosadas, um exemplo raro de beleza e inocência.
Inocência e teimosia, naquele dia fizera a festa. Comera goiaba e jabuticaba até não poder mais.
Tão empolgada estava que nem reparou nas sementes, devoradas com toda a sofreguidão possível.
Depois de tal repasto, não deu outra. A barriga começara a doer, e doer muito.
Dona Rita até que tentou paliar levando ao farmacêutico local mas, em vão.
Esse então, se lembrou que o Pronto Socorro já tinha sido inaugurado.
Dona Rita, toda envergonhada, pegou a menina e desceu com ela para Ibitirama.
A festa estava animada, com banda de música e tudo mais.
Ao ver Ritinha chorando e gritando de dor, o enfermeiro de plantão querendo mostrar serviço, mandou dona Rita entrar que a doutora Lenice iria atender a menina.
O Secretário de Saúde, ao ver a beleza da menina se encantou e, médico que era, resolveu ajudar a pobre garota.
A doutora, por sua vez, doida para mostrar serviço, se apressou a chamar a pequena paciente para ser atendida.
Ao saber do motivo da dor, não se fez de rogada; pediu para que a menina ficasse de quatro e começou, com uma pinça, pacientemente, a tirar semente por semente o enorme bolo fecal que se formara.
Num certo momento, a montanha começou a dar sinais de desmoronamento, mas a doutora entre distraída e embevecida pela presença do Secretário Estadual de Saúde, não percebeu.
Nem o primeiro e nem o segundo aviso.
Não houve o terceiro, a montanha desmoronou e atingiu em cheio a pobre médica, literalmente enfezada, o jaleco e o rosto principalmente. Alguns respingos atingiram o curioso e arrependido Secretário que, dizia entre dentes, nunca mais iria se deixar enganar por uma carinha de anjo.
Como diz o ditado popular: quem vê cara....

A Porta Aberta

Acordara tarde. A noite que prometera muitas alegrias tinha acabado sem nenhuma surpresa.
Não viera, ela nunca vinha...
Esperara por mais uma noite. Mais uma desilusão.
A porta adormecera escancarada, totalmente escancarados porta e coração. Mas nada, nada...
Muitas vezes pensara que a culpa era sua, sempre fora meio estúpido, meio tímido e teimoso. Muito teimoso.
A conhecera menino ainda. Amor da adolescência marcado por espinhas e noites acordadas. Sempre a via nos seus sonhos, mas nunca pudera dizer o quanto era importante para ele, a timidez o impedira e deixara-o sofrer.
Quando a viu nos braços de seu melhor amigo, o mundo parecia que ia desabar.
Mundo cruel, mas o tempo passa e não deixa senão as pequenas cicatrizes que teimam em não desaparecer totalmente.
Nesse meio tempo conhecera Maria de Fátima, bela morena de olhos verdes e esperanças bronzeadas.
Foram colegas de faculdade. Faculdades diversas, sonhos unidos.
Casamento foi rápido, rápido e raquítico.
Menos de quatro meses depois, a mesma noite que trouxe Fátima a levou.
Uma carta denunciara a trama.
Uma trama que o deixara assustado e pálido.
Quem diria, Fátima partira, jamais poderia acreditar que isso aconteceria um dia.
Da morena bonita, somente os olhos verdes sorridentes sobre a escrivaninha, no quarto, nada mais.
O porta retrato ainda estava lá, com aquela foto tradicional de um casamento terminado, abortado, antes que se pudesse sequer imaginar no que iria dar.
Carinhos e carícias foram poucos, mas marcantes...
A porta escancarada esperava por Lucia.
Menina Lucia que prometera voltar, um dia.
Agora, solitário lobo uivando por toda a noite, nada mais poderia esperar a não ser, em Lucia, a juventude morta, abandonada e esquecida.
Lucia tinha se casado com aquele velho amigo da adolescência e tinha tido dois meninos.
O tempo demonstrara o quanto eles eram parecidos com o pai, morto num acidente de trânsito. Álcool, muito álcool e as farras comuns dos finais de semana.
Lucia tinha ficado só e revoltada. Muito revoltada.
O corpo encontrado junto ao do marido tinha, várias vezes, dormido na mesma casa que ela, velhas amigas...
Ao reencontrá-la pensou que poderiam recuperar o tempo perdido e reiniciarem a velha história de amor...
Mas aquela noite fora incisiva. Lucia não viria, nunca mais...
O que fazer?
O sábado aproximava-se e com ele as noites e bares. Os bares podem trazer novas luas e novos sonhos...
Aquele seria o seu dia!
Não pensara duas vezes. Soube que, na cidade mais próxima, haveria um baile.
Um baile é sempre uma boa oportunidade de conhecer gente nova. Principalmente outras mulheres!
Uma roupa nova, um sapato novo, tudo novo para um velho lobo.
Solitário lobo...
Arrumou-se, perfumou-se...
A noite estava muito bonita e ele também, com certeza teria uma noite inesquecível
E teve!


O clube estava lotado, cheio de jovens felizes e ansiosos.
A música convidativa trazia o sonho...
Sonho e desejos....
De repente, uma sombra familiar passa do outro lado do clube.
Os olhos verdes da morena irradiavam!
O que fazer?
As noites maravilhosas que passaram junto, o uísque fazendo o efeito esperado...
Mas, ao se aproximar um pouco, reparou que os olhos verdes estavam ansiosos, esperando alguma coisa ou alguém...
Alguém!
Neste instante, saindo do banheiro feminino, uma surpresa...
A passageira noturna que nunca viera, aproximava-se sorridente...
Lucia e Fátima.
A noite escureceu-se de vez...
O efeito do uísque se esvaiu...
A porta nunca mais dormiu aberta

A Cratera

Os restos deixados na sala o preocuparam muito.
Como poderia seguir a vida se aquelas imagens não saiam de sua cabeça.
E ainda por cima aqueles restos, pedaços do que fora uma vida inteira.
Vida, palavra cada vez sem mais sentido...
Devotara boa parte de seus dias na esperança de poder descansar, dias e dias de louco desafio.
Cavara insensatamente, durante anos a fio, a cratera que prometera à amiga. Belos dias da juventude esquecidos numa gaveta.
As pás e as picaretas foram os seus instrumentos de trabalho. Bastava chegar da repartição e recomeçava o idílio.
Poderia ter chegado a um cargo de chefia mas a sua aparente insensatez o impedira.
Exótico. No mínimo exótico.
As cordas ajudavam-no na árdua tarefa, diária tarefa de abrir a prometida cratera.
A princípio seus colegas pensaram que pretendia fazer algum tipo de túnel ligado a uma fugidia esperança de fuga ou de roubo.
A polícia chegou a ser acionada mas, como não há lei que proíba a confecção de uma cratera, foi deixado em paz.
Obviamente ninguém mais o levou muito a sério depois de tal descoberta.
Porém, no trabalho e mesmo nas relações interpessoais era extremamente coerente.
Raros disparates e cincadas escapavam da sua perfeita lucidez.
Passou a ser visto como uma espécie de conselheiro pelas moças apaixonadas ou traídas e até dos amigos que, a princípio zombavam e muito de suas atitudes.
A amada cresceu, casou, mudou-se mas ele não muda.
A cratera prometida passou a ser o maior objetivo e objeto de sua vida monástica.
Tantos dias passados, meses, anos e a mesma vontade férrea e insuperável.
Aposentar-se-ia daí a mais ou menos dois anos, mais de trinta de repartição e de cratera.
O buraco já tinha mais de cem metros de profundidade, bem apoiado sobre uma obra arquitetônica de surpreendente solidez.
Mas aqueles pedaços de um passado remoto o surpreenderam.
De onde poderia ter vindo aquilo?
Provavelmente algum animal teria trazido aqueles pedaços de pano para a sala.
Mas como?
A vida preparara uma surpresa avassaladora.
Reconhecera de imediato os trapos e retalhos daquele velho vestido.
Remontara a um tempo esquecido, jogado numa cratera totalmente injustificável.
Pelo menos até aquele momento...

A Fotografia

Procurara durante vários anos por aquela fotografia!
A casa não era muito grande, mas a foto tinha se perdido em meio a bugigangas e souvenires.
Uma foto amarelada, meio que rasgada, meio que amarrotada.
As traças tinham visitado-a mas, por incrível que pareça, tinham poupado o rosto. Para ser mais preciso, poupado o sorriso.
Lembrara-se que, ao se casar, tinha ocultado o retrato em algum canto, logo esquecido...
Realmente, não teria como se lembrar. O álcool tinha dominado-o totalmente. Álcool e desilusão.
As brigas diárias, a fantasia desfeita nas ofensas cotidianas e na paranóia que acompanhava a antes doce e carinhosa Rosane.
Uma carta colocada sob a porta denunciou a loucura.
Escrita à mão, invocava uma amor imenso por ele. Amor imenso e alucinado.
A falta de assinatura e a tempestade causada pela descoberta de tal carta levou-o ao desespero.
Tirando aquela foto esquecida em um canto qualquer, fora totalmente fiel à Rosane.
Absurdamente fiel, pensaria depois.
Não seria fácil entender que a autora da carta fosse ela própria. Sim, Rosane!
Dali em diante, a vida se tornara um inferno.
A volta do trabalho se tornou árdua e difícil.
Os bares das redondezas passaram a ser testemunhas diárias das desavenças entre ele e a mulher.
Quando o final de semana se aproximava, o inferno aumentava.
Infernos e gritos, gritos absurdos agravados pelo útero estéril da esposa.
Ainda bem, pois um filho não sobreviveria nem aos fantasmas de Rosane e nem ao alcoolismo cada vez mais evidente e intratável dele.
Até que, num dia mais absurdo e mais tresloucado, encontrou Rosane desnuda deitada na sala.
Um rastro de sangue seguia-a até ao quarto.
Morta.
Completamente exangue e desnuda.
Os olhos parados olhando para o nunca e um sorriso enigmático aflorando os lábios da pobre demente.
Passaram-se vários meses, a paz trouxe a cura da embriaguez.
Nunca mais bebera nem tivera vontade.
Mas, aquela tarde uma coisa o intrigara.
A foto deixada em um canto inesperado, guardada entre as bugigangas no quarto de despejo.
Outra coisa que chamara sua atenção, foi um detalhe que à princípio passara desapercebido.
O sorriso.
O mesmo sorriso enigmático que vira no rosto de Rosane...

Gilberto e a viagem

Aquela noite seria fundamental para que pudesse resolver o velho dilema.
Iria ou não para Ibitirama?
Gilberto era assim mesmo, um camarada muito indeciso, medroso e mentiroso.
Não saberia dizer por que mas sempre tinha medo da noite, mesmo que a lua cheia clareasse todos os caminhos...
Aquela noite então era pior que as outras, o tempo nublado demonstrava que poderia encontrar alguns percalços no caminho e isso era assustador...
Dona Rita, como sempre preocupada, tentava demover a idéia fixa de João “Teimoso” Polino. Estava com pena do menino pois sabia que nada iria impedir o velho de executar o plano.
Levar Gilberto pela estrada era uma questão de honra, afinal o garoto já estava beirando os catorze anos e nunca tinha sequer saído dos arredores.
Depois de muita insistência, e de piores ameaças, Gilberto percebeu que não tinha outro jeito. O que não tem remédio, remediado está.
Dadinho, ria-se por dentro ao ver a aflição do irmão caçula.
Ritinha ajudando dona Rita nas preces e orações, estava preocupadíssima com o pobre garoto.
Pobre garoto em termos, pois o marmanjão com um metro e oitenta de medo e de mimo não parecia em nada com um garoto. Barba na cara e músculos expostos, medroso como ele só.
A noite estava fresca e tinha um vento que, ao invés de ajudar, servia para aumentar os temores do nosso herói.
Mas, o que fazer?
Embornal preparado, canivete para cortar o queijo e o pão que serviriam de alimento no idílio...
Tudo bem que eram somente nove quilômetros, mas pareceria uma eternidade...
Os barulhos e sustos noturnos são terríveis, uma simples coruja toma aspectos atemorizantes e Gilberto sabia disto...
Ao passar pela porteira que delimitava o pequeno sítio, fez o sinal da cruz e, cabeça escondida entre os ombros, partiu...
No primeiro barulho estranho, as calças pagaram o preço pela insegurança do rapaz.
Todo borrado, ficou numa situação difícil, tentando andar mas com o passar do tempo, o odor e a consistência do produto do medo foram ficando insuportáveis.
O medo libera toda adrenalina até que, de repente, Gilberto desmaiou.
Os raios do sol mal surgiam no horizonte quando, nosso amigo despertou do terrível pesadelo...
Como chegar em casa e dizer que não tinha conseguido ir a Ibitirama?
Mais que depressa, ardiloso como ele só, teve uma idéia.
Rasgou a blusa e o casaco com o canivete, riscando a pele até sangrar um pouco, não muito, mas o bastante...
Ao chegar em casa, dona Rita extremamente preocupada com o caçula, e ao ver o estado em que o pobre chegara não titubeou, veio correndo abraçar o menino...
Ao perguntar o que tinha acontecido, Gilberto pôs a imaginação para funcionar.
Uma onça, isso mesmo, uma onça havia chegado perto dele e preparava o ataque, os dentes e as garras à mostra, numa cena terrível e pavorosa...
Dadinho, macaco velho, ao sentir o cheiro que Gilberto emanava, começou a olhar meio desconfiado para o irmão, e sentindo que o mesmo estava mentindo, perguntou irônico:
- E aí o que você fez?
Gilberto, reparando que ia ser desmascarado, mais que depressa respondeu:
- Eu? Quer saber de verdade?
- Claro.
- EU ME BORREI TODO!!!!!

MENOSPREZO E TRAIÇÃO


O dia estava lindo, um sol maravilhoso num céu de brigadeiro.
O rio convidava a nadar e, como sempre fazia desde menina, ela resolveu ir até a prainha que se formava numa curva do rio, em sua fazenda.
Colocou seu biquíni e foi, aproveitando as férias escolares que se iniciavam naquele dezembro abrasador.
Sabia que, naquela hora, os meeiros e campeiros estavam trabalhando e, filha de coronel, ninguém ousaria perturbar o seu banho de sol.
Bastava uma palavra para que o pai resolvesse o problema do bisbilhoteiro.
Deliciosamente deitada, com aquela preguiça salutar e reconfortante, olhava a esmo, como que namorando a interminável corrente que trazia e levava as águas do rio, nesse suave escoar...
Lembrara-se de seu aniversário, maioridade atingida, agora era dona do nariz.
Aliás, sempre fora. Amazona aos doze anos, cavalgava maravilhosamente bem, com os lindos cabelos louros soltos, montada a pelo sobre o seu cavalo manga-larga. Bela cena que a memória do vilarejo fez questão de registrar no único foto da vila.
Dezoito anos, faculdade próxima, ano que vem vestibular. Medicina era o sonho, poderia fazer, o pai garantiria tudo.
Vida boa, liberdade.
Quando, ao longe, na estradinha de lavoura que cortava o morro mais próximo, sentiu um movimento estranho no bambuzal.
Reparando bem, percebeu que o movimento se repetira algumas vezes.
Pegou o binóculo e, para sua surpresa, reparara nos vultos de uns meninos, adolescentes e quase crianças lá no alto.
Pensou logo que estavam observando-a, presa da curiosidade e da sensualidade que aflora na adolescência.
Isso era o cúmulo. Ia dar o flagra nos meninos e entregá-los ao pai e que se danassem estes pestinhas.
Silenciosamente, se levantou e como se fora nadar, mergulhou no rio.
Exímia nadadora, sabia como fazer para surpreender os moleques.
Após ter nadado uns cem metros e sumido do campo visual dos meninos, voltou à margem e, subindo célere o morro, se preparava para repreender os safados.
Qual o quê, para sua surpresa não era nada do que imaginava.
Parada, quieta submissa, uma mulinha estava na estradinha.
Passiva, recebia os “carinhos” de um moleque de mais ou menos treze anos.
E, depois dele, uma fila se formara.
Cada um aguardando a sua vez...
Ao ver tal cena, sua ira redobrou e, tomando um pedaço de pau na mão, começou a espancar a esmo, todos os meninos, aleatoriamente.
Pior do que ser observada e desejada pelo bando dos moleques, era isso.
Quando viu os meninos desejando a mulinha, sentiu um enorme vazio no peito e uma terrível sensação de menosprezo e de traição!

Me Engana que Eu Gosto


Nos últimos dias tem ocorrido uma tentativa espúria de transformação de um vegetal em um animal.
Havia um legume, sem paladar, que habitava o interior paulista. Essa leguminosa, durante muitos anos aprendeu a conviver com os outros vegetais da feirinha.
Porém, a partir do contato desse legume com uma matilha de lobos velhos e pilantras, começaram a perceber que esse vegetal não iria muito longe com sua insossa atuação.
Haveria necessidade de “apimentar” o legume para ser mais tragável.
Mas, como todos sabem, lobo não come lobo e os velhos caninos convidaram essa leguminosa para tentar aprender alguns macetes como criar e mostrar os dentes.
Antes que houvesse essa tentativa de transformação, a matilha teve que se reunir para definir qual seria o lobo que acompanharia o legume na viagem.
Obviamente, esse encontro foi marcado por muitos latidos e uivado, com mordidas desferidas a esmo, até que se escolheu um lobo velho, aparentemente sem dentes, mas com a inerente agressividade da espécie.
Os lobos daquela floresta eram especialmente agressivos e tinham como característica principal o de pilharem qualquer outra espécie animal que aparecesse por perto, inclusive outros lobos de matilhas que não aquela.
Durante muito tempo se associaram aos Gorilas da Floresta para poderem obter benefícios e facilidades.
Após a expulsão dos gorilas, os lobos se uniram a outros tipos de espécies tanto animais quanto vegetais para manterem o poder sobre a floresta.
Pois bem, após terem quase que entregues toda a floresta para animais de outras bandas, perderam o poder.
Mas, agora, tentavam de todas as formas voltarem a mandar e desmandar.
Um lobo, pilantra antigo de guerra, de índole bisbilhoteira e entreguista, ameaçou convidar os Gorilas da Floresta, entregando os filhotes dos outros animais e as pequenas plantas indefesas de novo às garras dos Gorilas sob os auspícios dos Lobos.
A tentativa de transfundir ao legume as características principais desta matilha, fez com que, o antes inofensivo legume, passasse a ladrar a esmo.
Latia e latia, mas todos sabiam que ele, no fundo, continuava a ser o legume de sempre.
O lobo velho, a cada latido da leguminosa semitonava junto, dando o aspecto híbrido que não convencia mais ninguém.
Acreditando que estava fazendo sucesso, o pobre vegetal se orgulhava a cada latido mais alto, até chegou a aprender a uivar, mas o sotaque não enganava ninguém.
Quem nasceu para legume nunca vai chegar a lobo, o máximo que vai conseguir é emitir um “uivado” ridículo e a esmo.
A claque aplaude o pobre vegetal mas isso parece muito com aquela máxima: “Me engana que eu gosto”...

Frorianópolis


Ele estava tranqüilo, o serviço fora muito bem feito.
Serviço profissional, desde o roubo do carro até as falsificações dos documentos. Não era a primeira vez que passava por isso, afinal, vivia disso.
O comprador do carro já esperava, especialista em recepção. Dali ao Paraguai era um pulo. Passar a fronteira, moleza...
Já contava com o dinheiro no bolso, grana alta. O carro importado tinha venda certa.
Recordava do começo de sua vida, os pequenos furtos, os pequenos golpes...
Olhava para os lados e se sentia imbatível. Era fera, cobra criada...
Passara por duas guaritas da Polícia Federal, sem nenhum incômodo.
Atravessar a fronteira entre Santa Catarina e Paraná foi moleza.
Agora era ir até Foz, atravessar a fronteira e serviço terminado.
Mais um dia, mais um carro; rotina...
Mas um carrão daquele valia um passeio, afinal o tanque estava cheio e deu vontade de visitar a tia que morava em Maringá.
Aquela sua priminha era deliciosa. Lourinha dos olhos esverdeados, verdes da cor do carrão.
Ainda podia tirar uma onda com os parentes. O menino pobre ficou rico!
E poderia zoar o primo babaca, professorzinho de merda, metido a inteligente; trabalhando o dia todo para ganhar aquele salariozinho...
Estrada bonita, um friozinho maravilhosamente agradável, poder aquecer-se nos braços da prima...
A fome estava começando a incomodar. Sabia daquele restaurante na beira da estrada, comida caseira, suculenta...
Parou, estacionando o carrão bem na porta do restaurante, orgulhoso do belo automóvel.
Chegou cantando marra : “Me dá o que você tem de melhor, o melhor vinho, a melhor mesa, o melhor melhor...”
Comendo tranquilamente, degustando aquele vinho importado, chileno, fantástico.
Era feliz e sabia, muito feliz...
Porém, de repente, sentiu uma mão sobre o ombro.
Quando ia se virar para tirar satisfação com aquele estranho, um susto.
O que estava fazendo esse cara fardado aqui?
“O que deseja meu senhor?”
A voz de prisão o assustou. Preso por quê?
“Roubo de carro...”
Como? Roubo de carro? Meus documentos e os do carro estão aqui, e estão em dia...
Piorou mais ainda a situação.
O carro era de “FRORIANÓPOLIS”.
E daí? Capital de Santa Catarina, ora bolas!
Depois, em cana, ao chamar um advogado, é que percebera a lambança.
Naquele momento, ficou morrendo de inveja do primo professor.
Pela primeira vez na vida começou a perceber o quanto a educação faz falta...

Eleição no Reino Animal


Havia eleição no reino animal. De um lado tínhamos o grupo marinho e do outro o grupo terrestre.
No grupo terrestre, a situação estava muito complicada, com brigas entre os representantes de cada um dos participantes da tríplice aliança.
Os “Trogloditas”, grupo agressivo e acostumados a atacar quem quer que seja, se acreditando sempre protegidos pelos Gorilas que comandavam o reino, num passado cada vez mais distante, tinham como características o agredir sempre, a tudo e a todos.
Estavam acostumados a explorar o trabalho dos animais mais indefesos. E, como bons hematófagos, viviam do sangue desses pequenos e frágeis animais.
Por outro lado, contumazes subservientes aos Gorilas, viviam se arrastando perante esses antigos comandantes do reino.
Mas, com a saída desses do poder, os Trogloditas começaram a ver a situação se modificando.
Os pequenos animais, começaram a perceber que serviam de alimento para esses Poderosos, e as migalhas que eram entregues não eram nada mais que “iscas” usadas pra que os Hematófagos Trogloditas sugassem quase todo o sangue, deixando o bastante para que sobrevivessem e realimentassem a cadeia alimentar.
Nesse ecossistema viveram por mais de quarenta anos. Mas isso se tornava cada vez mais coisa do passado...
Um outro grupo, os dos Miméticos, também conhecidos como camaleões, tinham como característica principal, o de utilizar-se da cor que mais aprouvesse.
No varejo eram menos deletérios que os Trogloditas, mas no atacado eram terríveis. Venderam quase tudo que havia no reino, em nome de uma estranha “economia” que não era nada mais nada menos que um auto reconhecimento da incapacidade de administrar.
Os Miméticos começaram a aparecer de uma cor mais avermelhada mas, com a aproximação histórica com os Trogloditas, começaram a ter cada vez mais a cara destes...
O terceiro e menor grupo era formado por um grupo de migrantes do reino marinho, verdadeiros anfíbios. Começaram na água e se entregaram de braços abertos ao reino terrestre.
Esse grupo merece um comentário: No começo eram ferrenhos e radicais defensores dos pequenos animais entregues à fúria dos Trogloditas. Mas, agora estavam submissos a esses.
As táticas utilizadas para tentar desestabilizar o grupo marinho eram as mais diversas. Tentaram, desde o começo, usar a maneira Troglodita de atacar, usando as maiores desculpas para atacar.
Desde ilações as mais diversas até fofocas de caráter pessoal.
Para tentarem alcançar o maior número de votos, lançaram um vegetal como candidato, oriundo do grupo dos Miméticos, obviamente.
Péssima escolha, o vegetal fazia questão de ser insosso, e o número de herbívoros que poderia engolir tal coisa era bem menor do que se imaginava.
Além de tudo, os animais do reino estavam cansados de ficar pastando.
Numa última tentativa, os Miméticos acataram o que os Trogloditas sugeriram.
Partiram para a agressão pessoal, de ofensas de baixíssimo nível, a esmo.
Chamaram o líder marinho de alcoólatra, ladrão, vagabundo, analfabeto...
Só não tentaram envolver, novamente, a filha do mesmo, embora quisessem atacar o filho desta vez; porque os Trogloditas já tinham usado isso.
Mas, como tal tática foi desmascarada há tempos, evitaram reinventar tal fato.
Neste reino, havia um sábio.
Este sábio, como bom observador, ria-se de toda esta história.
Sabia muito bem que nada adiantaria.
Pelo simples fato do POLVO pertencer ao Reino Marinho...

Decomposição.


Havia, na pequena Santa Martha de João Polino, uma velha senhora que, mais por vício do que por necessidade, mendigava pelas estreitas ruas de terra do distrito.
Já sexagenária, tinha a mania de dar cantadas em todos os jovens que encontrasse pelo caminho e, por incrível que pareça, muitas vezes obtinha sucesso em tais investidas.
Volta e meia era encontrada nos matos e quintais das casas, semi-nua e adormecida. Com aquele sorriso de quem obtivera muito prazer nas noites geladas do lugarejo.
Quando não obtinha êxito, era comum encontrá-la no celeiro de um sitiante qualquer, muitas vezes embriagada.
Tal mulher colecionava na embaraçada cabeleira vários tipos e espécies de parasitas. Muitas vezes os bernes se desenvolviam e completavam as etapas evolutivas do espécime, até voarem para nova reprodução, provavelmente encontrando ali, novo campo para o desenvolvimento, do ovo à mosca adulta.
Quando falo que não tinha necessidade de mendigar, me remeto ao fato da mesma ter aposentadoria e casa própria.
Essa casa era raramente usada pela velha senhora, se tornando mais um depósito de seus garimpos pelas vielas do local, onde catava tudo quanto se pode imaginar e seqüestrava , transformando restos de latas, vidros, sofás destruídos, pedaços de pano rotos, garrafas de vidro ou plásticas; tudo, enfim, em preciosidades guardadas dentro da casa.
O mau cheiro denunciava a decomposição dos guardados orgânicos, como os restos de comida que se acumulavam num cômodo especialmente separado para isso.
Um dia, mais revoltados que penalizados, alguns vizinhos, cansados de denunciarem à saúde pública o estado em que se encontrava tal pardieiro, resolveram agir.
A ação foi de uma violência ímpar. Invadiram a casa da pobre demente e começaram a arrastar tudo o que encontravam pela frente.
Na sala, vários “monumentos” feitos com pedaços de diversos materiais demonstravam a todos a que ponto a loucura chegara.
Várias esculturas de formas lembrando vagamente crianças estavam espalhadas entre restos de madeira, de lata e de vidros jogados pelos quatro cantos.
Ao simples toque as esculturas se desfizeram, revelando a fragilidade com que foram feitas; sem nenhum material que aderisse os diversos “tijolos”.
Porém, ao entrarem no quarto onde, teoricamente, dormiria a pobre senhora, tiveram uma surpresa.
Pelo quarto, espalhados, vários esqueletos de crianças de, no máximo um ano de idade, em diversas posições, sentados, deitados, em pé, estavam espalhados pelo cômodo, e os alimentos decompostos servidos em pratos, como se fossem para alimentar aos pequenos infantes.
E, deitado no chão, um cachorro morto, em estado de decomposição avançado, observava os pequenos cadáveres famintos...

Cachucha e Zeca Pistola


Fifa faz holandeses assistirem jogo sem calças

A Fifa, a entidade que controla o futebol mundial, explicou neste sábado porque quase mil torcedores holandeses foram obrigados pela entidade a assistirem uma partida da Copa do Mundo sem calças.


Os torcedores chegaram para o jogo contra a Costa do Marfim, na sexta-feira, usando suas tradicionais calças laranja-claro, mas com o logotipo e o nome de uma cervejaria holandesa.

Como a Fifa já havia advertido que não permitiria nenhuma "campanha publicitária não autorizada", forçou os torcedores a deixar as calças na porta do estádio, para proteger os interesses da cervejaria que patrocina a Copa. Caso contrário não seria liberada a entrada desses torcedores. Eles então tiraram suas calças e acompanharam toda a partida usando apenas cuecas.

Quinze grandes companhias pagaram até US$ 50 milhões cada uma pelo direito de ser um dos patrocinadores oficiais da Copa do Mundo.

A empresa americana Anheuser Busch, fabricante da cerveja Budweiser, pagou pelo direito exclusivo de promover e vender sua bebida nos estádios e em outros locais oficiais da Copa. A concessão de uma das cotas de patrocínio a uma cervejaria americana provocou um forte ressentimento na Alemanha, um país que se orgulha pela qualidade de sua cerveja e que tem leis rígidas para controlar sua composição.


Esse fato me faz recordar um dos mais comentados episódios da história do futebol santamartense.
Jogo final do campeonato municipal entre Santa Martha e São José do Caparaó.
Jogo difícil, o time de São José contava com alguns dos maiores craques da região, importados a peso de ouro pelo mecenas do time.
Entre eles o mais temido era Cachucha. Centro avante de fama até fora do estado, tendo tido uma passagem profissional pelo Ipiranga de Manhuaçu.
Reserva, é claro, mas profissional.
Tínhamos o conhecido João Polino, ex-técnico do Santa Martha, como Conselheiro do time.
Bom conselheiro de conselhos tortos para momentos difíceis.
Ao perceber que seria muito difícil vencer a partida, João Polino resolveu montar uma armadilha para o ataque da equipe adversária.
João armou o seguinte esquema defensivo para tentar salvar a equipe:
Havia uma jovem não muito bonita, mas com pernas muito bem torneadas e coxas fantasticamente roliças, muito conhecida como namoradeira lá pras bandas de Santa Martha, estendendo sua fama até aos municípios próximos.
Por causa daquelas coxas, muitos cabras já tinham trocado tapas, pescoções e até tiros.
Conta-se que algumas cicatrizes escancaradas nos rostos de alguns cidadãos daquelas bandas, tinham a assinatura das coxas de Malú, apelido da jovem senhorita.
Pois bem, João posicionou estrategicamente a moçoila por trás do gol do time de Santa Martha; com uma minissaia exuberantemente curta.
Segundo a determinação do conselheiro Polino, a cada ataque do adversário, principalmente se Cachucha estivesse com a bola, Malú, simplesmente abria um pouco as pernas e, com a visão paradisíaca, o resultado seria óbvio.
Encerrado o primeiro tempo, o resultado de tal estratégia não surtira nenhum efeito, o jogo já estava quatro a zero para São José e com todos os gols feitos por Cachucha.
Terminado o jogo, e o placar de sete a dois para o time visitante, João resolveu tirar a história a limpo.
Ao entrar no vestiário do time adversário, com a desculpa de parabenizar a outra equipe pela vitória, obteve a resposta esperada.
Ao flagrar Cachucha semi-nu, entre beijos e abraços, agarrado no pescoço do beque central do time, Zeca Pistola, percebeu o motivo delicado do apelido do centro avante.
O pior de tudo foi, segundo João Polino, o espanto causado pela justificativa do apelido do zagueiro...

De Comendas e Comendadores


Naquela pequena cidade do interior, a cada ano se escolhiam, entre as personalidades do município, as que mais se destacavam.
Eram condecoradas com a comenda Dr. Nauseabundo Souza.
Esse fora um grande fazendeiro da região que trouxera a riqueza para o município, sendo um dos primeiros colonizadores do povoado que crescera às margens do Rio Sapo Cururu.
Ao iniciar esta colonização, habitavam índios da tribo puri e o Coronel Souza, com a ajuda de muitos jagunços, exterminaram esses primeiros habitantes da região.
Com a grilagem das terras e a exploração de pequenas quantidades de ouro que havia, pouco a pouco foram chegando outros aventureiros e com eles o gado e o café.
O desmatamento daquela área de Mata Atlântica fora total, não sobrando mais nada.
Ultimamente, o eucalipto começara a tomar o lugar dos pastos. Já o café, se limitara a pequenas propriedades, onde empregava a mão de obra sazonal costumeira.
Devemos nos recordar que, após o distrito ter-se tornado município, o crescimento e desenvolvimento estava a cada dia maior, o que atraía gente de todos os lugares.
No meio desse povo que migrara para lá, tínhamos um pequeno agricultor, de nome José, oriundo de Espera Feliz, cidade mais ou menos distante dali.
A riqueza traz todo tipo de gente, desde trabalhadores até aventureiros.
Dentre esses aventureiros, veio um grupo de paupérrimos moradores da periferia do Rio de Janeiro.
A chegada destes, trouxe para a população mais conservadora, o medo de que fossem bandidos ou traficantes, num infeliz preconceito que ainda habita as sociedades mais arcaicas e atrasadas do interior do Brasil.
Peterson era um dos homens mais violentos daquela cidade. Tinha, há muito, um programa numa estação de rádio local, cujo mote era “Bandido bom é bandido sepultado”.
Muito popular entre as camadas mais simples do local, este programa garantia ao radialista, a reeleição eterna à Câmara Municipal.
Não somente a ele, mas também à sua filha, Claudia, que seguia os passos do pai na política e no “jornalismo”.
Com o passar dos meses, os cariocas começaram a aparecer mortos, a cada mês aparecia um novo cadáver abandonado próximo aos bairros mais distantes da cidade.
Curiosamente, todos eles tinham uma marca estranha feita a canivete nas costas, uma caveira e duas tíbias cruzadas, à moda dos piratas.
A cada assassinato, Peterson, em seu programa de rádio, louvava a morte de mais um bandido, agradecendo ao executor misterioso, o favor de ter livrado a sociedade local de um facínora. Acrescentando à notícia, um monte de crimes imputados ao defunto.
Um grupo de estudantes que tinha ido estudar em Juiz de Fora, começou a perceber que essas coisas estavam se tornando repetitivas e fundaram uma associação de defesa dos direitos do cidadão.
Obviamente, Peterson começou a atacar esta associação, chamando seus membros de “defensores de bandidos”, de “turma de maconheiros sem vergonha”, etc.
Neste meio termo; José conheceu sua esposa, Maria. Começaram a namorar e, em pouco tempo se casaram.
Do casamento vieram três meninos, “as esperanças de José”, conforme dizia para todos os que conhecia.
Numa tarde do mês de maio, houve um incêndio na rua onde morava Jose.
Heroicamente, sem ter medo do que poderia acontecer e, na ausência de um Corpo de Bombeiros, José se meteu no meio do fogo e salvou uma criança recém nascida que dormia no berço, próximo à cama de sua desesperada mãe que assistiu a salvação emocionada.
Tal fato espalhou-se pela região, sendo noticiado até na televisão, num canal de Belo Horizonte, sendo José transformado, rapidamente, em herói.
José era muito bem relacionado e tinha, entre seus amigos, o Carioca.
Carioca era muito brincalhão, sujeito bom e honesto. Amigo do peito de José. Várias vezes tinha emprestado dinheiro, na época das vacas magras. Era pau pra toda obra.
Um dia, Carioca saiu para trabalhar e se despediu de José, carinhosamente.
Foi a última vez que Jose o viu vivo.
O corpo, encontrado na beira da estrada, crivado de balas e com aquela marca já descrita, feita a canivete nas costas do amigo.
No rádio, Peterson disse o que sempre dizia, que Carioca era um criminoso procurado pela polícia do Rio, envolvido com tráfico, essas coisas...
Essa notícia revoltou sobremaneira nosso amigo que, indignado disse a si mesmo e à esposa que nunca mais iria assistir àquele mentiroso, já que conhecia muito bem seu amigo e sabia-o incapaz de ter feito alguma coisa errada.
No final do ano, à época da escolha das personalidades do município, José foi lembrado pelo vereador do bairro onde morava.
Festejou muito; um humilde lavrador ser homenageado pela Câmara dos Vereadores!
Isso era motivo de comemoração e muito orgulho. Com toda a alegria do mundo, comunicou à esposa que se arrumasse para que no final do mês, na festa da cidade, fosse com ele receber a Comenda Dr. Nauseabundo Souza.
Comendador! Poderia agora, voltar a Espera Feliz com a cabeça erguida, ostentando no peito a comenda de que tanto se orgulharia.
Mas, por um desses acasos da vida, ao ir para o trabalho deparou com uma cena que chamou sua atenção.
Um homem enorme, com quase duzentos quilos, estava na beira do rio, pescando.
Até aí nada demais, mas ao se aproximar do cidadão, empalideceu.
Nas costas desnudas do pescador, deparou com aquela marca que vira desenhada a canivete nas costas do seu amigo Carioca.
A marca tatuada não deixava enganar. Era mesmo aquela.
O susto se tornou maior quando reconheceu Peterson, o radialista.
Era então isso, aquele homem estava ligado à morte de seu amigo.
Afastou-se calado e foi para o trabalho.
Passaram-se alguns dias, até que chegou o ansiado dia da condecoração.
Arrumou-se, se perfumou, vestiu sua mais bonita vestimenta e foi à Câmara receber sua comenda.
Para surpresa sua, entre os condecorados estava Peterson, que teve seu nome indicado pela filha.
A surpresa se transformou em ódio. E esse dominou todo o seu rosto empalidecendo-o.
Começou a tremer e, quase sem ouvir seu nome, levantou-se.
Ao ver Peterson com a comenda no peito, não se conteve.
Mal pegou a sua comenda, cuspiu sobre a mesma e atirou-a na cara do radialista, gritando:
“Essa é em homenagem ao Carioca, Comendador, aquele bandido que foi assassinado no mês passado, esse mesmo, aquele traficante que vocês anunciaram no seu programa de rádio. Vocês merecem essa comenda, vocês todos. Bandido bom é aquele que carrega essa homenagem no peito, vocês merecem!”
Para susto de todos, retirou-se, mas antes de sair, cuspiu no chão daquela digna “Casa do Povo”. Nunca mais ninguém teve notícias dele.
O corpo encontrado no dia seguinte nas proximidades da cidade, tinha o rosto deformado por ácido.
A marca da caveira e das tíbias estava feita nas costas.
Mas, desta vez, o radialista nada comentou...

Sapo na Gaiola. Cuma é o nome dele?


Tem algumas coisas na vida que não nos esquecemos. A infância é uma etapa maravilhosa da vida, onde a malícia é palavra desconhecida.
Quando eu tinha meus cinco ou seis anos de idade, na casa de minha vó, na bucólica Miraí, era uma criança livre, feliz e sem medos.
No rádio e na televisão, tocava-se muito aquela música de Dercy Gonçalves, a da perereca na gaiola, quem não conhece?
Pois bem, havia chovido muito na véspera e a terra extremamente úmida atraíra um daqueles sapos, comuns nos brejos e nas pequenas cidades.
Não tive dúvidas, peguei o batráquio e, me aproveitando de uma gaiola vazia que tinha sido abandonada perto do tanque de roupas, resolvi colocar o bichinho dentro de sua nova casa.
Acredito que ele não tenha gostado muito daquela residência que eu tinha reservado para poder aprisioná-lo.
Sapo na gaiola, gaiola na mão, sai feliz da vida a mostrar para todo mundo meu novo bichinho de estimação.
Minha mãe colocou as mãos sobre a cabeça, minha vó recriminando minha escolha, mas eu estava feliz e isso me bastava.
Meu pai tinha saído para pescar e não se encontrava em casa no momento em que fiz a estranha opção.
Durante o dia todo, fiquei tentando adivinhar de que se alimentaria o anfíbio.
Tentei pegar folhas e nada, tentei colocar um pedaço de carne, neca de pitibiriba.
O pobre animal estava assustadíssimo, pulando toda hora e batendo de encontro a grade da gaiola, inutilmente tentando fugir.
Quando meu pai retornou da pescaria, ao contrário da bronca que eu esperava, teve uma reação diferente.
Sorrindo, me perguntou qual seria o nome do bicho.
Eu não tinha imaginado ainda, parei e pensei, repensei até que ele me deu a sugestão:
“Xoxota”.
Prontamente aceitei o nome, e o eu sapo recém batizado, continuou, mesmo deixando de ser pagão, não gostando da brincadeira.
Mas, para mim aquilo era o êxtase.
Saí pelas ruas de Miraí mostrando a todo mundo o meu sapo Xoxota.
Para todos que passavam, eu perguntava se conhecia o meu Xoxota.
Minha irmã, dona da gaiola, invejando tal sucesso do bichinho resolveu intervir.
“Se a gaiola é minha, quem mora nela também, portanto, Xoxota também!”
Ao ver que o troço ia feder gaiola, Xoxota e a confusão armada, meu pai interveio:
“A partir de agora, para evitar a confusão, vou soltar Xoxota”.
Xoxota livre saiu pulando em direção ao quintal, feliz da vida..

Vespa fabricando mel

No meu paraíso miraiense, uma das coisas que mais me incomodavam eram os marimbondos.
Quem foi picado por esse inseto, nunca mais se esquece. Dói, mas dói mesmo.
A dor vinha acompanhada por uma mistura indefectível de álcool com fumo de rolo.
Alivia na hora.
Entre as espécies de marimbondo, no quintal de minha avó havia duas que me recordo bem, uma era o chumbinho. Pequeno e vivendo em colméias grandes, fabricam mel. Realmente produzem um mel de paladar agradável.
A outra espécie era o marimbondo cavalo. Como o próprio nome diz, era grande e sua picada era extremamente dolorida.
Na ida para o quintal, volta e meia eu era atacado por um pequeno enxame de marimbondos chumbinho. Era passar perto da mangueira, esbarrar num galho e lá vinham as vespas atacando, zunindo e picando.
Então era correr para casa e ter o alívio no fumo de rolo e no álcool.
Um belo dia, cansado de tantas picadas, e pelo fato de ser “muito grande” nos meus cinco anos, resolvi acabar com o problema.
Localizando a colméia das vespas e percebendo que, se eu subisse em um caixote de madeira, conseguiria colocá-la a uma altura que me permitiria alcançar o meu objeto de vingança, tomei uma atitude.
Drástica e dolorosa atitude, mas radical.
Com a mão esquerda apoiada no tronco da mangueira, a direita foi em direção a colméia e executou rapidamente o que tinha planejado.
Segurando a pequena colméia na mão, esmaguei-a, entre feliz e irado.
A reação foi imediata; várias vespas me atacaram ao mesmo tempo.
Zunidos e picadas, picadas e zunidos.
Dor muita, mas felicidade também.
Naquele momento aprendi que a liberdade tem seu preço. E passei a ir para o quintal sem a ameaça daqueles insetos.
Um litro de álcool e um bom naco de fumo de rolo livraram a dor do corpo.
As mangas deliciosas que pude colher recompensaram.
Agora, a alma lavada, sem dor, podia correr livre pelo meu reino; o quintal de minha avó.

Quanto custa um mecenas...

Francisco Caçapa era uma das figuras mais conhecidas de Muriaé. Tido como extremamente culto, seus conhecimentos não ultrapassavam as sinopses, as manchetes de jornal, as orelhas dos livros e os comentários sobre esses.
A partir de tal conhecimento, intervinha em todos os assuntos que, porventura, alguém colocava em debate.
Como todo bom farsante, freqüentava com assiduidade ímpar, os botecos da cidade.
Casara com Leonor, dona de rara beleza, quando essa estava aflorando os seus quinze anos, menina pobre, ludibriada pela boa conversa do falsário.
Com o tempo, e a continuidade dos estudos, começara a perceber que entrara realmente em uma canoa mais do que furada, arrombada.
Terminando a faculdade de História, começara a lecionar nos colégios da cidade, inclusive no Estadual, onde conseguira, via concurso público, um cargo efetivo.
Paralelamente a isso, Francisco, percebendo que a esposa era auto suficiente economicamente, deu maior vazão à sua vocação natural.
“Intelectual que se preza, vive para aprofundar seus conhecimentos, e o trabalho formal é incompatível com essa árdua missão de penetrar nos mistérios da humanidade”; dizia, citando um pobre coitado que escolhera para fonte de suas máximas.
Além de tudo, Francisco era um admirador dos generais que governavam esse país, citando como exemplo de dignidade uma meia dúzia de pessoas ligadas ao poder.
Arenista de primeira hora, nacionalista como poucos, achava realmente que o país estava num momento mágico. Odiava, portanto qualquer coisa que cheirasse a esquerda, xingando a quem não gostava de ofensas como “comunista de meada”, “subversivo”, essas coisas...
Uma de suas principais vítimas era Eduardo, professor de Geografia, colega de Leonor.
Rapaz franzino, oriundo do “morro da rádio”, bairro proletário de Muriaé, estudara com muitas dificuldades, formando-se em Itaperuna, cidade próxima.
Francisco, como todo bom vagabundo falaz, resolveu se candidatar à vereança local.
Filiado à Arena 1, contava a eleição como certa, acreditando na “amizade” de seus pares e na admiração dos mais humildes.
Em primeiro lugar, os que ele achava que eram seus iguais, simplesmente se divertiam às suas custas, observando o pensamento obtuso e inconseqüente.
Os mais simples odiavam a conduta pernóstica e o narcisismo.
A fama de vagabundo suplantara, há muito a de “intelectual”.
Nessa mesma eleição, Eduardo, movido pelo sentimento de mudança e pelo sonho libertário da juventude, resolveu se filiar ao MDB e se candidatar também.
Leonor, já há um tempo, mantinha encontros escondidos com Edu. Sendo que tinham uma casa em Itaperuna, especialmente montada para esses encontros.
O divórcio ainda não havia e a situação de uma mulher “separada” perante a hipócrita sociedade tradicionalista de Muriaé impedia-na de agir com mais firmeza.
A situação dela, perante a candidatura do marido e do amante, ficara um tanto quanto difícil.
No dia da eleição, uma surpresa.
Nenhum dos dois se elegeu, mas, para surpresa de Francisco, a seção eleitoral onde ele e sua esposa votaram só contabilizou um voto para ele.
Pediu recontagem e bradou aos quatro cantos que a eleição fora fraudada.
Nada adiantou o voto solitário não encontrou par na recontagem.
Ameaçou, bradou, xingou indo quase às vias de fato com Leonor.
Mas, conformou-se.
A partir daquele dia, encerrou sua carreira política.
Leonor, cada vez mais abertamente, começou a freqüentar Itaperuna todas as semanas.
Francisco começou a perceber o preço que cobra um Mecenas.

De vinganças e vinganças


Um dos maiores parasitas que existem é o conhecido “colunista social”. Escravo e bobo da corte, é vitima e o carrasco das conhecidas “socialites”.
A maior parte das vezes é convidado para as festas da high society, tendo como característica marcante, o olhar ferino e agressivo contra alguma pessoas, principalmente aquelas que não lhe satisfazem os desejos de fama, poder ou simplesmente narcisistas.
Em contrapartida, as que cedem aos seus caprichos são tratadas a pão de ló, tendo o rosto estampado com legendas elogiosas a cada semana ou a cada evento em que estas personalidades estejam.
Mauricio Flavio era um dos mais conhecidos colunistas sociais da cidade de Pintassilgos, no interior mineiro.
Tendo em Amaury Jr, seu principal ídolo, tentava ser simpático com a maior parte dos ricaços do local, sendo cruel com aqueles que não tinham “origem” na tradicional família pintassilguense.
Os novos-ricos, então eram vítimas de sua língua ferina, mesmo nos elogios, não se esquecia dos pequenos detalhes que, invariavelmente, demonstravam a origem camponesa ou proletária da personagem escolhida por Mauricio Flavio para ser esculachada.
Marieta herdara de seus tios uma propriedade rural de fazer inveja a quem quer que seja. Nos seu quase mil alqueires de terra, desfilavam mais de mil cabeças de gado, além da produção de café, uma das maiores do sul de Minas.
Não que fosse uma nova rica típica, isso não. Mas, sua filha, no auge da adolescência e deslumbramento, resolveu fazer uma festa de quinze anos.
A mãe, que tinha mudado para a cidade fazia pouco tempo, relutou em fazer a tal festa mas, sob a influência das companheiras de salão e das amigas de sempre, rendeu-se aos apelos da menina.
A festa fora um esplendor de fartura para todos os gostos, inclusive para a língua afiada de Mauricio Flavio.
Entre os convidados, obviamente, vieram os parentes de marie ta, todos oriundos da zona rural. As misturas de estilos se tornaram evidentes.
Como não poderia deixar de ser, Mauricio Flavio estava entre os meio convidados meio penetras que vieram na carona de alguns amigos da filha da dona da casa.
Marieta não lia as colunas sociais, isso nunca. Mas, como a festa da filha fora anunciada como uma das atrações da maldita coluna, teve o desprazer de perder seu tempo lendo as matérias publicadas pelo “dengoso” mauricinho.
A festa foi desancada do começo ao fim, com críticas vorazes e ferozes contra a “Família Buscapé”, tendo como máxima , a falta de gosto e de estilo da dona da casa e de sua filhota, “exemplo de como não se deve portar a juventude cocoteira e baladeira”. Entre outras coisas, a decoração da casa foi tema de agressivos e preconceituosos comentários do colunista.
O calor começou a subir às ventas de Marieta que, no auge da ira, planejou sua vingança.
Sabendo da sede de poder do adamado colunista, mandou flores para este em agradecimento aos comentários postados no jornaleco.
Este cuja megalomania não permitia discernir nada, agradeceu e encantou-se com tal atitude.
Passaram a trocar correspondências e telefonemas.
Depois de uns três meses de intensas intimidades, Marieta preparou-lhe a arapuca.
Convidou a toda a cidade para uma festa em homenagem a Mauricio Flavio.
Orgasmos múltiplos não dariam a dimensão exata do prazer proporcionado a este pela notícia.
Esquecera, a muito, das críticas impostas a sua nova amiga.
Enquanto essa estava se firmando como uma das maiores fortunas da região, Mauricio a cada dia se encantava mais com Marieta.
No dia da festa, um luxo só. A casa fora toda preparada para a recepção, inclusive com música ao vivo, cantor famoso, em fim de carreira, mas conhecido.
Aquilo tudo estava fantástico. O nosso colunista estava em lágrimas, verdadeiras lágrimas de emoção e felicidade.
Lá pelas tantas, Marieta, pediu a palavra e em tom de agressividade, para surpresa de todos começou a desfiar :
-Esse imbecil que se chama Mauricio Flavio, puxa saco dos ricos, achou que eu ia me esquecer do que ele fez com a minha filha. Convidei vocês para que saibam o quanto esse vagabundo sanguessuga vive das fofocas e intrigas, muitas das quais ele mesmo inventa para extorquir dinheiro ou vantagens pessoais.
Eu não preciso desse tipo de gente, dessa bichinha safada que vive fingindo que tem namorada, somente para esconder o fato de estar saindo com o meu meeiro, Zé Trindade; ou você pensa que eu não sei disso?
Aliás, eu não preciso de seus elogios ou críticas, eu posso e faço o que eu quiser, não quero você, sua lombriga asmática nem aqui em casa e nem no meu jornal.
Pois é seu babaca, acabei de comprar o jornaleco onde você trabalhava e, para que todos saibam você está demitido desta casa e do jornal. Suma!
Ao que, o choroso colunista, meio de banda, humilhado mas com a cabeça incrivelmente erguida responde:
-Caipira, caipira, caipira! E ainda por cima, GORDA!

Meus tempos de criança - da madeira de dar em doido


Meu avô era proprietário de uma serraria, em Mirai, Minas Gerais, terra de Carmita Loures e de Ataulfo Alves.
Eu me recordo que, quando criança, adorava brincar com a serragem a qual chamávamos de pó de serra. Era uma delícia pular sobre aqueles montes que se formavam, quando se serrava uma tora de madeira.
A coceira que vinha depois, resultado de tais brincadeiras, nem de longe incomodava.
Eu era feliz e nem sabia.
Mas, um dia, para espanto de minha mãe, sempre zelosa com a limpeza, entranhou-se um odor insuportável na casa.
Por mais que ela varresse e lavasse a casa, a inhaca de esgoto não se dissipava.
Dona Osília, minha mãe, como toda mãe mineira era extremamente zelosa e cuidadosa com a casa.
Qualquer sujeira perdida em um canto da casa era motivo de apreensão e irritação. Recordo-me que, aos sete anos de idade, ao escrever sobre a mãe, no dia dedicado a elas, descrevi-a como uma “barata tonta”; o dia inteiro envolvida com as aulas no colégio, onde lecionava História, e a casa, onde refazia boa parte do trabalho que fora executado pela secretária da época.
Pois bem, a limpeza já se repetia várias vezes, quando percebi meu pai sorrindo, matreiramente, no canto da sala.
Aquele sorriso denunciava o mal feito. Meu pai era extremamente brincalhão e alguma ele tinha aprontado.
Passaram-se uma, duas, três horas e o cheiro continuava, para apreensão de minha mãe, justificando um olhar maroto do meu pai.
Depois da janta, fomos dormir.
De repente, acordei com a minha mãe reclamando em altos brados.
Perguntei o que tinha acontecido e a resposta veio rápida.
Naquele dia, tinham cortado na serraria, uma madeira chamada de canela. Mas não era uma canela comum, dessas parecidas com a Gabriela de Jorge Amado não.
A canela em discussão, era uma madeira que tinha uma característica única.
O odor exalado pela madeira, ao ser cortada, era profundamente desagradável e justificava o nome popular da dita madeira.
Meu pai, depois de cansar de ver minha mãe exasperada, resolvera, enfim, explicar a origem da inhaca insuportável e inexterminável.
“Osília, a tora que foi cortada hoje, é a de canela-bosta.”

Eu também tenho um "pé na cozinha"...

Certo dia, naquele pequeno reino beira mar, havia um homem muito sábio.
Vivendo sempre perto do riacho que atravessava todo o território do minúsculo reinado, sem nunca ter saído dali, conhecia a vida de todos os moradores.
A resposta a cada pergunta feita vinha pelo vento, trazida pelas águas ou no canto dos passarinhos.
E sempre havia uma notícia nova, a toda hora, transitando pelas ondas que captava, no seu silêncio e na sua mansidão.
Como já estava ali há mais de oitenta verões, conhecera todos os reis e súditos, a todos, desde o nascimento até a morte.
O rei atual era filho da lavadeira, pobre lavadeira que vivera limpando as manchas das roupas dos ricos. Da mesma forma que seu filho queria, a todo custo, limpar as manchas deixadas no reino pelos antigos soberanos.
Esses eram todos pertencentes a nobreza do local, filhos dos barões e dos condes, príncipes e princesas que , como a maioria dos reis, viviam do trabalho dos súditos.
Houvera um rei poliglota, famoso por ter aprendido vários idiomas, menos o dialeto usado pelos súditos.
Isso não era novidade, já que os reis anteriores também não sabiam falar aquela língua pobre, bem diferente do idioma oficial do reino.
Termos como liberdade, fraternidade, solidariedade, tinham sido extirpados do idioma real, por alguns reis antigos que por lá apareceram, principalmente Ernesto I e Emílio I, acusados de terem mandado matar e desaparecer com alguns rebeldes.
Após a intervenção de alguns nobres idealistas, como um tal de Odisseu, Aristocratas, sabedores de seu poder escravizador e contando com a ignorância mantida estrategicamente, dos súditos, finalmente aceitaram fazer eleições.
No começo tudo deu certo, os súditos fragilizados e famintos, mantiveram os aristocratas no poder, como era de se esperar...
Um representante dos súditos, o filho da lavadeira citado acima, tentara, sob o escárnio dos aristocratas, várias vezes chegar ao reinado.
Um dia, por descuido dos aristocratas, ou quem sabe pela falta de qualidade dos candidatos destes, comprovando o ditado que diz que “água mole em pedra dura...”, o filho da lavadeira ganhou a eleição.
O rei Henrique I e II, famoso no mundo inteiro por sua capacidade de falar sobre tudo e não dizer sobre nada, irado e tentando boicotar de todas as formas o seu sucessor, principiou a vender todos os bens do reino, permitindo que todos os aristocratas que quisessem, por meio do Banco do Estado Real, retirar tudo o que quisessem.
A fome começou a se espalhar no reino, e o preço dos alimentos disparou.
Para surpresa de todos, o filho da lavadeira, que falava melhor o dialeto do que o próprio idioma real, começou a recolocar no dicionário, as palavras solidariedade, dignidade, igualdade e liberdade.
Enquanto isso, o sábio da beira do rio, ouvia tudo e nada falava, somente pensava nas ironias da vida...
Como conhecia todos os moradores do reino, sabia muito bem que os súditos, que nunca foram ouvidos pelos reis antigos, agora só falavam no dialeto desconhecido por estes...
Por conta disto, os aristocratas estavam falando, falando, ofendendo o rei, tentando aprender a falar o dialeto dos pobres.
O sotaque demonstrava que ainda não tinham aprendido, quem sabe um dia?
O sábio do rio assistia a tudo e se ria, sabedor de que nada mais engraçado que um lorde tentando demonstrar que tem “um pé na cozinha”...

Os Três Burros

A vida de um burro é muito difícil e se presta a cada situação no mínimo delicada.
Assim não era diferente a vida de Manhoso, um burrico de idade já meio adiantada, como posso dizer, no outono de uma sofrida vida de trabalhos e de raríssimas recompensas.
Depois de tantas desditas e sofrimentos, aliviados apenas por algumas folhas de uma grama não muito degustável já que, na maioria das vezes vinha acrescida por doses generosas de agrotóxicos usados na lavoura; Manhoso trocara de dono.
O preço de um burro caiu muito nos últimos anos pois a motocicleta substituiu com vantagens o trabalho executado pelos pobres animais.
A moto, além de ser mais rápida, acaba sendo menos custosa e menos trabalhosa já que é mais fácil abastecer um tanque de gasolina do que um estômago de gramíneas, principalmente na época da seca.
Por isso estão desaparecendo os rastros deixados pelos eqüinos, tanto das patas quanto das fezes...
Como havia dito antes, por ser um burro e além de burro, um burro velho, Manhoso foi parar nas mãos de um sujeito meio estranho lá para as bandas do Limo Verde, município de Divino de São Lourenço, no interior do Espírito Santo.
João Traçado, o atual dono do burrico era conhecido por seus porres homéricos e fama de encrenqueiro, tendo tido algumas desavenças com seus vizinhos de propriedade por motivos vários. Somente João Polino, no alto de seus oitenta anos de muita experiência e de autoridade exemplar conseguia dar algum freio às loucuras de João.


Nas redondezas havia um camarada que, entre tapas, pescoções e bebedeiras, tinha um relacionamento estreito com João. Bem mais novo que este, era um rapaz até que bem apessoado mas, como bebia muito e criava tantas confusões quanto o seu companheiro, estava também à margem da pequena e conservadora sociedade do distrito.
Zequinha, como era conhecido, num dia de setembro apostou com João que sabia conduzir com maestria uma carroça.
Ao ver que este duvidava resolveu a questão de uma forma simples.
Pegou “emprestado” uma carroça de um proprietário vizinho e atrelou o pobre do Manhoso ao arremedo de carroça que havia conseguido.
Falo arremedo porque a estrutura desta estava de tal forma deturpada
que, se ninguém dissesse o que era e não reparasse nas rodas nunca imaginaria que se poderia usar aquilo como meio de transporte.

Pois bem, ao ver que o burro estava pacificamente à espera do comando, Zequinha, totalmente embriagado e incapaz de dirigir as próprias pernas, começou a puxar as rédeas de uma maneira totalmente desordenada.
Ao ver que as ordens recebidas eram totalmente incoerentes, o pobre burro que, afinal, não era tão burro como quem o tentava fazer sair do lugar, começou a trocar as patas sem saber se iria à direita, à esquerda ou em frente, ou se voltava, além de tentar decifrar alguns comandos que nunca tinha recebido na sua longa vida de cavalgadura.

Após várias tentativas, João começara a perceber que o seu amigo não entendia patavina de montaria e muito menos das artes de como se comandar uma carroça e começou a sacanear o colega, além de cobrar a aposta que tinha como ganha.

A cada cobrança Zequinha se desesperava mais e mais e com isso virava as rédeas em todas as posições possíveis e imaginárias.
Manhoso que era burro, mas nem tanto, estava exasperado com essa confusa desordem e, cansado da burrice alheia, empacou.

Com o empacamento do burro, os dois bêbados começaram a tentar achar um meio de fazer o bicho sair do lugar, já que o dono da geringonça a essa altura deveria estar começando a dar pela falta dela.

E chama pra cá e rédea pra lá e nada do burro sair do lugar, estava cansado daquela confusão toda.
Até que Zequinha apelou e começou a bater nas ancas do burro.
Cada vez que batia, mais o burro empacava, e neste vai e vem, o dono do burro deu uma pedrada com força.

Ou pela pedrada ou por ter avistado, ao longe, uma moita de capim gordura extremamente apetitosa, Manhoso resolveu sair do lugar.
E começou a correr, num galope inesperado para um velho burro.
Acontece que, ou por um ato de inteligência inesperado ou por uma destas coincidências animalescas, o destino do galope foi a propriedade do dono da carroça que, ao ver aquela cena e reconhecer a geringonça atrelada ao velho burro não pestanejou.
O tiro de garrucha atingiu um burro.
A pergunta que fica é a seguinte:
Qual dos três?

O Vermelho e o Amarelo


Durante minha estada pela cidade de E..., no interior de Minas, conheci uma figura extremamente interessante.
Filho de uma família daquelas que podemos chamar de tradicionais, herdeiro de uma das maiores fortunas em café e gado na região, tinha algumas características bastante marcantes.
A começar pelos cabelos, ralos e precocemente prateados, como se a lua nova quisesse se mostrar mais forte e adiantara um plenilúnio no mínimo interessante. De uma força física inversamente proporcional à sua capacidade intelectual era famoso pelas confusões que aprontara durante a juventude o que lhe dera, além da fama, algumas cicatrizes pelo corpo, principalmente na face.
Isso justificava seu apelido Touro. Pelo menos era o que ele pensava.
Dono de seus trinta e poucos anos Gilberto, esse era seu nome, tinha se casado com uma das mais belas e interessantes mulheres da região, Carminha que, não se sabe se por posição social ou por um destes injustificáveis arroubos da mocidade, resolvera se casar com o famoso brutamontes.
Aliás, isso é extremamente comum entre as adolescentes e as mais jovens.
Com a venda da imagem do príncipe poderoso em miosina e, na maioria das vezes, com baixa quantidade e má distribuição de mielina, são vendidos como o ideal de beleza a ser seguido e conquistado.
Se bem que, na fase inicial da puberdade temos uma quantidade enorme de figuras afeminadas ou, pelo menos, adamadas sendo imputadas às nossas pré-adolescentes como se fossem belas.
Realmente, a maioria destes musos são, fisicamente, mais parecidos com musas; talvez por que a sexualidade feminina a esta época ainda não esteja totalmente definida e a noção do belo ainda está ligada à recém saída infância com seus castelos, príncipes etc... Todos com certo aspecto de feminilidade que, muitas vezes, surpreendem.
Passada esta fase onde os ídolos de Maria do Carmo eram alguns grupelhos nacionais e estrangeiros que faziam algo que, ligeiramente, se assemelhava à música, ela começou a se interessar pelos estereótipos comuns à primeira fase da juventude, onde a noção de macho perfeito para a procriação se resume no aspecto físico já que, emotivamente, ainda não se firmou o discernimento necessário para se fazer uma escolha de melhor qualidade.
Sob essa visão, como posso dizer, trogloditiana da realidade, Carminha encontrou em Gilberto o par perfeito.
O tempo passando e ao ver que não poderia ter feito escolha melhor para os olhos e pior para o cérebro do que aquela, Carminha foi se irritando cada vez mais até que começou a ter crises “de nervo”; ou seja conversões histéricas, o velho furor uterino dos antigos psiquiatras.
Até que, sexualmente, Gilberto não era dos piores embora não sabia o que e muito menos para que servia o clitóris, coisa que, apesar de ter tentado algumas vezes indicar caminho e serventia, deixava Carminha cada vez mais insatisfeita e irritadiça.
Recomeçara a estudar e isso, aliado à eterna insatisfação sexual deram cada vez mais independência emocional e intelectual à bela senhorinha.
Para piorar a situação, o único filho do casal era a cópia fiel do pai, em todos os aspectos; um era difícil, agora dois era castigo e dos piores.
Algumas mulheres com a gravidez se tornam muito mais belas que antes, desabrocham completamente; e esse era o caso de Carminha que, a cada dia, se tornara mais bonita e mais ‘apetitosa”.
Dona de belos e volumosos seios com dois luzeiros amendoados que brilhavam à distância e com formas perfeitas, a cada dia Carminha se tornava mais desejada. O declínio físico do marido era evidente e, apesar da diferença mínima de idade, três ou quatro anos, esta diferença parecia muito maior, fruto das noites passadas entre jogatina e prostitutas em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro, para desespero e ira de Maria do Carmo.
Com a morte do pai de Gilberto a propriedade e os bens da família vieram todos para ele, filho único, e para sua amada consorte que, com ou sem sorte se tornava cada vez mais agressiva.
Por acomodação, como pensava Gilberto, ou por acomodação em outros braços, o que traduzia a realidade, Carminha, da noite para o dia, começou a ficar mais tranqüila e serena.
As crises passaram a se tornar raras e, depois de certo tempo inexistentes.
A causa da cura da bela moça estava há menos de um quilometro do sitio e tinha um nome, Reginaldo.
Advogado cível recém formado e vindo de Belo Horizonte começou a dar assistência advocatícia a Gilberto a respeito de umas disputas territoriais com seu vizinho de cerca, Zé Traíra, conhecido pelas encrencas que criava e pelas qualidades que justificaram seu apelido.
Reginaldo, um jovem louro nem tão bonito quanto Gilberto nem os cantores dos tempos de pré-adolescente, muito pelo contrário, tinha as características que a jovem senhora passara a buscar em um homem.
A mansidão na fala e o sorriso meio carente conquistaram a moça mas, o que definitivamente desarmou-a foi o fato de que, apesar do jeito manso e carente, o rapaz demonstrava-se protetor e muito carinhoso.
Ah! E sabia a serventia do clitóris.


-Bom dia, meu amor!
O sol acabara de trazer vida a casa e, com ele, um sorridente Gilberto tinha acordado e tentava acordar a esposa.
Coitada, as aulas da faculdade iam até tarde e depois havia as reuniões com os tais de grupo de estudos.
Como era época de provas Carminha estava chegando muito tarde, ontem então, passava das duas da madrugada, pensou Gilberto.
Aliás como o estudo estava fazendo bem! Tinha parado de tomar o antidepressivo e dormia calmamente agora. Crise? Nem pensar!
Carminha, entretanto, entre cansada e satisfeita ainda tentava dormir um pouco, se virou de lado e demonstrando ares de cansaço pediu ao marido para que este a deixasse descansar mais.
Embalde!
Gilberto acordara com a corda toda e queria levar Carminha até a cidade para fazerem as compras semanais.
Como ela não tinha mais tempo, era ele que passara a organizar as compras e sabia que o açúcar e o arroz estavam no final.
-Acorda meu amor!
-Ah Gilberto, me deixe descansar um pouco mais, por favor; ontem a gente ficou até tarde estudando para a prova.
-Depois que a gente voltar você dorme de novo, amorzinho...
Esse “amorzinho” era extremamente irritante, fazia-a lembrar das velhas desculpas que o marido tentava arrumar quando chegava de madrugada das casas de prostituição e dos cassinos clandestinos.
Até hoje quando isso não faria a menor importância, a simples referência ao “amorzinho” causava em Carminha certo mal estar.
Mas,fingindo que não incomodava-se com isso e vencida pela insistência do chato do marido, resolveu levantar mas somente depois de um belo “Vá à merda!” soltado com uma exemplar indignação.

Ir às compras era certa força de expressão, já que o que motivava Gilberto na realidade era uma vontade de agradar à esposa passeando até a cidade coisa que, no começo do relacionamento agradava-a, já que a vida de confinamento na roça parecia-lhe extremamente dolorosa.

Pela enésima vez iriam ao mesmo mercadinho que pertencia a um tio de Gilberto, comprar as mesmas coisas, o velho chocolate que Carminha, nos últimos tempos não exigia tanto; o mesmo açúcar, o sal, o arroz e só; já que o resto era produzido no próprio sitio.


- Tudo bem dona Carminha? E o senhor, “seu” Gilberto, como vai?
Encontrar Reginaldo logo cedo não fazia parte dos planos de Carminha e, como fora pega de surpresa, sem maquiagem e dormira pouco, tentou se esconder, em vão.
Empolgado com o que estava acontecendo e com a oportunidade de colocar aspas no famoso Touro, agora literalmente, Reginaldo estava a todo vapor.
Mas Carminha tinha aquele mau humor matinal comum às mulheres mais irritadiças que muitas vezes vem acompanhado da maldita enxaqueca. Como estava abusando do vinho tinto nos últimos tempos, as crises matinais se sucediam e aquele dia prometia mais uma delas.
Às expensas disto, Carminha não respondeu com a esperada gentileza ao cumprimento do amante.
Este, na certeza de que isso não passava de um subterfúgio para afastar as suspeitas do marido traído não se deu por isso e seguiu o seu caminho, sorridente e cantarolando...

Obviamente Gilberto admoestou a esposa, já que os seus negócios estavam sendo administrados pelo gentil advogado.
- Meu amorzinho- de novo! – você tem que ser mais bem educada, quê que o doutor vai pensar?
- Que se dane você e o doutor! Respondeu a mal humorada Carminha.

Com aquela intimidade que somente a cidade pequena e o parentesco proporcionam, o dono do mercado neste momento resolveu interferir no assunto.

- Por falar em doutor, esse aí tá me saindo melhor do que a encomenda!
- Quê que você está dizendo tio Julio?
- Pois é, não é que esse doutorzinho mal chegou e está de caso com uma mulher casada?

Carminha gelou tudo o que tinha direito e mais ainda. Ficou pálida e começou a querer desmaiar tendo que se apoiar no balcão.
Ao perceber a palidez da mulher enxaquecosa, Gilberto associou o mal estar à noite cansativa e o excesso de atividade da querida esposa e logo acorreu, buscando uma cadeira para que a mesma sentasse.
Depois disso, o tio Julio continuou a falar.
- Como eu estava dizendo, estou sabendo que esse camarada está de caso com uma das mais conceituadas mulheres da cidade.

A curiosidade é uma das maiores características do ser humano. Normalmente os machistas atribuem a ela um aspecto feminino mas isso é puro preconceito, ela é generalizada.

Há esse meio tempo Maria do Carmo aflitíssima olhava de rabo de olho para o tio Julio que sem pestanejar respondeu:

-Pelo que eu sei é carm..

Engraçado como em menos de um segundo algumas coisas podem parecer de uma eternidade ímpar, e este era o caso...

Maria do Carmo estava quase desmaiando, certa de que o Touro iria demonstrar ali mesmo o motivo da fama de estouvado e violento que carregara desde a juventude quando ouviu o final da frase;
-...em, filha da dona Maria , aquela que é casada com o Luis Caixeiro...

De repente, de pálida que estava Carminha ficou vermelha, mas quase roxa com um sentimento de ira absurda e de alívio incontrolável.


A partir daquele dia, as crises recomeçaram e Gilberto começou a desacreditar das orações e benzeções que dona Zulmira, mãe de Reginaldo tinha feito para a cura de Carminha..

Filé de Peixe



Uma vez, quando estávamos em Muriaé, num desses dias de verão insuportáveis, o corpo suando em bicas e ventiladores ligados pela casa afora, num janeiro interminável e intenso, chegou à minha casa, o “seu” Valter, amigo do meu pai.

Trazia uma porção de cascudo, deliciosamente perfumada e com um aspecto agradabilíssimo.

Junto com o peixe, trazia a recomendação do meu pai para que ninguém comesse antes dele chegar, fato que se daria lá pelas cinco ou seis horas da tarde.

Para quem não conhece cascudo é um dos mais saborosos peixes de água doce, quase sem espinhos, tendo um paladar único e macio.

O filé de cascudo é uma das iguarias que mais apreciei e aprecio, sendo de um paladar melhor do que o das trutas e salmões que conheci bem mais tarde.

Estávamos sentados a mesa do almoço, eu, minha mãe, minha irmã e minha prima, Patrícia, hoje renomada odontóloga de Muriaé.

Aquele cheirinho, aquele filezinho olhando para a cara da gente, quem iria resistir? Nem você nem nós.

Com arroz branco, começamos a devorar aquele peixe levemente apimentado com sua carne macia e apetitosa.
Recordo-me de minha irmã, Andréa Cristina, palitando os dentes com aquele espinho diferente, não tão achatado quanto o do cascudo, meio que afilado, detalhe imperceptível diante da maravilha que degustávamos.

Meu pai, ao chegar, percebera que sobraram somente dois pedaços, dos vários que “seu” Valter trouxera.

Para nosso deleite, ao ver o que restara, afirmou que estava meio sem apetite e que comêssemos o restante, sem problema.

Minha irmã ficou com um pedaço e eu com o outro.

Fomos dormir, depois disso, satisfeitos como dois paxás.

Mal amanhecera o dia, o pau quebrou entre meu pai e minha mãe.

Essa, com a voz elevada, reclamava e praguejava a torto e a direito.

Ao se esclarecer a situação, soubemos o motivo de tal ira.
Seu Valter, como bom espírita, não comia carne vermelha e havia dito ao meu pai das delícias da carne de cobra, avisando-o que, assim que matasse uma jararaca, iria pedir para sua esposa para fazer uma porção.

Meu pai, temeroso de que minha mãe jogasse prato com cobra e tudo fora, avisou ao amigo que levasse, mas não se esquecesse de dizer que era cascudo e que solicitasse para que não comêssemos antes de sua chegada, a fim de esclarecer e impedir que a gente degustasse tal iguaria.

Ao chegar em casa e ver que não sobrara quase mais nada da refeição, alegara mal estar e deixou para quem quisesse os últimos nacos do “cascudo”.

Esperara o dia amanhecer para explicar à Dona Osília o que acontecera.

O pior de tudo foi que, algumas semanas depois, “Seu” Valter, sabedor do sucesso feito pela jararaca, resolveu trazer uma posta de sucuri, devidamente rechaçada por minha mãe e pela sua secretária, sob a ameaça da mesma de “pedir demissão e nunca mais trabalhar naquela casa de loucos”.

O Anel de noivado

A divisão do trabalho caseiro, nas grandes famílias do interior, era motivo de tranqüilidade para a chefe da casa, a zelosa mãe de muitos filhos e filhas.

Até a filhinha mais nova, com sete aninhos de idade, tinha suas tarefas delineadas e, por mais incrível que possa parecer, a principal delas era a de, toda manhã, ir ao galinheiro, pegar os ovos e verificar se uma ou outra galinha ainda botar, naquele dia.

Para tal, a garotinha enfiava o dedinho mínimo na cloaca da galinha e, com aquele toque descobria se a mesma estava prestes a botar um ovo ou não.

Situação constrangedora para as galinhas que, ao receberem aqueles “carinhos” reagiam com muitos cacarejos de protesto.

Protesto maior quando, por qualquer motivo, Ritinha não podia fazer o serviço e em seu lugar aparecia Maria, dona dos seus vinte e poucos anos e com o dedo, proporcionalmente, maior. Além das unhas, é claro, todas muito bonitas e fortes, para sofrimento das pobres galinhas.

Um dia, o anel de noivado de Maria caiu no galinheiro e, sobre ele, voaram patos, galinhas e até o papagaio que andava solto no quintal.

Na tentativa de recuperar o anel, Maria prendeu todos no galinheiro e começou a verificar se o anel ia sair ou não, pela cloaca.

No meio daquele desespero, e bem na hora que ia ser examinado, o papagaio voou para o alto de telhado e decretou, com toda a força de seus pulmões:
-Comigo Não, violão! Se quiser verificar alguma coisa, só no Raio X!

Melancolia.


No cais do porto, esperando pelo nada, os olhos vazios mirando o ontem, na desesperança de um amanhã, tão sombrio quanto o hoje.

O vestido curto, as pernas marcadas pelas cicatrizes e pelas varizes, celulites até e, principalmente, na alma...
O menino, mal coberto pelos farrapos, último e único troféu que sobrou.

Menino macilento, olhos fundos, mas com aquela força inerente da luta feroz pela sobrevivência.

Uma sobrevivência sem futuro, sem esperança, um ocaso ao amanhecer.

Amores, foram mais de mil, amores de uma noite, de um momento, de uma semana, as brasas ardendo entre as pernas abertas por ofício e automáticas, sem prazer, sem sentido, somente abertas.

Amor um só, o marinheiro forte e violento, responsável por muitas das marcas, feitas a brasa de cigarro e ponta de facão.

Marcas no rosto, nas coxas, nas costas, na vida. Cicatrizes eternas, território marcado, gado marcado, sofrimento.
Mas o prazer, esse não dava para esquecer, prazer violento, doloroso, doce...

As ondas levavam e traziam, o mar revolto anunciava a tempestade, que era bem vinda, mantendo no cais do porto, o navio. E na casa humilde, o marinheiro.

Bem que sabia que não era dela, era do mar, de tantas sereias quantos portos houvesse. Não adiantavam nem as preces que, escondida, fazia.

Os Santos não poderiam ajudá-la e ela bem sabia disso.
Da última vez, ele fora embora mas ficara, ficara dentro dela, nas entranhas, trazendo náuseas e alegrias, dores e esperanças.

Um restinho do que fora, um troféu, um eterno troféu pela vida afora.

A gravidez trouxe a miséria, diminuíam os fregueses, a porta vivia aberta a espera de um cliente, de um real, de um almoço...

Mas, se não fosse a solidariedade de uns poucos...

Entre trancos e barrancos, nascera o menino.

Menino magro e guloso, querendo as mesmas tetas onde o pai mamara tanto, tanto...

Os peitos fartos, agora flácidos eram devorados pelo faminto, mas a sensação de prazer que ficara na memória, teimava em arder e, por isso, nunca negava o leite àquela criança.

O cais do porto, os olhos parados, a desesperança.

E Jesus, olhando para o ontem, assim como a mãe, sem saber por que, repetindo os mesmos gestos e a desesperança a descorarem os olhos azuis...

Jandira


A vida nunca mais seria a mesma!

Ele sabia bem disso e tentava, de qualquer jeito, recomeçar.

Um novo começo era muito difícil, mas se fazia urgente e inevitável.

Recebera um último aviso de seu avô, morto há quase vinte anos.

Era vital para todos, a sua mudança.

O avô era forte, impressionantemente forte e, por isso, respeitado.

Todas as entidades o tinham como um espírito de luz, um guerreiro.

Filho de Xangô, não admitia injustiças, nem perdoava-as.

Vander fora criado pelas tias, duas solteironas frágeis e magricelas, quase tísicas e pelo avô, forte e marcante.

Na mansão de Botafogo, na rua São Clemente, brincava entre as árvores do pomar.

A velha mangueira e a jabuticabeira eram as prediletas.

Doces frutos e sabor de infância.
Mas, com a morte de seu avô, a situação econômica da família foi por água abaixo.

Da mãe, somente as notícias, vagas lembranças de um contato no final da tarde de um sábado e a foto, bela foto de uma mulher com os olhos perdidos.

No Hospital, o nome dela estava arquivado para sempre: esquizofrenia.

De resto, a proximidade do verão trazia as moças bonitas e as suas saias... Adolescente tímido, sem amigos, ensimesmado. “Outro esquizofrênico”,pensavam as tias.
Mas não, era tímido, somente isso.

Daquela timidez voraz que impede o contato com estranhos e limita a monossilábicos diálogos com os mais próximos.
Timidez confundida com incapacidade, mas o tempo provaria o contrário.

Recebera de herança da mãe, um enorme desejo de liberdade, olhando para o céu, onde a imaginava, deu para caminhar a esmo pela praia.

A enseada de Botafogo, lá pelas cinco, seis horas da manhã, tinha um fiel companheiro.

As ondas quebrando nas pernas secas, magras, ossudas.

Morto o avô, nada restou de Botafogo, somente as lembranças.

Quintino, o trem, a estação..
.
A escola Quinze, onde outros meninos, abandonados e órfãos faziam companhia a Vander.

O temperamento mudava pouco a pouco.

Excelente aluno, começara a sobressair-se entre os outros. Isso gerava admiração e revolta.

Ambas eram motivos para aprender a se defender. Os pescoções e os tapas, os pontapés, a navalha percorrendo a carne, o colega morto.

A vida seguindo entre as grades e a necessidade. Fome e espancamento.

Dezoito anos, hora de sair.

Só, sem mais ninguém, resolveu conhecer a mãe e se reencontrar com o avô.

Paulo, colega de escola, irmão de Jandira, bela Jandira.
Com eles, passou a freqüentar um Centro Espírita em Cascadura.

O avô e a mãe, volta e meia apareciam, em meio a um turbilhão de espíritos de diversos matizes.
Mãe louca, mãe boa, mãe.

Agora o avô, não. Esse era altivo e rabugento.

Não gostara de saber que o rapaz estava envolvido em pequenos furtos, quando soube do assassinato de Paulo e o porquê, o velho resolveu intervir.

Bastava já de tantas e tantas besteiras. Precisava recomeçar a vida.

Recomeçar onde e como?

As tias estavam numa quase mendicância, parece que no interior de Minas, Minas não há mais e agora?

Agora restava Jandira, ignorante nas causas e no autor da morte do irmão.

Jandira, companheira, primeiras experiências, as dele, pois ela já se doutorara nas artes e desastres dos prazeres.

Noites quentes, calor embrasador e a boca de Jandira percorrendo todo o corpo, arrepios e prazer, muito prazer.

Pegar Jandira e partir para o mundo, mundo vasto, vasto mundo, Vander e Jandira, estrada comprida...

Cumprira a primeira etapa da viagem, chegou a Espera Feliz, cidade na Zona da Mata mineira.

Pequena e hospitaleira, Espera Feliz acolhera a ambos, sem mais delongas e perguntas.

Começara a trabalhar na colheita do café, ele e Jandira, ambos fortes e sem medo.

Entre os pés de café, a jararaca, o bote, a quase morte.

Soro salvador, quase mata: doença do soro.

Salvo pelo Dr. Ben Hur, médico afamado por aquelas bandas.

Jandira, agora com dois filhos, dois morenos chorões e catarrentos que traziam alegria e medo.

Medo do futuro, mas Deus é bom, dizia Jandira.

Os primeiros sintomas da doença apareceram em pouco tempo.
Cabeça doendo, corpo doente. Intoxicação por agrotóxico.
A vida não poderia ser mais cruel.

Maldita a hora em que Jandira fora pedir a um pai de santo local a ajuda para curar a doença do companheiro.

Paulo, com todas as palavras, dizia através do cavalo onde se incorporara.
-Assassino!
Quem?
-Vander, assassino!
Como?

A perplexidade tomou conta de todos os que estavam no Centro, todos, menos Jandira.

A cura fora completa, o avô interviera com Xangô e tudo parecia estar bem.

A machadada foi perfeita.

Nem o milagroso Dr. Ben-Hur conseguiu dar jeito.
.

No sertão da Solidão



Nasci no sertão de meu Deus, perto de uma curva do Rio Solidão, lá pros lados da Serra da Borborema.
Criado ouvindo o gemido da ema, o mugido do gado faminto e as lamúrias e ladainhas de minha avó.
Filho do nada e de Inalda, moça bonita que partiu para o Rio de Janeiro e morreu no cais do porto.
Assassinada por um estivador apaixonado. Enterro de pobre, vida de pobre, prostituta envelhecida precocemente.
Boi, gado, boiada, fome...

A vida me maltratando com as esporas do destino cravadas no lombo, a mão pesada do patrão, as marcas das amarras e das surras. Moleque matreiro, boi indomável, dei muitas e muitas rasteiras no corisco do azar.

Mas o pequeno boiadeiro cresceu, virou o rei da vaquejada naquelas terras, terras do Coronel Antonio Carlos, velho cruel e protetor.
Os amigos eram protegidos, mas os desafetos, bala e carabina, fuzil e estricnina, morte e sofrimento.
Varrendo todo o sertão da Bahia, égua baia, vida baia, no cocho da esperança, o sal penetra fundo e inunda de sede quem tenta a sorte.

Rei das vaquejadas, meu futuro estava traçado, montando os cavalos bravos e rompendo o sertão de Minas, lá no Jequitinhonha, acabando no mar, como o Riacho que norteava a vida, o riacho da Solidão.

Seu moço, não quero agradar a ninguém, se quiser pode ir embora que não me importo não, mas se quiser me conhecer, é melhor preparar o estômago e agüentar o tranco.

Filho de prostituta e do nada, sou víbora também, não sei suportar arreio, de tanto chicote não temo mais nada, nem a espora dos coronéis nem os anéis das Marias nem das Joanas.
Quero, antes, a liberdade do vento na cara. Essa marca nas costas lembra um A, mas não é marca do gado que não sou mais, é marca do chifre do touro bravo que montei, sangrando.

Liberdade, me falam que estás na bandeira mineira, eu acredito, pois é a minha bandeira, ainda que demorada.
De morada fiz o meu mundo nessa terra sem dono, sem rei, meu reinado.

Meu mundo é o novo, onde não existe mais gado, nem laço, sem cansaço e servidão.

Sem serventia, sem valentia, somente o vento na fuça, o vento tragando tudo. Me inundando de alegria.
Não quero ser coronel, nem quero coronel, não quero jagunço, nem gado e nem montaria.

Quero poder voltar para o Rio da Solidão, buscar minha avó, encontrar Inalda, minha mãe, atravessar o caminho do estivador no cabaret da praça Mauá, quero poder ser de novo um menino, sem marcas e sem esporas.

Quero ser o rei, reinado de menino, reisado e romaria, rota nova, vagando pelo sertão.
Ser tão e tão ser, certo no incerto da vida.

Espera sem espora, sem expor a cara pra tanto tapa. Tapados os olhos, os óleos sagrados de Deus nas costas, onde o A da cicatriz sumiu. Os calos da mão sendo substituídos pelos claros do caminho.

Viver em disparada, sobre meu cavalo correndo pelo sertão, desse reinado sem rei...

EPIDEMIA

Sabia que restavam poucas horas, poucos minutos, era uma questão de tempo. Favas contadas, sabia que não tinha mais escolha.
Recebera a notícia havia muito pouco e essa era a sua última manhã.
Fora a vida inteira um pragmático. Sabia que a morte era inevitável.

Até a desejava, no íntimo.
Daria tempo para arrumar o quarto? Mas, para que arrumar se nunca mais seria seu, se nunca fora e não mais dormiria naquela cama.
Tudo seria incinerado, tudo.

Tinha consciência disso, inclusive fora um dos principais lutadores para que fosse assim.
Seu sacrifício seria a salvação de muitos, mas não de todos. A mulher já tinha ido embora, graças a Deus!
Levara pela mão o filho, única esperança que restava, nada mais.

A cidade estava infestada e sua batalha fora necessária, um sacrifício que, para muitos seria estúpido, mas inevitável.
Contabilizavam-se mais de milhão de vítimas fatais, isso sem contar às milhões e milhões contaminadas.
O homem ainda venceria, como sempre fez, desde tempo imemoriais.

Mas agora, nada mais a dizer nem a fazer.
Tinha que ligar para o centro de controle e sabia o telefone de cor.
Daí para a incineração de tudo e, principalmente, a dele.
Parecia cruel que, em pleno século 21, isso acontecesse. Mas era inevitável.

A morte seria inevitável, morte dolorosa e sem ar, com uma falência múltipla de todos os órgãos e funções.
Morte extremamente dolorosa, melhor seria uma aplicação venosa de cloreto de potássio. Ardia, mas era melhor que a agonia.

Depois, a incineração, o corpanzil reduzido a cinzas. Seus livros, memórias e suas músicas, tudo agrupado numa sacola e enterrada.
Junto com tantas biografias, seria estranho se pudesse entendê-las, ou as conhecer.
Ali, ao contrário dos cemitérios convencionais, não haveria nenhum resquício das diferenças de classe.
Todos sepultados em profundas covas, sem nome, sem identificação.

O telefone tocara e isso o despertou, faria sua última ligação, suicida. Necessária.
A noite trouxe a hemoptise e a epistaxe, a cama ficara rubra, totalmente inundada.
O suor denunciava a febre e o medo apoderara-se.
O laboratório já o havia prevenido, sabia bem o que tinha que fazer.

O antes portador era agora doente e, portanto ativamente contaminante.
Ao atender a chamada, não pode deixar de engasgar.
A mulher e o filho, como sempre, perguntando como estava.
Preferiu mentir, de nada adiantaria a verdade, de nada.
Tudo bem, estou ótimo, cada vez mais forte...
Assim que desligaram, não teve escolha.

“Sim, doutor, sabemos como agir.”
“Espere um pouco, sim, estaremos aí em meia hora.”
Meia hora, tempo para nada, nada...
Tomou um banho e sorriu.

Olhou para cada metro do quarto, numa inútil e insensata despedida.
A porta abriu-se, reconheceu o enfermeiro.
“Vamos lá, sem piedade.”
O fogo ardeu tudo.
Nada restou, nada.
Vazio...

Do abandono - Para Maximo Gorki


Havia na pequena cidade no sul do Espírito Santo, uma daquelas figuras folclóricas comuns no interior do país.
Demente, andava pelas ruas, sem lar ou abrigo constante, adotado e abandonado por todos. Um quase mendigo, um quase cidadão, na verdade, quase gente.

Na fria cidade, nas noites mais geladas, às vezes era recolhido pelo Asilo, mas não suportava a clausura e fugia, sempre fugia, retornando às ruas.
Pela característica falta de todos os dentes, ganhou o apelido de “Sem Teclado”.

Não fazia mal a ninguém, nunca se soube de ter agredido a quem quer que fosse incomodando mais pelo mau cheiro e pelo aspecto da falta de higiene do que por atitudes.
Com certeza era menos maléfico que a maioria dos nossos políticos, e muito menos do que certas pessoas das elites governantes de vários locais desse país.

Beber; bebia, mas era raro encontrá-lo bêbado.
De um tempo para cá, dera de buscar abrigo no Pronto Socorro municipal da cidade.
Dependendo de quem estava de plantão, sua presença era suportada.
Muitas das vezes, encontrava uma cama, uns restos de comida e coberta.

Cão sem dono se acostuma a afago, mesmo que seja somente o suportar a sua presença. Esse era o caso. Começara a ir, quase que diariamente, ao Pronto Socorro em busca da cama, do calor e da comida.
Um dia, plantão tranqüilo, noite fria, tudo transcorrendo tranquilamente.
Mas, para susto de todos, ouviu-se uma voz gemente, ao longe.

O gemido aumentava de intensidade, deixando os enfermeiros e o médico de plantão de sobressalto.
Pensando que fosse algum paciente com dor ou tendo seu estado de saúde agravado, o enfermeiro de plantão, resolveu ir ao Hospital, anexo ao Pronto Socorro.
Nada, não havia ninguém gemendo.

Aí, um dos funcionários do Hospital se lembrou dos leitos do Pronto Socorro, afastado do local onde dormiam todos.
A chuva caindo, e a ausência de pacientes graves, deixara todos tranqüilos.
Havia somente dois pacientes no repouso, uma bêbada que sempre exagerava na ingestão de álcool e o “Sem Teclado”.
De repente, ouviu-se a voz estridente do funcionário que, aos brados chamou a atenção de todos sobre o que estava acontecendo.

Num ato de amor, de compaixão ou de selvagem atração, Sem Teclado e a bêbada, entrelaçados se amavam sobre a cama desarrumada.
O funcionário, como se estivesse, naquele momento, assistindo a um ato simplesmente animal, não pestanejou.

A água fria jogada sobre o casal, afastou-os, cães abandonados pela vida, vira-latas sem paradeiro, sem abrigo e sem rumo.

A chuva chorava pelos dois, abandonados por todos, expulsos e jogados na rua, naquela noite incrivelmente gelada da cidadezinha.

O funcionário sem pensar no que falava, repetia a todo o momento:

“-Vai que isso procria”...

Cena de sangue num bar...


Aquela tarde foi decisiva. Esperara o telefonema de Neuza durante a semana toda, e nada...

Nada de Neuza, nada do amor tantas vezes jurado e sonhado. Chegara a querer Neuza mais que a própria vida.

Vida, que vida? Amores são coisas passageiras, fazem passar o tempo, assim como o tempo faz a gente esquecer.

Esquecer como? As noites, tantas noites, a embriaguez de Neuza, o copo de cerveja esvaziado a cada instante, a vida passada nos braços e nos desesperados pesadelos.

“O amor, quando é demais, ao findar leva a paz”, mas não é somente isso, levou a vida.

O tempo congelado, a vida congelada, o emprego se danara, a esperança também.

Restara somente um sabor, o jiló da vida dera o amargo mote para uma existência sem sentido, sem paz, sem futuro.

Apenas uma coisa restara, a vingança.

Vingaria, de qualquer forma, custasse o que custasse.

A magia da esperança se tornara no desencanto da perda, da pedra incrustada no peito, na alma, no que restasse...

Ao descobrir, tempos depois, que Neuza estava namorando um velho amigo, tudo desabou de vez.

Logo ele, a quem tanto dera apoio, nos momentos mais difíceis, amigo do peito, amigo... O peito, a faca, a vida rodando, girando como se fosse uma roda gigante, no parque sem graça da infância recordada, na destruição do que antes construído com muita dedicação e luta.

A rosa vermelha, a boca vermelha, os bares, o Campari, sem amparo, no doce amaro das noites.

A sinuca passara a ser o ganha pão, as apostas, as perdas e danos da lida transformadas em porres homéricos, em pileques gigantescos, onde Neuza rodava, girava e o sangue...

O gosto da vingança estava na boca, ruminado, único norte, único rumo...

Sabia que Neuza iria ao parque, ao bar, ao mundo, e a esperava.

Num momento, os dois rodando, girando, sentados no bar. Na esquina, no bar, o vermelho da rosa colocada sobre a mesa, na toalha vermelha, as cadeiras vermelhas, a mesa...

No momento final, a faca erguida, veio toda a vida, desde a criança pobre, à chefia do departamento, abandonada, jogada fora...

E, num instante, a face avermelhada pela embriaguez, a desesperança, a gravidez de Neuza denotava a vida que viria, a esperança que não mais lhe pertencia e a faca...

Uma só bastou, a pontaria era boa, o sangue pela boca, o coração aberto...

Aberto o peito, sobraram os gritos apavorados de Neuza, e o medo estampado no rosto do namorado.

COMO DOIS ANIMAIS

Havia naquela pequena cidade, como em praticamente todas as que conheci o “doidinho” que fazia o medo da criançada e, por inofensivo o riso dos adolescentes e a “limpeza” de alguns pecados das mulheres e homens do local.

A população sustentava e protegia o seu “cãozinho” inofensivo, do frio e da fome.
Mas aquele tinha uma particularidade interessante, era muito bonito.

Tinha uns olhos azuis que fascinavam, às escondidas é claro, as mocinhas do lugar.

Os seus cabelos cacheados e ondulados também chamavam a atenção delas, mas, a debilidade mental protegia o pobre rapaz das “gulosas” moçoilas.

Menos de Marcinha, essa não, essa nunca respeitara a inocência e ingenuidade do pobrezinho.

O sexo é inerente, instintivo mesmo, e a resposta aos estímulos eram imediatas.
Nos jogos de sedução e prazer, muitas vezes jogados nas matas e nos cantos escondidos da cidade, o nosso herói era extremamente eficiente.

Pois bem, Márcia mudou-se com a família para outra cidade, e por lá ficou um bom par de anos, estudou, formou-se e, casada, voltou para a pequena cidade onde nascera.

Seu marido era homem de posses regulares, mas, que em relação aos moradores do pequeno lugarejo, poderia se considerar quase que “rico”. E, ao se preparar para a mudança, resolveu comprar uns alqueires de terra próximos a sede do município.

Nessas alturas, Márcia já tinha e esquecido das brincadeiras de adolescente e imaginava até que o doidinho já houvera morrido, também isso não tinha a menor importância; a moça crescera, amadurecera e essa página do passado já tinha sido cremada da memória, como se fora um sonho longínquo.

Reparara ao chegar à cidade, que quase tudo estava como deixara, suas amigas de juventude estavam quase todas casadas; as casas estavam nos mesmos lugares, só que mais envelhecidas, o barzinho da praça tinha fechado e, no seu lugar aparecera um trailer, onde os jovens se reuniam para namorar, conversar, essas coisas corriqueiras.

Mas uma coisa lhe chamou a atenção, na pequena cidade não havia mendigos à sua época e, agora, tinha encontrado um dormindo na rua, com aquele cheiro inerente do homem, que a água e os perfumes disfarçam.

Seu marido comentava, com tristeza, a que ponto a miséria e a bebida poderiam levar um ser humano, exposto como se fosse uma ferida aberta, uma vergonhosa chaga.

Entretanto, mal poderia imaginar que, aquele homem bêbado, de olhos baços e cabelos embranquecidos, desdentado poderia lhe ser familiar.

O tempo havia mutilado a beleza do lunático, deixando as marcas indeléveis da pobreza e dos maus tratos no pobre rapaz.

Andava, como sempre, solto nas ruas, mas, como perdera o encanto da juventude, estava cada vez mais abandonado por todos, fadado a amanhecer morto de fome ou de frio nas ruas do vilarejo.

A bebida por companheira, e para isso sempre tem alguém que colabore, tomara o lugar da comida, a tosse denunciava a tuberculose que minava aos poucos o corpo, não deixando muito, restando somente a podridão em vida, daquela vida sem brilho, sem nexo.

A vida transcorria serena e suave na cidadezinha, com seu noticiário diário dado e ampliado pelas fofoqueiras de sempre, os homens trabalhando, as crianças estudando e brincando nas ruas calçadas com “pé-de moleque”, ou ensaibradas à espera da chuva.

Mas aquele dia seria diferente dos outros.

A Igreja promovera uma quermesse para arrecadação de dinheiro para a compra de novos bancos, já que os velhos estavam destruindo-se com o tempo e os cupins.
O marido de Márcia, para orgulho dessa, era um dos mais animados arrematadores do leilão improvisado.

Todas as suas amigas tinham ficado com inveja dela quando conheceram o belo rapaz; educado e gentil. O tipo de homem que era o principal sonho de consumo das moçoilas do local

E, ainda por cima, rico, muito rico...

Nesse ínterim, eis que surge o bêbado descrito anteriormente e, para espanto de todos, segura Márcia pelo braço e a beija violentamente.

O espanto se tornou geral, já que o nosso doidinho sempre fora pacato, manso, sem sinais de agressividade ou de qualquer tara.

Márcia olhou assustada, a princípio com nojo como era de esperar; mas, de repente, como num lampejo, num átimo, reconheceu no bêbado, o amante de outrora.

E, para terror de todos, se deixou levar, com os olhos fechados e a boca entreaberta, as mãos viajando, o corpo tremendo e, numa entrega sem par, sem reparar em nada e em ninguém, para escândalo de todos, se amaram ali mesmo.

Num encontro inesquecível, a onça renascera e, junto com o cão vagabundo se “amaram na praça como os animais”.

"Recordar é viver.. "

Chegaram-me notícias fresquinhas de uma pequena cidade de Portugal, Barra da Vila Alta, com um caso inaudito, mas de reflexões necessárias.

Na pequena aldeia lusitana, havia um motelzinho pequeno e afastado do centro da cidade, como todo motel deve ser; bastante discreto para que os moradores da pequena cidade e de seus arredores pudessem “divertir-se” sem maiores complicações e com o sigilo que as travessuras merecem, ainda mais num local tão conservador quanto o Trás os montes portugueses; já que com os tempos modernos, os atos detrás dos montes ou dos matos estavam se tornando muito perigosos ou mesmo arriscados.

Pois bem, num desses atos condenáveis de oposição ao prefeito, Luiz Silva, um de seus principais adversários, o vereador Ontário Netos, acusado de ter sua campanha política associada ao crime organizado e ao tráfico de drogas, num ato de total irresponsabilidade e vingança absurda, ofereceu ao dono do Motel Paraíso, os serviços de um cidadão, Francis Ildo, conhecido como bravateiro e fofoqueiro pelos seus vizinhos, na aldeota de Piau, distante do TRÁS OS MONTES.

Assim que começou a trabalhar no Motel, Ildinho começou, a mando do seu patrão, Ontário, a anotar todas as placas de quem entrava no recinto e a que horas foi e, se possível, com quem.

O secretário Municipal de Finanças, Antoniel Palhoça, homem pobro, de caráter extremamente íntegro, homem admirado por todos, muito bem casado, pai de um par de filhos muito queridos por todos, havia sido incluído por parceiros de bandidagem de José dos Anjos, traficante barra pesada, que estava associado, segundo dizem a Ontário, numas denúncias sem comprovação de corrupção.

Na Câmara dos Vereadores municipal, aberto um processo de investigação sobre o caso, Ontário, ao ser acusado por um bedel local, de que haveria provas contra si, num ato tresloucado, resolveu agir.

Num belo dia, Ildo, sem nenhuma comprovação, disse que havia encontrado o Secretário das Finanças, ele mesmo, Antoniel Palhoça, entrando com um carro dentro do motel e, para espanto de todos inclusive do Secretário, dirigindo o próprio carro.

Isso era de se espantar, pois, o dito secretário não sabia dirigir, mas isso são detalhes...

A placa do automóvel, ao ser averiguada pelos investigadores, causou uma imensa surpresa.

A que Ildo tinha anotado não pertencia ao Secretário e sim, pasmem à digníssima mãe do vereador...

O problema é que a História tomou outros rumos, o Secretário se demitiu, com o intuito de salvaguardar a honra pessoal, Ontário ficou meio sem rumo, mas continua vociferando asneiras a três por quatro.

Ildo virou herói municipal e Joaquim Manuel, amante da mãe do vereador, tira melecas do nariz...

OLHOS AZUIS


Acordara cedo, como sempre fazia desde há muito tempo, criado sozinho; desde os tempos mais pueris da vida fora obrigado a trabalhar; primeiro com os tios na roça, depois com o mesmo patrão que tinha sido do pai, falecido no início dos primeiros passos, lembranças esquecidas dentro de uma gaveta qualquer, há muito fechada.

Olhou para o corpo estendido na cama, corpo de belas formas, da morena bonita que conhecera e logo se apaixonara; casamento de 10 anos, quatro filhos e poucas alegrias.

Reparou bem no despertador, 5 horas, como sempre, mesmo nas férias não conseguia acordar mais tarde, escravo de uma rotina cruel...

Naquele momento pensou na noite anterior, noite longa e estranha, cheia de fantasmas e pesadelos, o que ultimamente se tornara costumeiro, quase diário, gritos e tumulto de gente correndo, coisa estranha...

Pacato desde menino, “incapaz de fazer mal a uma mosca”, segundo comentava o tio; tio que fora pai, num ato de amor sem cobranças, amor verdadeiro.

A tia nem tanto, não gostava daquele menino melequento correndo pela casa, bastava-lhe os três que a vida deu e ainda tinha que aturar esse pestinha.

Ainda mais filho de quem, daquele mesmo que fora o primeiro, grande e único amor de sua vida; mas a irmã era mais bonita...

A peste do menino, a cada dia mais se parecia com o pai, tão diferente do seu marido, irmão do safado...

Aqueles olhos azuis do cunhado ficaram atormentando sua vida por longos anos, agora aquele moleque solto pela casa.

É provação divina, provação e provocação, como podia agüentar?

E a vida foi passando entre quintais e escola, brincar era difícil, só se a tia não estivesse em casa, a megera era terrível.

Proibindo tudo, e trancando o menino dentro de casa como se fosse uma donzelinha vigiada. Tia muito estranha, vez em quando observava os olhos dela sobre os seus, descansados e desavisados.

Quando fez quinze anos, sexo explodindo nas noites solitárias, no calor queimando tudo, em pleno inverno, acordando numa febre, febre incontida, desesperada...

E o prazer culpado, pecado, segundo a tia e o padre...

Um dia, esquecera a porta aberta e, surpreendentemente quando olhou para o lado viu uma sombra correndo pela casa afora, estranha sombra, que adivinhava ser da tia, mas não podia garantir.

Aos dezessete conhecera Marta, morena maravilhosa, corpo perfeito, coxas duras e dentes alvos, radiantes.

O tio ficou muito contente, sobrinho trabalhador, morena bonita, casal perfeito.

A tia calada, cada dia mais se trancafiava no quarto, menopausa falou o doutor, o tio aceitou e, com paciência foi agüentando as crises cada vez mais freqüentes da mulher; boa mulher, mas muito temperamental, “problemas de nervo...”

O primeiro filho chegara com o outono, casamento às pressas, Marta grávida, barriga grande, estrias muitas, Marta estava diferente e os dentes começaram a cair, pouco a pouco até não restar mais nenhum.

Menina bonita que a gravidez modificara e trouxera um menino diferente, doentio, fraco dos peitos, menino estranho que quase não chorava e, se chorava era fraquinho, quase um gatinho miando.

Dois anos depois, o segundo menino, forte, robusto, parecido com ele, dono dos mesmos olhos azuis, quem sai aos seus não degenera...

Depois as duas meninas, gêmeas, bonitas e dengosas, Marta reeditada, mas com os olhos azuis, os mesmos olhos do avô e do pai.

A esse tempo já se mudara para a cidade e trabalhando como pedreiro, fizera certo sucesso e tinha sempre emprego, e Marta conseguira um emprego como faxineira na escolinha perto de casa.

Vida simples de gente simples na cidade simples, mas os sonhos estavam deixando-o preocupados; sonhos repetidos e cada vez mais estranhos.

Aquele dia, então, os sonhos pareciam tão reais que era como se tivessem sidos verdadeiros.

O estranho é que, reparara a algum tempo, quando se olhava nos sonhos estava mais envelhecido, enrugado mesmo, como se tivesse passado muitos anos, e havia uma sombra de uma mulher com o rosto esfumaçado e, reparara num detalhe, uma coisa que chamara a atenção foi um anel que a mulher usava na mão direita, algo assim como um anel, um anel sim... De prata, com um desenho estranho, parecido com aquele que vira numa foto, sobre o Egito, com o rosto de uma mulher...

Aquela manhã; ao ver Marta deitada, com as coxas fortes e grossas exposta, resíduo de um passado glorioso, mostrando que onde havia estrias e flacidez, houvera uma cabocla desejável, pensou na vida passada e agradeceu a Deus pelo que a vida lhe dera; uma mulher boa e companheira.

Achara que o sonho era com Marta, mas ao reparar bem viu que Marta era mais alta, mais cheia de corpo que a mulher do sonho.

Ao se preparar para tomar o café, foi interrompido por uma gritaria que vinha da porta.

Um moleque gritava a toda, arfando e chamando-o pelo nome.

Ao abrir a porta, percebera que tinha se arranhado e fundo, não se lembrara, mas o trabalho estava muito árduo e poderia ter se machucado, sem perceber, isso vez em quando acontecia. No começo estranhara, mas agora já estava acostumado.

O menino então disse ao que veio.

Sua tia tinha morrido, amanhecera morta, e parece que seu tio é que tinha matado a velha. Ela estava toda machucada, estropiada, mesmo.

Saiu correndo e fora ver o que tinha acontecido.

Ao chegar à casa do tio se deparou um espetáculo dantesco; a porta arrombada, a casa toda revirada com sangue para todos os lados.

Na sala, o corpo da tia todo cortado, cheio de equimoses, os olhos esbugalhados, saltando da órbita, uma cena terrível.

O tio, preso algemado, gritando desesperado, negando tudo, porém as marcas no seu rosto denunciavam que havia tido luta, uma luta gigantesca.

- Não fui eu!! Não fui eu!!! Gritava o tio.

Falava confuso sobre um assaltante ou coisa que o valha que tinha entrado na casa, agredido a mulher e ele, ao defendê-la teria sido atingido pelo homem que, encapuzado não deixava ver nada, a não ser os olhos,, estranhos olhos azuis...

Um detalhe passara despercebido de todos, inclusive do nosso herói; num canto da sala, jogado no chão um anel, com a esfinge esculpida...

A partir daquela noite, coisa estranha, nunca mais teve aqueles pesadelos...

NUNCA MAIS


Tem coisas que ninguém explica, e aquela era uma delas. Como é que eu tinha dormido ali?

Não me lembro de nada vezes nada. Só sei que tinha saído de casa para ir até o cinema.

Do cinema me recordo um pouco, acho que o filme, espera aí. Filme, mas qual filme?

O telefone tocara; bem, disso eu me recordo telefone maldito, sempre tocando nas horas mais estranhas e incômodas;

Ela estava dormindo do meu lado, ela e o telefone.

Mas daí em diante, o vazio, não total porque tinha o cinema e o filme.

Desses dois e mais nada.

A cabeça girava e eu estava ali.

Na casa, bem naquela casa.

O amor tinha sido antes e distante.

Naquele instante ficara o vazio.

Somente o vazio do que não fora, aborto total.

Gigantesca roda da vida dando voltas e mais voltas.

Mariana estava longe, perdida em seus casarios.

Mas retornara em Mariana, moça bonita e tresloucada.

Casamento marcado, alianças compradas e o vazio. A morte do amor, segundo ela, foi difícil entender, aceitar e nem perdoei bem ainda.

Recebi outro beijo, desejo à flor da pele e Renata, é renée, renascida, renata.

Esperanças e Renata são sinônimos.

Mas o telefonema e essa cama desarrumada me confundiram.

Nessa confusão, quem sou o que sou, e o que significa isso tudo?

Bêbado não estava, nem beber estava bebendo, somente fumava fumaça e fumaça, tosse e cansaço. Mas álcool, nada.

E como chegara até esse quarto?

De repente, o barulho do chuveiro me alertou.

Não estava sozinho e nem poderia estar, que imbecilidade!

A vaca devia estar se lavando, tomando um daqueles banhos demorados que tanto me irritavam.

Vaca, piranha, pilantra, safada. Mariana!

Mas o cheiro não era familiar, era um daqueles perfumes estranhos que não conseguia identificar.

Coisa nova, perfume novo, cama antiga, desilusões idem.

O relógio de sempre, marcava 8 horas da manhã. E o meu trabalho?

Caramba, essa vadia me fez perder a hora, tudo bem, me arrumo e vou embora.

Procuro minha roupa, cadê roupa?

No chão, por baixo da cama, sobre a poltrona da sala, nada de roupa.

Não, eu não viera nu para cá, ninguém vai ao cinema nem sai de casa nu.

Isso estava muito confuso.

O celular toca, vou atender, Renata.

Fala-me de coisas que não consegui captar direito, algo assim como espera para jantar, minha ausência, essas coisas.

Onde estivera?

Francamente respondo que não sabia, acho que tinha ido ao cinema, mas acho.

Qual filme? A resposta vaga deixou um tchau como fim de papo e, talvez, fim de romance.

Mas, fazer o quê?

O chuveiro continuava aberto, tento levantar, a cabeça roda. Ressaca sem ter bebido.

Noite comprida, dia também. As recordações giram junto com a cabeça.

Realmente Mariana tinha sido meu grande amor, mas, que vá para o inferno!

Tenho vontade de xingar a vagabunda e começo a gritar. Ou pelo menos, é o que penso fazer. A voz sai baixinha, lenta, como um gemido seco, contido.

Recordo-me das noites em vão, esperando Mariana, compensada pelas noites maravilhosas em claro.

Noites regadas a muitos e raros prazeres.

Dane-se, isso passou, acabou...

O chuveiro foi desligado.

O barulho cessa, mas o coração dispara taquicárdico.

Sabe-se lá o que se fazer nesse instante.

Sinto o gosto estranho de ferro e de estanho, trincando os dentes e arranhando a garganta.

A porta está se abrindo, Mariana, sua cadela, vou acabar contigo!

Quando a vejo nua, começo a entender o que vivera.

Quão forte fora esse sentimento. Amor regado a rancor e ódio,

Gosto violento de tristeza e desamparo misturado com o prazer inesquecível.

Mas, ao vê-la, de súbito a força perdida ressurge e, num átimo me atiro contra a porta, abro-a e saio correndo.

Na portaria do prédio, confusão e voz de prisão.

Nada entendo, não compreendo o porquê.

Homicídio. Mas de quem e como?

As mãos algemadas são arrastadas e, sem resistência, sou levado de volta ao quarto.

Agora percebo a cena terrível. O quarto todo revirado, o corpo ensangüentado na cama, a cabeça inerte pendendo para o meu lado.

Os olhos de Mariana abertos, e o vazio no olhar.

Vejo minhas mãos, agora reparo no sangue, nas marcas de sangue na minha roupa.

E aquela sensação estranha me acompanhando, rumo ao cárcere.

Onde a voz de Lenora repete num cruel solilóquio: “never more, never more”...

O BEIJO

O medo a acompanhava desde menina, medo cruel e tenaz, medo de tudo e de todos.

A voz não a largava nunca, voz intensa e repetitiva, uma voz que, desde seus tempos de adolescente nunca se calava.

A mãe já tinha levado-a a todas as benzedeiras, pais de santo, pastores, enfim a todos os que eram indicados pelos vizinhos e amigos.

Nada adiantava nada; o doutor tinha passado uns remédios, mas também sem efeito.

O efeito máximo que consguia com os medicamentos, era dormir, mas os sonhos repetiam todos os fantasmas do dia.

Nada mais podia fazer. O simples fato de andar já a estava deixando em pânico.

Um caso de possessão demoníaca, por certo, dizia a tia religiosa, o caso mais claro que tinha visto na vida.

As excomunhões se repetiram, a voz parara, mas, agora, não era somente uma, era uma legião de demônios que tomavam conta da pobre endemoniada.

A tia, vendo que as coisas estavam mudando, apavorada com a legião de demônios que, a partir daquele momento, tomaram conta da pobre sobrinha, resolveu consultar um conhecido, autoridade máxima em assuntos de possessão, respeitado até por outras designações religiosas.

A vinda dessa autoridade mexeu com todos na pequena cidade, a ponto de virem pessoas até das cidades vizinhas para presenciar o milagre do pastor.

Esse, ao perceber que o caso era muito complicado até para ele, principalmente pelo fato de que, a menina, ao falar grunhia e gemia incorporando outras vozes e idiomas diversos, incompreensíveis mesmo, além de resistir a qualquer intervenção dele. Então, diante da sensação de impotência, resolveu consultar outra autoridade no assunto.

Essa "autoridade" era um verdadeiro estelionatário, vivia da fama adquirida por “espetáculos” pré montados com "artistas” regiamente pagos para suportarem os tapas e tabefes soltos à revelia.

Vivia da fama adquirida por esses “milagres” e mantida pela divulgação bem feita, principalmente nas cidades menores.

O pastor, de boa fé, obviamente, contactou esse trambiqueiro que, a peso de ouro, se dispôs a ir para “curar” a pobre adolescente.

Ao vê-la, uma coisa o assustou, os trejeitos da menina eram os mesmos de Amélia, o amor de sua adolescência, e a sua primeira vítima.

Do amor impossível ao estupro e desse ao assassinato foi um pulo.

Amor frustrado, o corpo jogado no rio, encontrado poucos dias depois, ninguém suspeitou nem suspeitaria dele, menino tímido e quieto, incapaz de “fazer mal a uma mosca”.

Entretanto, o tempo passara e Melinha tinha sido esquecida e ocultada num canto qualquer de um passado longínquo.

Mas o andar manso da menina e, principalmente o nome dessa o fez ressuscitar essa lembrança;

Amélia esquecia de dizer seu nome, mas agora que tenho a imagem de tudo que aconteceu viva na memória, não posso mais ocultá-lo.

A pobre menina estava exausta, vítima tanto dos demônios quanto dos exorcistas.

Nenhuma lucidez restava mais naquela mente conturbada, doente, sem compreensão e ajuda a não ser o misto de agressões verbais e físicas.

Porém, os olhos parados e resignados, ao verem o milagreiro se transtornaram e um gemido formidável ecoou pelo vilarejo.

Com fúria, passou a xingar e ofender o exorcista, aos gritos de: Assassino! Assassino!!!

Este ficou assustado com tal manifestação associada com a lembrança do passado, recém acordada por uma associação estranha entre aquela Amelinha e a sua, o deixou em alerta.

O que queria dizer isso?

Quando a menina, não sei se por acaso ou se por uma força estranha, entre dentes disse-lhe “Amélia, Amélia”, esse se postou de joelhos e numa atitude surpreendente, beijou-lhe os pés e pediu perdão.

Todos ficaram assustados com a cena, o exorcista havia se rendido ao demônio?

Beijara-lhe os pés e pedia-lhe perdão, o que queria dizer isso tudo!?

Num átimo, para desespero de todos, a menina pulou sobre ele e agarrou-o pelo pescoço.

Não iria mais tirar suas mãos, até que, numa atitude insólita, sua mãe, a mesma mãe que amava-a tanto, pegando no machado que pendia na cozinha, desferiu golpes a esmo.

De imediato, os dois corpos quedaram-se sobre o chão ensangüentado

Juram que viram os dois abraçados, com as bocas, coincidentemente postadas uma na outra, num enigmático beijo.

A alma feminina


Chegara há pouco naquela cidadezinha perdida nas matas das Gerais.
Médico recém formado, dono dos invejáveis vinte e cinco anos de idade; época da vida em que se é rei e não se percebe.
Fora contratado para trabalhar no Programa de Saúde da Família, trabalharia na zona rural, num pequeno distrito longínquo da sede do município.
Nos primeiros dias, a notícia de que havia um jovem doutor se espalhou pela cidade, alvoroçando o coração da moças casadoiras e namoradeiras do lugar.
Extasiado com tanto assédio, começou a ter o prazer de ser bajulado e cortejado por todos na pequena cidade.
Feio não era, até pelo contrário, mas era tímido. Muito tímido por sinal.
E isso o impedira de ter tido as experiências com o sexo oposto comuns à sua idade e a "posição social" que atingira, de repente.
Família pobre, estudando com todas as dificuldades que são lugares comuns nesse país das injustiças, conseguira se formar com muito sacrifício de todos, inclusive dele.
No Rio de Janeiro, enquanto seus colegas saíam à noite, nas baladas cariocas, ele ficava em casa estudando ou dando plantões e mais plantões para ajudar a pagar a faculdade.
Mulheres? Não as teve, exceto uma ou outra namorada que, ao perceberem que o namoro se resumiria a um cinema no final da tarde ou um refrigerante na porta da faculdade, rapidamente iam "cantar em outra freguesia".
Uma das coisas que o médico do Programa de Saúde da Família tem que fazer são as visitas domiciliares.
Normalmente, na zona rural, a realidade é muito diversa da que estão acostumados os urbanos doutores.
A simplicidade e a pobreza são lugar comum; mas a recepção com um cafezinho ou com a fruta da época são freqüentes. Café com guarapa, como é conhecido o caldo de cana nesses grotões.
Um bolo de fubá aparece, não se sabe como e é degustado com prazer verdadeiro e risonho.
Naquela região não era diferente, o que passou a dar ao nosso doutorzinho, uma nova dimensão de felicidade.
Numa das casas, morava uma senhora viúva com seus quatro filhos, dois meninos e duas meninas.
Maria Inês e Maria da Glória, duas meninas típicas da roça.
A mais velha, Maria Inês, com seus dezoito anos era mais tímida, escondida sobre uma mão que ocultava os dentes precocementes estragados e o sorriso doce da ingenuidade.
Mas quem chamava a atenção era Glorinha, menina ainda com seus catorze anos mal completados.
A primeira vez que a vira, reparara que ela não o olhava, sempre olhando para baixo.
A roupa de chita rasgada, mal ocultava os seios recém nascidos e rijos, seios que chamaram a sua atenção...
Os pés descalços, cheios de bichos de pé, diagnosticados como tungíase pelo doutor, os cabelos sujos e desalinhados contrastavam com os seios, belos seios emergindo por entre os rasgões do vestido.
Terminada a visita, o doutor retornou ao seu trabalho e à sua casa.
Nem mais se recordava da menina nem dos seios quando, um mês depois, foi comunicado de que iria retornar àquela casa.
Tudo como antes, tudo, as mesmas deficiências de vitaminas, a mesma miséria, a mesma ausência de tudo, o mesmo chão de terra batida, com os mesmos colchões e os mesmos cães dividindo o espaço com os habitantes da casa.
A única diferença que repara foi na mochila escolar esfarrapada que, a menina, enrubescida, usava por sobre o ombro direito...
Mal sabia ele que esse era o único enfeite que ela dispunha...

UM VASO VALIOSO


Edson Siqueira Lima grande médico de Espera Feliz, amigo e companheiro, bom contador de histórias, me falava das circunstâncias que cercaram o credenciamento do Hospital de Espera Feliz pelo INAMPS.

Havia um atendente de enfermagem no Hospital, cujo nome me declino de citar, sujeito muito prolixo e famoso por suas “tiradas” muitas vezes geniais, principalmente nos relatórios de plantão; verdadeiras peças de literatura.

Uma simples briga de marido e mulher transformava-se em uma novela melodramática, com as descrições das lesões superpondo-se aos relatos dos partícipes e testemunhas do entrevero.

Pois bem, era necessário que o Hospital obtivesse uma pontuação mínima para que fosse credenciado; tudo bem, mas a auditoria classificatória para tal credenciamento, por tanto tempo adiada foi, mercê do atraso nos correios, comunicada na véspera de ser executada.

A chegada de tal comunicação levou todo mundo a polvorosa; já que não daria tempo para completar alguns itens que estavam faltando.

Quando os auditores chegaram, esse enfermeiro, loquaz e simpático, começou a falar, não deixando nem o Diretor Clínico, o próprio Dr. Edson abrir a boca.

E foi um tal de cafezinho pra cá, aguinha gelada pra lá, simpatia distribuída a torto e a direito.

Lá pelas tantas, começa o nosso herói a mostrar os equipamentos exigidos pelos auditores, “Essa é a maca do pronto socorro, espera um pouco, Dr. Edson, leva os moços para conhecer o aparelho de RX”.

Edson sem saber nem o porquê tanta solicitude, levou os auditores ao RX, ao retornar a mesma maca, porém com um lençol diferente era apresentada como a “maca do Centro Cirúrgico” e assim foi.

A cada coisa apresentada, multiplicava-se por muitas, a cadeira de rodas velha e abandonada, nessa altura do campeonato já tinha sido mostrada 3 vezes, cada vez com uma nova vestimenta.

Tudo muito bem, tudo muito bom, mas no final dessa averiguação, faltava meio ponto para completar o total necessário para o credenciamento.

Os auditores, após discutirem muito e não aceitarem nenhum tipo de proposta, já estavam se retirando quando, lá do meio do corredor do Hospital surge o nosso enfermeiro escritor, com um VASO DE FLORES NA MÃO.

“Hei, esse vaso não merece meio ponto não?” arriscou.

Os auditores ou por cansaço ou pena por tal esforço sobre humano de agradar, aceitaram o vaso, e deram-se por satisfeitos, credenciando o Hospital.

Alegria à parte, Dr. Edson, com sua matreirice de sempre perguntou de onde havia surgido tal vaso de flores, ao que o nosso amigo, mais que prontamente esclarece o mistério.

Ao levantar o “vaso” é que se reparou que o mesmo não passava do cesto de lixo, com um pano à volta, já as flores... Com certeza o defunto que estava na capela esperando o sepultamento não iria reclamar os galhos de cravo e margaridas retirados às pressas...

O trabalho enobrece o homem...


Menino criado na roça desde cedo aprende a lidar com a enxada e a foice.
Não fora diferente com Inaldo, rei nos seus oito anos.
Aos quatro, o pai já o levava para ajudar a debulhar o milho e a colocar as sementes nas covas feitas com o enxadão.
Terra pouca, terra dura e ruim, dinheiro para adubo não havia, mas tinha que ser assim.
Deus provém quem trabalha e a lida era sagrada.
Quando chovia no tempo certo, que maravilha! Dava até para sobrar dinheiro para comprar umas bugigangas para a mulher e para os filhos.
Coisa boba, mas Zezito não esquecia da prole não.
Prole grande, comum naquelas bandas. Sete filhos, entre meninos e meninas.
O mais velho tinha treze anos, parrudo e trabalhador, Deus é bom...
As meninas eram muito bonitas, os olhos verdes delas realçavam os cabelos loiros, espiga, como a do milho.
A mina jorrava água boa, suculenta.
Pelo menos isso não faltava, ao contrário do sertão de Jequitinhonha, onde o pai de Zezito nascera, lá em Pedra Azul.
Pedra Azul
, nome bonito pra terra seca, para a feiúra do gado e a magreza do povo.
Mas ali em Espera Feliz era diferente.
O que queimava era o frio, frio do Caparaó, perto do pico da Bandeira.
Doutor pediatra tinha dois; dos bons: O doutor Aníba e a doutora Tânia, se os meninos precisassem sabia que podia contar com a boa vontade deles.
Agora , uma coisa ele não havia se acostumado ainda: Por que esses doutores insistiam tanto em que ele deveria comprar um filtro? A água de mina é pura, e não tem doença não doutor...
De uns tempos para cá, Inaldo estava começando a estudar.
Isso deixava ele meio cabreiro, estudo para quê?
Coisa de rico essas modernices, menino tem é que trabalhar, não entendia porque a assistente social tinha chamado a atenção dele. Se menino não trabalhar, vira vagabundo e depois que virar cadê a assistente social?
Assim aprendera com o pai e assim ia ser com seus filhos...
Tinha um tal de PETI, a moça falou nisso, mas ele não queria o dinheiro não, queria era dar rumo na vida dos meninos...
A enxada ensina mais que qualquer caneta, moça.
Enxada faz o homem ficar forte e ter dignidade.
Estudo não, isso não dá futuro não.
E nem uns tapas podia dar nos meninos mais não, tinha um tal de conselho tutelar que, se soubesse disso, até pra cadeia era capaz de mandar.
Essas novidades eram difíceis para serem compreendidas por Zezito.
Igual a esse negócio de ter filho em Hospital, coisa mais estúpida. Filho forte nasce é em casa, e com umbigo curado pela avó de preferência com teia de aranha. Isso seca a ferida bem melhor do que os remédios que os doutores passam.
Quando a moça que trabalha na saúde, a Fatinha, filha da dona Cremilda, veio com essa história de preventivo, a casa quase caiu!
O tal de Doutor Paulo não vai ver as partes da mulher não. Só por cima do meu cadáver.
Vê se pode! A mulher ficar nuinha perto do homem, e com as pernas abertas!
Mas, esse ano, ia ter que trabalhar a meia na colheita de café, não ia ter jeito não.
O problema era os meninos na escola, isso ia atrapalhar muito.
A mulher tava com um problema de fígado, segundo o Doutor Ben-Hur, coisa chata que tinha até que operar.
Trabalhar sozinho, não tinha mais idade, beirando os quarenta anos, a coluna doía e o doutor Marcos não dava jeito. Mandava fazer repouso.
Engraçado, como fazer repouso? Esses homens não têm a menor idéia do que é a vida na roça.
Caboclo nasce trabalhando e morre trabalhando.
A colheita do milho e do feijão, tinha sido bem menor do que nos outros anos. Não dera nem para cobrir as despesas com a comida.
Ainda bem que tinha aquele empréstimo do governo, o tal do Pronaf, mas isso não ia bastar.
Precisava trabalhar no café.
O caminhão de bóia fria passava lá pelas seis e meia, e o frio era de rachar, ia pegar uma carona até a propriedade do Seu Jorge Grillo, homem bom e honesto, filho do seu Nenzinho...
Ia trabalhar à meia, ainda bem que o seu Jorge teve a bondade da dar aquela colheita à meia.
Senão o negócio ia ficar feio, feio de cara...
Partindo pra lá, teve que deixar os filhos irem para a escola, a mulher ficou em casa, esperando uns exames de sangue para marcar a cirurgia.
Jararaca. Jararaca atrás de jararaca. A roça é difícil e complicada.
Uma picada da danada e tudo acabado...
Colheita complicada, sem dinheiro.
Pois bem, não deu outra.
A picada foi dolorida e o tornozelo começou a inchar depressa.
Correu para o Hospital, soro antibotrópico, repouso e pé para cima.
A úlcera no tornozelo ficou grande, infeccionou.
Jararaca disgramada.
Que o desculpasse a assistente social, podia chamar até o juiz e o promotor.
Os meninos no caminhão de bóia fria.
Trabalho a dia, adiando a escola, adiando o futuro...
Zezito curando a perna, a duras penas.
Perna inchada e minando água, toda rachada.
O sol frio do Caparaó observando tudo...
Inaldo, mais um dia, outro dia. Inaldo e seus irmãos...
Vida de pobre é difícil, mas os meninos estão na labuta.
O pai, orgulhoso, espera a perna ficar boa e que a tal assistente social nunca mais apareça na sua frente...

Unção e cura.


Trabalhando numa equipe de PSF na região do Patrimônio da Penha, município de Divino de São Lourenço, no Espírito Santo, durante uma visita familiar me surpreendi com uma dura realidade:
Fui chamado para dar atendimento a uma família que teimava em não receber nem agentes de saúde, nem enfermeiros e, muito menos, médicos.
Ao tentar manter contato, fui recebido pelo “chefe” da família que, arredio ao contato, me informou que “naquela casa, médico não entrava”.
Perguntei o porquê e ele me disse que não teria condições de “comprar os remédios”, ao que repliquei que esses medicamentos não seriam comprados já que ele os tinha pago com os impostos que estavam embutidos nas mercadorias e serviços que utilizava no dia-a-dia.
Sem outros argumentos, me recepcionou e permitiu a minha entrada na pobre casa.
Num primeiro olhar, me deparei com uma realidade estranha; havia três mulheres mais jovens e uma senhora que aparentava uns cinqüenta anos.
Uma das moças, a mais velha provavelmente, apresentava-se com uma erisipela em estado avançado, formando uma úlcera no tornozelo, complicação comum da doença.
Ao, disfarçadamente, perguntar sobre as outras mulheres da casa, a matriarca me interrompeu afirmando que estavam todas boas, inclusive a doentinha.
Segundo ele, a perna da moça estava melhorando e “Deus a iria curar”.
Ao perguntar qual o medicamento que ela estava usando, a resposta veio ágil e firme:
-Água ungida!
Após essa afirmativa, me deparei com um rádio, daqueles antigos que têm ondas curtas, único eletrodoméstico da casa.
Ao conversar com meu auxiliar, fiquei sabendo da história.
Havia um pastor de uma dessas igrejas “de Deus” que, através do rádio, “ungia” a água colocada ao lado do aparelho.
Tal água, após a unção era aplicada sobre a perna da doente.
Obviamente a melhora não estava ocorrendo e a presença da febre alta e da queda de estado geral da moça demonstravam a piora do quadro.
Parei, pensei e tentei arquitetar uma forma de estimular o uso do medicamento.
Rapidamente, peguei um pedaço de sabão de coco, e uma caixa de antibióticos e analgésicos, além de um pacote de gaze e perguntei a que hora era o programa do tal pastor.
Ao ser informado de que iria começar em minutos, pedi para ligar o rádio e, pacientemente, esperei a hora da transmissão do “programa milagroso”.
Solicitei a todos, inclusive ao meu auxiliar, que ouvisse o programa e orassem junto com o pastor, na tentativa de unção do pacote de medicamentos, gaze e sabão de coco.
Dito e feito, depois de “ungidos”, solicitei que, após a perna ser lavada com a água e sabão, fosse dado os medicamentos, todos devidamente ungidos.
A melhora da paciente foi evidente, com a cicatrização da ferida e a cura da erisipela.
A partir desse dia, cada vez que necessitam, transformo o tal pastor em meu maior aliado.
Sem o saber, agora ele está ungindo até vermífugo.

Mausoléu


A vida inteira João esperara Maria de Fátima.
Menina bonita, correndo solta pela fazenda vizinha a que morava, com os pés descalços e os olhos brilhantes. Menina trazendo nas tranças, a beleza da infância que prometia a mulher exuberante.
João, nos seus quase vinte anos, se encasquetara com a garotinha; “vai ser minha”, não parava de pensar.
O tempo passando, a menina se tornara uma bela adolescente e João, amigo dos pais da menina, começara a freqüentar, com certa freqüência , a casa vizinha.
Entre indas e vindas, todas as semanas batia o cartão de ponto.
Um olho nas guloseimas feitas por dona Ritinha e outro na menina bonita de olhos cabisbaixos e sorriso matreiro.
É claro que a mocinha começara a perceber as intenções do visitante, coisa que a menina mal adivinhara. Nesse ponto, dona Ritinha também começou a achar sentido nos olhos e suspiros soltos descuidadamente pelo visitante.
Todos observaram, menos Seu Jorge, o pai da menina.
Quando alguém tocava no assunto, ele dava bronca e exigia respeito, isso não era assunto que se falasse, que respeitasse o Seu João, amigo da família e que era um absurdo que se pensasse isso dele, etc.
Ao perceber que as dificuldades que teria que enfrentar seriam intransponíveis, por conta da posição contrária de Seu Jorge, o pobre João quase que teve um piripaque. Os sonhos de tanto tempo desfeitos dessa forma eram por demais dolorosos para serem encarados de frente.
Mas, a vida tem suas surpresas e essas nos deixam, muitas vezes, de queixo caído.
Maria de Fátima, ou melhor, Fatinha, dona dos seus quatorze exuberantes anos, surpreendentemente, mandou um recado, um bilhete, chamando-o para conversar com ela depois da missa.
No domingo, João se emperiquitou todo, colocou aquele perfume importado, o Vitess, e foi para a missa com o coração em frangalhos.
O que poderia querer aquela bela moça com ele?
Não perdia por esperar.
Após a missa, Fatinha mais bela do que nunca esperava nosso amigo na lateral da Igreja e foi direto ao assunto.
Queria que ele soubesse o quanto ela o amava e o quanto estava disposta a encarar qualquer coisa por ele e, sabendo que seu pai seria contrário ao namoro dos dois, planejara fugir com ele para qualquer lugar que ele quisesse.
O amor faz das suas e não tem juízo, o que fez com que João, sem pestanejar, topasse as loucuras da adolescente apaixonada.
Tudo combinado, horário e forma da fuga.
Ás quatro da manhã do sábado, todo mundo dormindo, menos Fatinha e João e o motorista do carro que os esperava na estrada, próxima da fazenda do Seu Jorge.
A estrada é longa, mas a vida é mais, as curvas se parecem e numa delas, bem distante de tudo, o carro parou e deixou o mais novo casal daquelas redondezas.
Fatinha, dona dos seus catorze anos e o quase quarentão João, prontos para começar a vida...
No começo, tudo tranqüilo, mas com o tempo, Fatinha se mostrara insaciável e João, pobre João, não tinha condições de satisfazer plenamente os desejos da sua amada...
João, prevenido e mais vivido, quase lívido com tamanho apetite e, pleiteando pela integridade de sua honra, resolveu tomar uma atitude radical.
Construiu uma casa numa região distante, bem distante de qualquer outra, isolada no meio de um pasto quase inatingível.
Lá, morava com sua amada que, a cada dia, se transformava em uma das mais belas ninfas da região, ninfa e ninfomaníaca, exigente, cada vez mais exigente...
Na casa, quase inatingível, João se encontrava, desesperadamente, em segurança. Por mais que a amada quisesse, não poderia trair aquele amor.
O maior amor do mundo, o amor de João.
Mas, o quase inatingível se mostrou verdadeiro quando, num dia em que João estava fora, trabalhando, apareceu um rapaz, dono da vitalidade dos vinte anos, belo e forte.
Viera do Rio, em busca de sua família perdida naquele grotão mineiro.
Vizinhos distantes de João, os seus pais permitiram que desse uma volta com o cavalo. Cavalo bravo, fugidio, rapaz novo, sem experiência...
O cavalo, como a que guiar nosso Apolo, levou-o diretamente àquela casa perdida no meio do pasto, longe de todos...
A sede e a curiosidade o fizeram bater à porta, no que foi atendido pela Fatinha, exuberantemente bela e carente.
A porta aberta, a mesa posta, a broa de fubá, os carinhos, os seios, os lábios, a cama revolta e o sexo explodindo furioso, dentro daquela casa feita por João, com todo amor e carinho do mundo.
Uma vez, duas vezes, dez vezes, agora o cavalo já não errava o caminho.
Mas João, um dia, errara a hora ou a chuva adiantara sua volta, ou uma inocente dor de barriga, sei lá. Só sei que voltou a tempo de ver o rapaz subindo no cavalo e retornando pelo pasto a fora.
A dor foi cruel, lancinante, percorrendo todo o corpo e a alma de João.
O que fazer?
Teria que se vingar de Fatinha, mas teria que agir sorrateiramente.
Pegou seu cavalo e partiu, a galope, atrás do Apolo amante de Fátima.
Excelente cavalo e bom cavaleiro, garrucha nova, tiros certeiros. O corpo foi fácil de ser escondido, uma pedra no pescoço, não afunda mais.
Retornou para casa, como se nada tivesse acontecido.
O sorriso na cara da mulher tinha, então, uma explicação.
Sorriso que, com o passar dos dias e com a ausência do objeto de desejo, foi se transformando em irritação.
Irritação em lágrimas e lágrimas em desespero, contido desespero.
João, então, resolveu se vingar da amada.
Dolorosa vingança.
A pequena casa tinha três cômodos, uma janela no quarto, outra na sala e a porta da sala. Única porta da casa.
O remédio fora fácil de ser encontrado.
O boticário tinha mandado tomar um comprimido à noite. Daria uma noite de sono profundo.
Vinte comprimidos diluídos em um litro de suco. Suco de abacaxi, coisa divina. O preferido por Fatinha.
Devorada rapidamente, a garrafa vazia, a cabeça rodando, vazia...
Excelente pedreiro, João não teve dificuldade de fechar as janelas e a porta.
Trancadas com uma estrutura de ferro e cimento. Invioláveis.
Agora, quem passa perto daquele pasto, estranha aquela construção, toda fechada.
Parece que foi, um dia, uma casa.
Agora, ninguém mais sabe o que era.
A não ser João, que casado com Dona Rosa, tem três filhos e mora lá em Goiás, mal se recordando do mausoléu construído num pasto, no interior de Minas Gerais....

UM CERTO RAPAZ...


Nunca poderia imaginar que um dia estivesse alí, na porta da universidade, sonho impossível de tantas gerações.
Família pobre, filho e neto de lavradores, criado sob o signo do sofrimento, filho meu tem que trabalhar cedo, senão vira preguiçoso!
O peso da enxada curvou o menino, depois saberia que aquele desvio na coluna poderia ter sido tratado, mas saúde era coisa de benzedeira e parteira, médico só em último caso, caso de morte ou de Hospital, de um hospital longíquo e de difícil acesso.
Nascera em casa, assim como todos os seus irmãos, penca de irmãos, cada um herdando as roupas dos outros, menino na roça não tem precisão nem de roupa nem de brinquedos, qualquer coisa vira brinquedo, na imaginação de criança.
Barriga inchada, pernas finas, lombrigas e solitárias comendo tudo por dentro, os olhos remelentos olhavam para o céu distante e pediam mais um irmãozinho para a coleção; 10 ou 11 fora os que não vingaram; Deus sabe o que faz, a diarréia também.
Pegar lenha pra mãe fazer a comida no fogão de lenha, comida gostosa, frango aos domingos, carne de lata do leitão engordado à meia com o patrão do pai, coronel, mas bom, o padrinho, vida escorrendo como o córgo cheio de lambaris e acarás; bagres de noitinha ...
Moleque levado e descalço, vez em quando cortava o pé; fumo de rolo, teia de aranha e a história do tétano, medo, graças a Deus, escapando das doenças...
Sorte dele, pois o seu irmãozinho mais novo aguou, menino fraquinho teve tosse comprida e Deus levou.
A escolinha era longe, andava a pé, pés descalços, formiga lava-pé, domingo missa, lavar a alma dos pecados. Pecado de menino é arte, moleque levado, lavado no ribeirão, à beira da felicidade, sem saber, era o rei. Reinado de criança pobre, passa rápido, o trabalho e a enxada não darão descanso...
- Esse capetinha desse moleque tem parte com o demônio, não vai dar nada na vida... Praga de avó pega, assim como ele pegava e sumia com as coisas da Vovó Danda, só de molecagem, adorava ver a avó irritada, nervosa, depois beijava, cafuné... Histórias de guerreiros lá de longe, da bela que dormia, pobrezinha e da moça bonita que casou com o príncipe, pobre que nem ele, mas que por ser boazinha...
Natal, Papai Noel, nada de brinquedo, a mãe inventava de dar um par de sapato, prá que? Sola grossa não carece sapato, carece brinquedo, mas brinquedo nunca vem, ,somente o tal do sapato...
Assim cresceu, menino solto, moço trabalhador, honesto, mãos calejadas, enxada e ancinho, colheita de café, trabalho duro, frio e jararacas soltas na plantação. Quase foi picado, escola longe, sacrifício, esperança...
Dos irmãos, alguns envelhecidos, rugas precoces, sol escaldante, irmãs desdentadas, mãe doente, pai cansado, velho e envelhecido, nunca envilecido, orgulho de moço temente a Deus, escola longe, teimosia grande, terminou o ensino médio.
Noites mal dormidas, olheiras à vista, cansaço maior, fora bem no ENEM, mas tinha o vestibular.
Meu Deus, fazer vestibular, coisa de rico, coisa de filho de fazendeiro ou de rapaz da cidade, queria viver na roça e da roça, Medicina Veterinária, coisa bonita, bichos e criação, sonho de menino, sonho da família, filho Doutor...
Não é que o filho da dona Maria e do seu Jonas conseguiu passar no vestibular?
Mas faculdade particular é cara, família pobre, sapato velho e calças remendadas, mão cheia de calo, quem trabalha não tem dinheiro para pagar...
PROUNI - desconto total, bolsa integral, salário de ajuda, sonho de menino, realidade do homem, esperança.
Mãe vou embora, não chora, seu filho vai ser doutor, volto um dia, faculdade longe, bem atrás do horizonte, longo horizonte, belo horizonte pra quem nasceu olhando prá longe e com as mãos na terra.
Poder trazer nos meus olhos, os retratos da cidade grande, da vida grande, do grande amor, dos sonhos graúdos de quem nunca descansou.
Pai, saúde, qualquer coisa me liga, qualquer coisa me chama, teu filho te ama, vai procurar ser feliz, se cuida meu velho...
A porta da faculdade se abriu para aqueles pés cansados e olhos castanhos nunca tão verdes como agora.

A alma feminina - continuação


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No coração de Santa Martha, morava dona Cotinha, uma viúva quase centenária.

Havia muitos anos que morrera o seu companheiro de longas e dolorosas jornadas.

Como a maioria das mulheres de sua geração, dona Cotinha era uma esposa submissa e calada, agüentando sem reclamar as agressões sofridas e as traições mal disfarçadas.

Seu marido, Anésio, era um pequeno sitiante que tinha, entre outros defeitos, o hábito de se embriagar todos os sábados e domingos, deixando Dona Cotinha sozinha em casa, cuidando dos oito filhos.

A viuvez trouxe o luto, total luto de corpo e alma, transportado para as vestimentas, invariavelmente negras e contidas.

Nos vinte anos em que se encontrava sozinha, seu dia a dia era de uma rotina exemplar. Da casa para o mercadinho ou para a missa, onde poderia ser encontrada todos os dias ao entardecer.

Gilberto, dono de seus vinte anos, era vizinho de Dona Cotinha. Jovem, como todos os jovens, brincalhão e inconseqüente.

Dona Cotinha o vira nascer e crescer e, ingenuamente, reparara no belo homem que se adivinhava nos músculos e no sorriso atraente do filho de seu João Polino.

Gilberto, um dia, de olho nas jabuticabas deliciosas que se encontravam, com suprema delícia, no quintal de Dona Cotinha, pediu licença à velha viúva para poder pegar as frutinhas no pomar.

Dona Cotinha, ao abrir a porta e o quintal, deu um sorriso ao qual Gilberto, sem maldade elogiou.

Pela primeira vez, em vários anos, Dona Cotinha corou, inconscientemente, ao receber o elogio do belo rapaz.

A partir daquele dia, enquanto havia jabuticabas no quintal, Gilberto ia diariamente à casa da anciã.

E essa, começara a apresentar uma substancial mudança nos hábitos e na vestimenta que, de negra, começou a se apresentar multicolorida. Até o vermelho fora incorporado ao guarda roupa.

Devagarzinho, Gilberto começara a povoar as noites da velha senhora, no começo, esporadicamente; mas, depois, quase diariamente.

As beatas começaram a sentir a falta da freqüentadora mais assídua da Igreja; o próprio Padre sentiu essa ausência.

Acabou-se a colheita da jabuticaba, mas a presença de Gilberto não; atraído pelos doces e confeitos que começaram a freqüentar a mesa de Dona Cotinha.

Gilberto era profícuo nos elogios feitos, a cada semana elogiava alguma coisa até que, irresponsavelmente, disse que dona Cotinha deveria ter sido uma moça muito bonita...

Isso foi a gota d’água, a partir daquele dia, dona Cotinha renascera totalmente, arriscando até um decote que permitia detalhes dos seios murchos e caídos...

A freqüência de Gilberto naquela casa começara a ser reparada por outras pessoas, principalmente da família.

João Polino começara a repreender as atitudes do rapaz, dizendo que ele, se quisesse arranjar uma namorada, que buscasse alguém da sua idade...

A resposta veio rápida. Gilberto, como que ofendido, disparou:

‘“-Pai, o senhor está me ofendendo, eu não quero nada com aquela velha, ela cheira a mofo e, agora que passou a usar essas blusinhas decotadas, está ficando cada vez mais ridícula, mostrando aquelas muxibas horrorosas.”.

Mal acabara de falar, se ouviu um barulho na porta da casa.

Dona Cotinha trazia na mão, um pedaço de broa que tinha feito para Gilberto; e chegara, a tempo de ouvir a conversa.

O derrame foi fatal, mal dera tempo de chegar ao Posto de Saúde de Ibitirama.

João Polino e Jimico


Naquela tarde, João Polino não queria fazer mais nada, a não ser descansar e olhar para as nuvens.
Aos oitenta e quatro anos, dera para olhar para as nuvens e tentar adivinhar os desenhos que elas, porventura, faziam.
Já se ia muito distante o tempo em que corria atrás dos passarinhos, armando arapucas e alçapões.
Menino ainda, tivera que trabalhar, mas a delícia do correr livre, dono de todas as artimanhas e estradas, sabia todas as manhas dos bichos do mato.
Sabia a luta do tatu pela sobrevivência, cercado pelos cães, cavando rápido o buraco na terra e se tornando inatingível.
Sabia o canto dos passarinhos em busca de fêmeas, encontrando muitas vezes o estilingue certeiro de João Polino.
Quantas rolinhas e inhambus viraram almoço para o moleque descalço que corria pelas cercanias de Santa Martha...
Trazia, do lado, a garrucha velha e quase sem serventia, a não ser valentia. Mas valentia boba, sem necessidade, simples falácia e farsa.
Fora sempre de paz, as confusões em que se metera, foram simples invencionices de menino falastrão.
O vilarejo crescera, nesses quase oitenta anos; já contava com quase cem moradias. Algo extraordinário para quem vira, praticamente, nascer o povoado.
As primeiras casas de pau a pique, com teto de sapé, ( eles insistem em chamar de sapé, embora o dicionário diz ser sapê), sem luz, por onde a cobra entrava para mamar na mulher e deixar a criança mamando, faminta, o rabo; ludibriando, assim, a boa fé da pobre mãe da criança.
O sapo cururu cantando no rio e pulando de frio...
Frio, a casa fria sem luz, sem móveis, sem conforto.
Mas, as crianças cresceram ali, sem luxo mas com dignidade.
A missa aos domingos representava o banho na véspera e os pés tinham que se adaptar aos sapatos.
Sapatos cobertos com as galochas, para não se enlamearem, nos dias de chuva, nem para ficarem empoeirados, nos dias de sol.
O fogão a lenha fazia as delícias que sua mãe e sua irmã, Oracina, tão bem sabiam fazer.
A batata doce assada, o café de guarapa, a lingüiça de porco, a carne de lata, guardada na banha. A broa de fubá quentinha, de manhã, antes de ir para o trabalho.
Delícias que o tempo levara para nunca mais.
Agora, o conforto da eletricidade e do calçamento das ruas, aposentaram a serpentina e a galocha.
João sabia que o tempo era outro, que a vida era outra, mas a saudade insistia em bater na porta.
Saudade da mulher, nova e bonita, a menina que esperara crescer para poder ser sua. Sua mulher, mãe de seus oito filhos.
Seis vingaram e cresceram fortes e trabalhadores.
Mas todos tinham aquele ar de liberdade que João cultivara desde menino.
Nos idos dos anos sessenta, quando os guerrilheiros resolveram invadir o Caparaó, a casa de João serviu de abrigo para aqueles moços que falavam em liberdade.
Do palavreado deles restou o “camarada”, repetido a toda hora pelo velho libertário.
Aprendera a ser, teimosamente, da oposição. A qualquer um, desde que fosse governo.
Nunca se cansava de dizer que tempo bom, “era o tempo de antes”, mal percebendo que falava não do mundo, mas do seu mundo, saudoso dos seus vinte, trinta anos...
Mas, com o nascimento de seu neto caçula, dera para se transportar para a doçura da infância.
O João valentão, temerário, sonhador, dera lugar ao avô extremamente dedicado, apaixonado por aquele menino lourinho, ruço, que andava pela casa a fazer todas as artes possíveis e imagináveis.
O pai do menino, Marcos, permitia uma liberdade absoluta para o garoto, o que trazia, na lembrança de João, seus dias de menino criado pelas irmãs e pela mãe, já quase idosa.
Temporão, avô aos oitenta e dois anos. Tragando de novo, a infância livre nos olhos e gestos do “Jimico”, forma carinhosa que chamava o garotinho.
Agora, não sabia bem porquê, dera de olhar para as nuvens e tentar adivinhar as formas que elas desenhavam no céu, mal sabendo que ali estava o resgate da felicidade escondida, num tempo distante e reacendida pelo moleque ruçinho que anda correndo, solto, pela casa...

COMPREENDE AGORA SEU DOUTOR?


Meu canto de amor à terra, passa por teus braços, pelos laços primitivos entre o homem e a civilização, e também pelos derradeiros.
Mãe, terra mãe, tenazmente guerreira, contra intempéries e sofrimentos, nas tuas mãos passaram os cadáveres de seus filhos abandonados à própria sorte; para ti,a morte, se tornara corriqueira companheira. Nos teus olhos marejados de saudades, a esperança, mesmo que ofuscada, nunca perdeu espaço; um dia há de melhorar, velha cantinela, velha sentinela de seus homens e mulheres, meninos e meninas, velha amiga.
Nas mãos a enxada e a foice, nos pés os cravos e nas mãos os calos, além do terço indefectível.
Os pés cansados traziam o corpo marcado pelo sol, e as mãos cheias de lenha, calor de fogão, a brasa refletida no teu rosto avermelhado.
Campesina, camponesa, lavradora, teus cantos me levam aos reinados, de princesas e crianças, como eu, como tantos, rondando perto de ti, à espera de um torrão doce ou de uma história meio triste de final alegre, pois sempre a esperança era heroína.
Nas horas do ócio, sentada na sala, contando o dia, ou mais ainda, ouvindo do meu velho pai, seus folguedos de menino, herói convicto, com suas fábulas e bravatas, meu velho pai, que a vida levou e me deixou saudades...
Na hora da missa, a gente se reunia, mamãe levava todo mundo, temor a Deus e respeito ao Coronel, o mais perto de Deus que a gente pensava poder chegar - Toma benção menino; seu Coronel, seu padrinho...
Hoje sei o quanto meu povo fora explorado por aquele homem de rosto seco e cara fechada, chapéu de couro e botas compridas. Homem com cara de mau ou, pelo menos a cara do medo; tinha hora que parecia deus, outras vezes eu o via como o diabo; de qualquer forma me metia medo.
Hoje, mamãe está velhinha demais, já não tem forças e nem se lembra direito mais quem ela é, do meu pai, nem sabe se existiu, a vida apagou todas as suas lembranças, nem a esperança mais restou, a lucidez ao se ir, levou tudo...
Sorte dela, muita sorte...
Seria difícil para ela entender que, por causa da terra, da bendita terra que nunca foi nossa, só restando uma palhoça pra poder descansar, a minha irmã caçula, Martinha, atrás do sonho da dignidade, em busca de um canto de terra, para poder cultivar, sem dar obediência a Coronel, nem a Deus nem ao Diabo, simplesmente poder arar em paz, viver em paz e criar meus sobrinhos em paz; ontem foi assassinada...
Os jagunços dizem que o marido dela atirou primeiro; como, meu Deus?
As armas deles sempre foram as mãos calejadas e uma foice e uma enxada, atirar como?
Quando acabei de ouvir a notícia na televisão, dizendo que os trabalhadores sem terra tinham começado a confusão e, aparece a cara do jagunço, dizendo essa mentirada toda que eles sempre inventam e, o comentarista disse, cara de moço que nunca pegou numa enxada, que a culpa era dos lavradores, e criticou o presidente por não tomar atitude; seu moço, o troço veio subindo minha goela acima e não resisti...
Ainda por cima veio um cidadão chamar minha irmã e meu cunhado de bandido...
Entendeu agora porque eu joguei esse safado de cara para o aparelho de televisão?

João Polino e o Lobisomem

A lua em Santa Martha tem uma beleza ímpar. À época dessa historia, então, era de uma claridade ofuscante, ainda mais se fosse cheia.
Lua cheia inspira todos os poetas, ainda mais quando não há além dela, senão as bruxuleantes luminosidades que vêm dos candeeiros a querosene.
Isso era o que acontecia na década de quarenta, quando a iluminação tanto pública quanto nas residências era somente uma utopia.
João Polino, nesse tempo um jovem de pouco mais de vinte anos, dono de uma invejável valentia e de uma força inigualável, um verdadeiro sertanejo, acompanhado de uma indefectível garrucha, para o caso de ter que usar contra cães do mato, onças pintadas ou jagunços, reis da emboscada.
João era de boa paz, mas nada impedia de que houvesse alguma tocaia, por quaisquer motivos, ou mesmo sem.
A terra era sem lei, não tinha ninguém para coibir a violência que campeava, ainda mais por que a sede do município, Alegre, distava mais de cinqüenta quilômetros de terra batida e, muitas vezes, intransitável.
Noite de lua cheia, numa sexta feira, não tinha erro: lobisomem na certa.
E, em Santa Martha não era diferente. O lobisomem local era um jovem estranho: calado, ensimesmado, não se dando com nenhum morador do vilarejo, exceto João Polino, pois esse não tinha medo de nada e de ninguém.
Nos últimos meses, começaram a aparecer sinais da presença do Lobisomem. Durante a madrugada, várias vezes se ouvia um uivo longínquo, acompanhado do grito desesperado das galinhas e do gado.
No dia seguinte, a constatação: algumas cabeças de gado desaparecidas e muitas penas de galinha com o sangue espalhado sobre o chão, sinal da passagem do bicho.
Todos os habitantes começaram a olhar desconfiados para o pobre Joaquim, o nosso suspeito de lobisomagem.
Este, acuado e tímido, não respondia a nenhuma insinuação que fizessem, conversando somente com João Polino, a quem negava qualquer participação nos acontecidos.
João, entre preocupado com o gado que mantinha numa pequena propriedade próxima ao distrito e com o pobre Lobisomem, resolveu tentar tirar a limpo a história.
Corajosamente, resolveu amarrar seu amigo Joaquim numa pilastra, dentro de sua casa, e esperar pelo que aconteceria.
Naquela noite, ao ver que seu amigo mantinha-se acorrentado e ouvindo, distante os sons costumeiros, chegou a uma conclusão. Realmente, seu amigo não era lobisomem.
Mas, se não fosse ele, quem seria e como descobriria?
Astuto como ele só, João resolveu armar uma arapuca para descobrir o malfeitor e o malfeito.
Durante um mês, espalhou que tinha comprado umas vacas holandesas para leite, que eram campeoníssimas, tendo vencido exposições de gado até na longínqua São José do Calçado.
O assunto em Santa Martha não era outro, quando é que vinham as vaquinhas, quanto custou, etc.
João, perspicaz, ao ver na folhinha que a próxima lua cheia seria em cinco de agosto, deu a data do dia cinco, como a da chegada do gado.
Na data marcada, em conluio com o seu amigo Joaquim Lobisomem , ficou de tocaia à espera do maldito lobisomem.
Para sua surpresa, o que viu o deixou de queixo caído.
Um dos mais importantes coronéis de Santa Martha, seu Leôncio, estava chegando, disfarçadamente, com mais dois jagunços, na sua propriedade. Traziam algumas facas e, ao começarem a uivar alto, um deles foi até o galinheiro e matou algumas das mais gordas galinhas de João Polino.
Com o alvoroço formado, correram até ao curral, onde principiaram a laçar as vacas, pobre vaquinhas...
Nesse ínterim, João Polino, abismado com o que vira, partiu em direção ao curral e, garrucha em punho, começou a xingar e desafiar o coronel trambiqueiro.
Sem perceber, João foi agarrado e amarrado pelos jagunços do Coronel, que se preparava para esfaquear nosso herói.
Mas, subitamente, se ouviu um gemido assustador. Quando olharam para trás, puderam perceber, um lobo gigantesco, de pé, uivando e babando.
Em pânico, largaram João e saíram correndo, em desabalada carreira.
Quando João ficou a sós com o lobisomem, sem apresentar nenhum sinal de medo, chamou-o, carinhosamente, pelo nome.
Surpreendentemente, Joaquim se abaixou e começou a lamber, carinhosamente, as mãos de seu amigo.
E partiu, para nunca mais voltar, nas noites de sexta feira de lua cheia em Santa Martha...

HISTÓRIAS DE PLANTÃO


Nas minhas andanças pelo interior de Minas, lá pros lados de Caiana, cidadezinha próxima a Espera Feliz, onde morei por vários e felizes anos, conheci um senhor, dessas antiguidades ambulantes que soem só serem encontradas nos grotões do país.
Um homem sisudo, caladão quase sem palavras.
Pois bem estava eu, um dia de plantão quando o enfermeiro me chama, lá pelas duas horas da manhã, para atender uma urgência, na verdade, um caso insólito.
Para minha perplexidade, o tal senhor me chamou de lado e me afirmou meio que envergonhado, que ao se levantar para ir à cozinha tinha escorregado e...
Não sei como, e também por respeito ao cidadão, cujo nome me recuso até a morte em declinar, segundo o próprio, ao escorregar, caíra sentado sobre uma cebola. Na hora não atinei bem para o fato, o quê que uma cebola poderia causar de mal a um cidadão?
Como ortopedista que sou, fui logo perguntando ao mesmo se tinha machucado ou se estava sentindo alguma dor, já meio aborrecido de ter sido chamado às pressas para atender um caso aparentemente sem maiores conseqüências, pois o cidadão estava caminhando com certa normalidade, embora sentisse que estava mais empertigado do que de costume.
Para meu espanto, aquele homem, tão sisudo, com aspecto de seriedade inconteste ao se ver sozinho comigo me disse:
- Doutor, o senhor não está entendendo, eu caí sentado sobre a cebola e... Como posso dizer? Ela entrou...
Tentei me atinar por que aquele senhor estaria desnudo àquela hora da madrugada, pois já passava das 2 horas da manhã, mas, na hora fiquei quieto, inibido talvez pelo inédito fato.
Claro que, a cebola seria expulsa naturalmente sem nenhum problema, mas devido ao constrangimento e pânico de tal cidadão, resolvi “ajudar a natureza”.
Pois bem, ao ser anestesiado o esfíncter, para minha surpresa, a cebola era das grandes e, pelo fato de estar devidamente intumescida, não foi muito fácil retirá-la.
A partir daquele dia, o “sisudo” senhor, cada vez que me encontrava, abaixava a cabeça, e nunca mais voltou ao Hospital, pelo que me consta, a partir daquele dia, sempre que sentia alguma coisa, se dirigia imediatamente à Carangola, cidade mais próxima, onde o risco de alguém saber de suas preferências, digamos, leguminísticas, eram desconhecidas...

DE PERERECAS E ÔNIBUS


Nos idos do começo da década de 90, na minha amada Espera Feliz, morando com a minha primeira esposa e seus filhos, me recordo de um fato inusitado,
Marcos Davi, o mais velho dos meninos, com seus 17 ou 18 anos, não me recordo bem , ao viajar para o Rio de Janeiro, me surgiu com essa, que a memória faz questão de lembrar.
Nos ônibus que faziam a ligação Rio x Espera Feliz, começaram a surgir, do lado do passageiro, um suporte que era usado para colocar copos, latas de refrigerante entre outras coisas. Pois bem, como a viagem era noturna e o coletivo saia da Rodoviária de Espera Feliz às 22:00 e chegava no Rio de Janeiro por volta das 4 horas e meia, a partir de Carangola, apagavam-se as luzes do ônibus para melhor comodidade dos passageiros.
Bem, lá pelas tantas, os passageiros adormecidos, eis que um senhor bem idoso, com seus oitenta e poucos anos, começa a gritar desesperado.
Acenderam-se as luzes do ônibus e os passageiros acordaram assustados com tal gritaria.
Não é que o pobre senhor, desconhecendo a serventia dos “apoios” laterais, não havia colocado a perereca, vulga dentadura no tal buraco?
Então, esclarecido o fato, foi um tal de gente levantando-se de um lado e do outro, procurando pela prótese dentária do desalentado senhor.
E procura pra cá e procura pra lá , até que, lá num dos bancos de trás, já que com o balançar das curvas, a dentadura, fazendo jus ao apelido, tinha pulado para uma das últimas poltronas do ônibus, sob os pés desavisados de um rapaz que dormia, abraçadinho com sua namorada. Ao ver a tão desejada perereca em tal situação, o velho bradando contra o rapaz, acorda-o e, de súbito pega a dentadura e ali mesmo, como se tivesse reencontrado o principal tesouro da vida, recoloca-a na boca, sem ao menos lavá-la e com um ar de indignação misturado com o de satisfação, grita para o motorista:
-Ei, pode seguir viagem que já tou com a perereca na boca!
CAI O PANO RÁPIDO...

DE MACACO TIÃO AO SÍMIO TIÃO...


No Rio de Janeiro de grandes alegrias e de algumas decepções, o principal “candidato a prefeito” era o Macaco Tião, chimpanzé de gloriosa história no zoológico carioca.
O espírito jocoso do carioca já tinha criado o “candidato” Cacarecos, se não me engano um rinoceronte, e nos idos da década de 80, o Macaco Tião reeditava o sucesso do seu “companheiro” de partido.
Havia um conhecido nosso, homem muito simplório, mas de bom poder de comunicação, principalmente entre os porteiros, zeladores e empregadas domésticas e do comércio, nos arredores do Largo da Segunda Feira, onde morávamos.
O pacato cidadão era um senhor de idade mediana cronologicamente e da idade média, intelectualmente falando.
Tinha aspirações políticas e sua filiação ao partido de Leonel Brizola, o PDT, já daria, segundo afirmava, uma real possibilidade de se eleger vereador.
Já que contava com centenas, quem sabe milhares de votos entre os seus amigos, devido ao fato de ter contabilizado já alguns milhares de “votos certos”, pois, a cada um que respondia que iria votar nele, o caderninho com que andava na mão, marcava “mais um voto”.
Pois bem, no decorrer de sua “campanha” insólita, caiu na besteira de pedir um slogan a meu pai.
O velho Marcos Coutinho Loures, com sua habitual picardia e, interado da “campanha” pelo Macaco Tião associando-se ao fato de tal “candidato” se chamar Sebastião, saiu-se logo com essa:
“Dê uma banana aos políticos tradicionais, para vereador vote no SÍMIO TIÃO”.
Não é preciso dizer que o singelo camarada, adorou o slogan.
Mandou fazer alguns bottons e faixas com os dizeres supracitados.
Porém, um dia, eis que surge Sebastião irritado e querendo briga.
Meu pai, placidamente foi perguntar o porquê de tal irritação.
Algum demancha-prazer havia explicado a ele o SIGNIFICADO DA PALAVRA SÍMIO.
CAI O PANO RAPIDAMENTE!

ABORTAMENTO INCOMPLETO


Essa me foi contada por Maurício Padilha, amigo de infância de Muriaé, colega de faculdade no Rio, onde eu fazia Medicina e ele Bioquímica, companheiro de longas e inesquecíveis viagens a bordo do 634, linha de ônibus que dava voltas pelos subúrbios cariocas até, depois de hora e meia, nos deixar nas cercanias da UFRJ.
Quis o destino que eu reencontrasse o bom amigo na Espera Feliz que nos adotou e fez de nossos filhos conterrâneos também.
Conta-me Mauricio que, antes que eu me mudasse para lá, havia na cidade um ginecologista de muito renome, homem amável e que gostava muito da noite, companheiro de longos e proveitosos serões, geralmente movidos a generosos goles de cerveja.
Nas noitadas por Espera Feliz, várias vezes tive o prazer de encontrar e bebemorar a cada encontro, com essa figura simpática.
Tudo bem, voltemos aos fatos.
Na Exposição de Espera Feliz, viera dar um show um famoso cantor, já falecido e extremamente simpático.
Acompanhava-o uma elegante senhora, muito alta, com um rosto bonito, muito educada, perfumada, mas, para quem reparasse bem, apresentando um gogó, digamos para sermos discretos, um tanto quanto desigual com a feminilidade apresentada pela jovem senhora.
Apresentada ao nosso ginecologista, já meio “chumbado”, a “noiva” do cantor, se desfez em queixas um tanto quanto estranhas, estranhas de fato e estranhas à hora, pois já passava das três da manhã, o cantor já dera seu show e estava sentado à mesa, com os outros convivas.
Espera Feliz é muito próxima ao Pico da Bandeira e faz parte do Parque Nacional do Caparaó, portanto é extremamente fria, principalmente à época da sua FESTA AGROPECUÁRIA.
Nosso amigo solícito e gentil, se oferece para examinar a “noiva” do cantor.
Numa sala improvisada dentro da barraca do Rotary, onde se deu esse fato, ocorreu o também improvisado exame.
Nesse momento, surge o nosso amigo ginecologista empalidecido.
“Um carro, por favor, que o caso é grave”.
Ao ser indagado sobre o que estava acontecendo, ele olha para o lado e responde:
“Abortamento incompleto, precisa ser feita a curetagem com urgência!”CAI O PANO RÁPIDO... MAS RÁPIDO MESMO!

DE ESPELHOS DE VENTOS E DE "INIMIGOS"


Essa que conto agora também se passou em Espera Feliz, mas sob um novo panorama e com personagens que me são bem caros.
Minha cunhada, Maria como boa evangélica que é, costuma andar com sua Bíblia a tiracolo, e isso lhe é por vezes, de extrema utilidade, como veremos a seguir.
Morávamos eu e minha esposa, Rita, num sobrado, na subida do Hospital, que para variar, como em quase todas as pequenas cidades fica situado estrategicamente, em cima de um morro.
Isso se dá pelo fato de que, nas enchentes, o Hospital deve como ultimo recurso, estar ao longe dos alagamentos que porventura ocorrerem.
No andar de baixo, moravam minha sogra, meu sogro, meu cunhado, Gilberto e minha sobrinha, Lady.
De repente, começa uma gritaria lá em cima, Gilberto ao descer, deixara a porta entreaberta e a porta do Guarda Roupas idem, e como em Espera Feliz as rajadas de vento são freqüentes, uma dessas rajadas fez com que a porta do armário se abrisse e Gilberto ao retornar ao quarto deparou com o brilho da lua refletindo no espelho entreaberto, assustando-se.
Maria, Bíblia em riste sobe rapidamente para o quarto e começa a exorcizar o dito cujo; amarrando e atando com as cordas firmes da fé o “inimigo”...
Não sei por que cargas d’água alguém, se não me engano meu sogro, resolveu subir ao ver tal gritaria e “amarramentos e t’esconjuros sendo proferidos em tal profusão”.
Ao perceber o que tinha acontecido, fechou, calmamente a porta do armário e depois a do quarto, liberando o mesmo para quem quisesse entrar.
Gilberto, meio que assustado, mas sem poder voltar atrás, sob pena de ser taxado de medroso, de súbito, se ergue e demonstrando “valentia” começa a proferir que “não estava com medo não, que tinha, junto com a sua irmã, Maria “vencido o Inimigo”!”.
Mal podendo imaginar que, a imagem “demoníaca” que vira era a sua própria, refletida no espelho clareado pela luz da lua...

AS CASQUINHAS DE SIRI


Antenor foi um dos grandes amigos que a vida me deu, e a distância levou.
Menino muito inteligente e habilidoso, durante nossa infância fizemos uma “estação de rádio”, devidamente pirata, é claro.
Enquanto o proprietário da Radio Muriaé não descobriu de onde vinham as ondas que se superpunham as da sua emissora, devidamente registrada e autorizada, nossa brincadeira deu muito pano para manga.
Aliás, Antenor era um camarada muito engraçado, dono de histórias extremamente divertidas, uma delas a que conto agora.
Ao mudarmos para o Rio, Antenor, bom de papo e boa pinta, começou a namorar uma amiga da minha irmã, de quem nunca mais tive notícias ou mesmo que tivesse não iria falar o nome, pois a dita cuja já está casada há tempos.
Mas nessa época de solteirice e namoros, como é a maravilha da adolescência, Antenor e essa menina estavam namorando já há alguns meses, o que para essa fase da vida já é tido como “namoro sério”, quando resolvemos sair.
Eu, minha irmã e o casal.
Antenor, querendo agradar à moça, por sinal muito bonita, quando estávamos pedindo as refeições num restaurantezinho próximo ao Largo da Segunda Feira, na Conde de Bonfim, se não me engano, disse-lhe um “peça o que quiser” que teve seus desdobramentos meio que hilários.
Ao responder que queria “casquinha de siri”, o meu amigo mineiro e sem muitos conhecimentos sobre frutos do mar, gelou...
Ao me chamar para ir com ele ao banheiro senti que a situação do camarada estava ficando meia crítica.
Ao me perguntar sobre o que seria e quanto custaria a tal “casquinha de siri”, sugeri que ele desse uma olhada no cardápio, já que o preço constava nesse.
Sabidamente, como bom mineiro, Antenor antes de retornar à mesa, deu uma passadinha disfarçada, aproveitando-se do fato de que sua namorada estava de costas, pelo balcão e pedindo o menu, constatou que o preço da “casquinha de siri” não era tão assustador assim.
Ao voltar à mesa, disfarçadamente perguntou de novo à menina o que ela queria:
“A resposta pronta foi rebatida pelo meu amigo com ares de ‘generosidade”:

OS OUTROS QUINHENTOS...


Nessas minhas andanças pelo interior mineiro conheci um senhor extremamente simplório e tão teimoso quanto simples.
Recordo-me que tentamos de todas as formas faze-lo usar os tão necessários óculos, mas sem sucesso.
A miopia intensa que o mesmo padecia foi a causa de uma das mais insólitas situações que presenciei e repasso para vocês com muito prazer.
Estávamos em Carangola, interior de Minas, e eu estava indo fazer umas compras quando, de repente deparo-me com aquele senhor extremamente nervoso, exasperado mesmo, na frente de uma vitrine numa das poucas ou talvez única galeria da cidade.
Eis que, para minha surpresa percebi o motivo de tal revolta.
O nosso míope e ingênuo senhor estava aos berros discutindo com o MANEQUIM que estava exposto na frente da loja.
Aos berros de: “Me respeite, tenha educação, entre outros impropérios impublicáveis me aproximar de tal cena perguntei por que tanta revolta, no que fui prontamente respondido”:
-Doutor Marcos, ainda bem que o senhor está aqui, pois saiba o senhor que esse filho da... Desse camarada está me desprezando só porque eu sou velho e não estou bem vestido, imagina o senhor que eu somente perguntei quanto custava essa calça e ele, além de não me responder, nem olhou para a minha cara!
Com muito custo consegui convencer ao meu amigo de que o “dito cujo” não era uma pessoa, não passava de um boneco fantasiado.
Mais ou menos satisfeito com a resposta, saiu ainda meio que vociferando contra tudo e todos, para risos contidos dos que assistiram à cena.
Convence-lo de que não passara de um engodo; ainda foi possível, mas quanto à necessidade do uso de óculos, isso são outros quinhentos.
Aliás, a calça que o mesmo queria comprar, custava bem menos que isso...

A "INAUGURAÇÃO DO POSTO DE GASOLINA


Tenho um grande amigo em Espera Feliz, chamado Carlos Alberto, quase que um irmão.
Dono de um temperamento meio instável, mas puro de alma, Carlos Alberto protagonizou vários episódios inesquecíveis que acumulei nesse meu longo período de esperas felizes...
Num deles, me recordo que fomos juntos até Belo Horizonte, ele para levar sua querida esposa ao médico e eu para fazer um desses “cursos” de um dia só, se não me engano sobre próteses e órteses, a fim de credenciar Espera Feliz para poder receber, via SUS, material para tratamento de seus pacientes ortopédicos.
Pois bem, a viagem era extremamente cansativa e tínhamos que ir e voltar dentro do mesmo dia, já que a prefeitura não disponibilizara nada além do motorista e do carro e, como eu deveria estar de plantão à noite em Guaçui, no Espírito Santo, a volta era meio que urgente.
O “curso” foi muito rápido, mas seu término às duas horas da tarde, fez com que o planejamento do retorno mais imediato fosse por água abaixo.
Lá pelas tantas, resolvemos parar para jantar, já que o dia tinha sido muito cansativo e a chegada a Espera Feliz deveria se dar depois das 22 horas.
Comuniquei-me com Guaçui e arranjei um colega para me dar cobertura até a minha volta.
Feito isso, paramos num posto de Gasolina em Rio Casca, MG; se não me engano posto Terra Branca. Estava havendo uma festa com direito a banda de música, sorteio de automóvel entre otras cositas más.
Nesse Posto de Gasolina há uma churrascaria de bom padrão e associando-se com a fome voraz, estava convidativa.
Ao me levantar, percebi uma faixa enorme estendida de um lado ao outro do Posto com os seguintes dizeres: “POSTO TERRA BRANCA, 25 ANOS SERVINDO AO POVO”.
Nesse ínterim percebo Carlos Alberto conversando com um velho senhor, desses pequenos, meio gordinhos, portando uma indefectível boina.
Ao me aproximar pude ouvir o teor da conversa: Ao perguntar ao meu amigo o que estava ocorrendo, esse respondeu de pronto ao simpático senhor:
-Sei não moço, eu acho que estão inaugurando o Posto.
Ao que, prontamente o amável velhote respondeu:
-Só se for outro, por que este está aqui faz um tempão!

DE FRUTOS DO MAR E AFINS...


No começo dos anos 90, na minha deliciosa e indefectível Espera Feliz, surgiu um senhor aposentado que, diante da visão de ter o Parque do Caparão como um lugar turístico e a cidade extremamente aprazível resolveu fazer um restaurante.
Não era um restaurante qualquer, tinha seu quê de diferente, pois, em plena Minas Gerais, ao contrário do que se pode esperar, fez um restaurante especializado em... Frutos do mar!
No começo, à custa da curiosidade normal da população local, obteve certo sucesso; porém, associado ao fato do dito estabelecimento estar localizado bem distante do centro da cidade e, por conseqüência, o acesso ser muito difícil, a falência não tardou a ocorrer.
O fechamento, a bem da verdade, não foi muito sentido pela população local.
Durante um bom período, quem passava pelo local, observava na margem direita da estrada, um prédio abandonado e entregue às moscas.
Passam-se uns dois anos e, de repente, começam a enfeitar e reformar o fantasma.
Como eu viajava sempre de Guaçui, onde morava à época dos fatos, para Espera Feliz, onde ia trabalhar, fui acompanhando, semana a semana essa mudança.
Eis que um dia, as portas do estabelecimento reabriram e, para minha surpresa, com finalidades bem diversas.
Se a gente puder considerar aquele popular peixe famoso por sua voracidade como “fruto do mar” há algum nexo, mas...
Na verdade, ao saber que o restaurante havia se transformado em um prostíbulo, meu susto foi grande. Espera Feliz tinha abandonado e fechado a ZBM (Zona de Baixo Meretrício) há tempos, mas aquela “boate” ainda daria o que falar.
Ao perguntar ao meu amigo Maurício Padilha, já citado anteriormente, soube que aquele seria o primeiro prostíbulo “pentecostal” do Brasil.
Curioso, perguntei por que, no que fui prontamente respondido:
- É que, devido ao preço cobrado pelas meninas, o apelido do “estabelecimento” era: DEZ É AMOR!

DE COMO SALVAR O TIME DA GOLEADA E, DE QUEBRA REGENERAR UM GOLEIRO


João Polino, muito conhecido lá pros lados de Ibitirama, ou mais precisamente, no distrito de Santa Martha, aos pés do Pico da Bandeira, traz no seu currículo uma rápida, mas marcante passagem como treinador de futebol.
O fato se deu no início dos anos 50 e, como sabemos o Brasil recém derrotado na Copa do Mundo, em pleno Maracanã, vivia uma “ressaca” futebolística.
em Santa Martha não era diferente e, João Polino, como bom brasileiro era um bom palpiteiro, o que o credenciara para ser o treinador do time local.
Haveria, em Alegre, um campeonato distrital e o time de Santa Martha não era tido como um dos mais favoritos, porém tinha no banco o “melhor treinador do Sul Capixaba”.
O time estava até que em forma, exceto o goleiro, conhecido como Pedro Gambá, por motivos meio que óbvios.
Pedro bebia muito, mas, quando não estava embriagado, ainda era o melhor goleiro da região de Santa Martha, sendo conhecido como “Mão de Gato”; isso quando sóbrio.
Nos treinamentos, ele fechava o gol, abstêmio que se encontrava, pelo fato de estar namorando firme uma das meninas mais desejadas de Santa Martha, Laurinda; mais conhecida como Lindinha.
Na estréia do campeonato, o jogo era contra Pedra Roxa e, por causa de uns entreveros pessoais com um pessoal pedraroxiano, João Polino tinha aquele jogo em conta de “honra pessoal”.
Bem na hora da partida, eis que surge o Mão de Gato; na verdade mais para Pedro Gambá do que nunca.
Os jogadores, com medo das reações do treinador do time, ocultaram o fato a João Polino que, sem perceber que o goleiro estava mais bêbado do que nunca, deu as últimas coordenadas ao time.
Para espanto de todos, na “arquibancada” improvisada, Lindinha estava no maior bate-papo com Zezinho do seu Paulo; rapaz meio janota e, portanto, tido como “aviadado” pelos invejosos concorrentes.
O jogo começa e, com menos de 10 minutos, Pedro já tinha iniciado a série de frangos que faria inveja a uma granja, o placar já contabilizando 3 a zero para Pedra Roxa.
Ao se completar a primeira meia hora e, com o jogo já em 8 a zero para a equipe visitante, João Polino, de súbito se levanta e...
Para o susto de todos, saca o revólver e dá um tiro em direção à bola, atingindo-a em cheio, evitando assim o nono gol do time adversário.
Só que, ao atingiu a bola, a bala passou de raspão na mão do pobre Mão de Gato.
Nesse interem, meio que arrependida, meio que assustada, Lindinha invade o campo e se dirige para o amado, ferido de raspão, mas, feliz da vida.
A flecha de cupido salvou o pobre bêbado, na pequena ferida real e no grande ungüento salvador.
O mesmo não podemos dizer do CUPIDO, que teve ali sua “brilhante e promissora” carreira encerrada.
Como não poderia deixar de acontecer, foi o padrinho do casamento de Pedro e Lindinha e, se não me engano, o filho mais velho do casal se chama João, só não sei se é Polino...

GEOGRAFIA E MISSA


Padre Raimundo Nonato, pároco de Visconde de Rio Branco, cidadezinha próxima a minha cidade natal; Mareai, era um padre tradicional, usando sua inexorável batina, mas tinha um bom humor impagável.
Mulato meio que pro obeso, tinha umas tiradas que nos deixava a todos, independentemente do humor que apresentávamos antes de sua chegada, rapidamente ficávamos de bem com a vida.
Encontra-lo era “ganhar” o dia.
Recordo-me que, certa feita, em visita aos meus pais, de quem fora colega de magistério no Colégio São Paulo, lá mesmo em Muriaé, o padre Nonato parecia estar, ao contrário de sempre, com o humor um tanto quanto diferente, até meio sorumbático, por assim dizer.
Interrogado pelo meu pai sobre o motivo de tal mau-humor, o padre desconversava; falava sobre outro assunto, tentava a todo custo mudar o tema da conversa.
Em vão, meu pai preocupado não deixava o amigo em paz; perguntando sempre o que estava acontecendo.
Lá pras tantas, Padre Nonato não agüentou mais a pressão e disse:
-Marcos, eu estou meio arrependido do que falei outro dia em Visconde do Rio Branco, na hora da missa.
Meu pai, já conhecendo o velho amigo, prontamente mudou a fácies; de preocupada passou a uma expressão sorrateira de quem já esperava alguma coisa.
- O quê que aconteceu, Padre? Perguntou meu pai, já meio que rindo.
- Pois bem, eu estava realizando a missa quando, sabe esses bancos de Igreja novinhos, feitos de madeira mais resistente?
Pois é, a comunidade tinha se esforçado tanto para poder comprar uns bancos novos, pois que os outros estavam em petição de miséria, já carcomidos pelos cupins e pelo tempo. Os bancos novos eram uma beleza, muito bonitos, mas, não sei por que cargas d’água um gaiato resolvera rabiscar no banco.
Rabiscar ainda era pouco, escrevera um palavrão daqueles...
Então, no meio do sermão, não resisti e falei:
“Pois bem, meus irmãos, o pior de tudo foi o palavrão que esse infeliz escreveu. De tão feio tenho até vergonha de pronunciar. Mas só para vocês terem uma idéia: Fica na mulher, ACIMA DO JOELHO E ABAIXO DO UMBIGO!”
CAI O PANO RAPIDINHO...

POLÍTICO - DOS DEFEITOS DO EXCESSO DE FRANQUEZA


Retornando ao folclore político, tenho uma história que já ouvi algumas vezes, com fontes diferentes, mas merece ser contada.
Segundo uma das fontes, essa história se deu em Governador Valadares, a outra fala em Juiz de Fora; mas, de qualquer forma, vamos a ela:
Havia um candidato à eleição municipal numa cidade mineira que tinha a franqueza como principal característica e isso, apesar de ser uma virtude, muitas vezes atrapalha; e nesse caso, quase resultou numa tragédia.
Nos idos dos anos 70, antes da liberalização sexual, uma das características das cidades interioranas era a existência, para deleite de adolescentes e dos boêmios, a famosa ZBM – Zona do Baixo Meretrício.
Por uma questão econômica, tais prostíbulos se localizavam, na maioria das cidades, próximo ao centro destas. Onde, após uma noite com a namorada virgem, os meninos iam satisfazer seus desejos com as “bad girls” da época.
Em Muriaé havia uma casa de baixíssima qualidade e de péssima reputação cujo nome era bem sugestivo “Beco dos Aflitos”; já em Guaçuí existia um prostíbulo com um nome até certo ponto poético: “A Flor do Asfalto”.
Nessa cidade que não pude identificar, houve um comício deste candidato a prefeito, que me permito chamar ficticiamente de Lúcio Franco; mais franco que lúcido.
No comício em plena zona, ele tentando justificar a sua plataforma política, trouxe à tona um fato que mudou realmente a economia das prostitutas.
A zona que era no centro da cidade, fora transferida por um ex-prefeito que tentava a reeleição para a periferia da cidade onde ocorreram os trágicos fatos daquela noite perdida no tempo.
Ao subir no palanque, nosso amigo começa com um discurso apaixonante, falando da desigualdade social, da falta de escolas no bairro, da falta de creches, do estado de abandono em que se encontrava a saúde, etc.
Extremamente empolgado, foi aumentando o tom da voz, à medida que os aplausos se tornaram mais intensos e constantes; até que:
Num momento extremamente infeliz, no ápice do discurso saiu-se com essa;
“E o candidato do Governo, quando foi prefeito da outra vez, cometeu o maior absurdo que poderia ter cometido. A zona era no centro da cidade, onde dava muito mais renda do que aqui, na periferia, que fica distante, para prejuízo de todos, e de todas. Vocês mais antigos se lembram, e o quanto isso foi prejudicial. Mas vocês, mais novos, se não acreditam no que estou falando, perguntem para as suas mães e irmãs mais velhas, que eram quengas na Zona antiga...”.
Nem preciso dizer como terminou a história.
Antes de o pano cair, a conta do Hospital, com direito à estadia na UTI, foi paga pelo próprio candidato que, depois dessa, nunca mais apareceu em nenhum prostíbulo da cidade, para infelicidade de Mariinha Coxa Grossa; mas isso já é outra história...

A História de uma escalada ao Pico da Bandeira

Santa Martha, aos pés do Pico da Bandeira, tem um acesso dos mais difíceis e proibitivos ao cume da mais alta montanha do Sudeste brasileiro.
Nos idos de 1940, a subida ao Pico era algo quase que impossível, pois as matas eram habitadas por um sem número de feras, inclusive as temidas pintadas.
João Polino sabia destas dificuldades, mas o espírito aventureiro do jovem não conhecia nem medo nem obstáculos.
Um dia, surpreendendo a todos, avisou que iria escalar aquele “morrinho”, e que isso era somente um treino para aventuras maiores, já que sonhara ser um alpinista; o primeiro alpinista santamartense.
O povoado em polvorosa, as mocinhas casadouras suspirando, aquela fama momentânea que trazia tanto acalanto para a alma do João.
No dia marcado, colocou uma garrucha no bornal, com um canivete no cinto e se preparou para a perigosa subida.
Seu José Reis, conhecendo bem o nosso herói, tentava consolar Dona Oracina que, a essa altura do campeonato, desfiava um rosário de ladainhas e orações, na tentativa de proteger, de alguma forma, o seu intempestuoso irmão.
A mata fechada trazia mistérios e assombrações. Além das jararacas usuais, a possibilidade de se encontrar com o saci pererê, o caipora, a mula sem cabeça, entre outras, era real.
Corpo fechado, João não temia essas coisas. A bem da verdade, não tinha medo de nada. De nada e nem de ninguém. Quem vencera os alemães, na guerra, e encarara o lobisomem, isso tudo era café pequeno.
Falando em café, tomou um derradeiro cafezinho com guarapa e arribou-se.
A subida, de início, era mesmo complicada, além de ter muitas pedras, havia também uma mata que se fechava a cada metro subido.
Mas, por incrível que pareça, depois de certo tempo, começara a suavizar e, após a mata apareceu uma planície surpreendentemente branda, com um manacial de águas cristalinas maravilhoso, tendo ao fundo uma cachoeira extremamente bela, enfeitada por orquídeas e bromélias floridas.
João, surpreso com a paisagem paradisíaca, achava que estava sonhando e, embevecido, deitou-se à margem de tão bela cascata.
Sonhara, e sonhara de olhos abertos...
De repente, uma voz macia se ouviu, uma voz feminina encantadora.
Ao abrir os olhos, João se deparou com uma indiazinha, uma bela adolescente, dona de olhos amendoados e de uma pele extremamente bela, com dois seios pequenos, convidativos...
Ao ver essa miragem, João se assustou e, entre acordado e sonhando, tentou entabular um diálogo com aquela visão.
Ao perceber que a menina chorava, João perguntou qual o motivo de tal choro.
Ao saber que a menina era uma princesa, filha de um cacique muito cruel que a impedira de se casar com um jovem a quem ela dedicara seu amor, João sentiu verdadeira pena da moça.
Conversa vai, conversa vem, de repente, a menina começou a falar mais mansamente, olhando fixamente para os belos olhos azuis do nosso herói.
João, timidamente, começou a ficar meio corado e tentou consolar a garota, mas esquivando-se de olhar para ela.
Quando, de repente, a menina começou a falar de seu sofrimento, olhando cada vez mais fixamente para João, e se aproximando, a ponto de João sentir o delicioso cheiro das flores silvestres que emanava o hálito da mocinha, João reparou que o que imaginava ser impressão era, na verdade, a constatação da atração da indiazinha por ele.
A menina, então, não escondeu mais o seu desejo e, de forma objetiva, declarou que somente um outro amor poderia salvá-la e esse novo amor começara a surgir em seu coraçãozinho puro.
João, embevecido, quase cedeu; mas se lembrou a tempo, da promessa que fizera a si mesmo: casar-se com Rita, a irmã de seu amigo José Reis.
Rita, a essa época era ainda uma criança, linda nos seus dez anos de idade.
João, com o peito dilacerado, disse então à pobre jovem que não poderia ficar com ela, já que prometera seu amor a outra moça...
Neste instante, chorando, a menina deitou-se e, para susto de João, foi se endurecendo ficando cada vez mais pétrea, até que, num instante, aquela menina, cujo coração fora tocado pelo amor duas vezes e impedido em ambas, e se transformara em pedra, uma pedra sem sentimentos; se transformou numa montanha gigante, toda de pedra, mantendo o formato de uma menina deitada.
Assim surgiu a Pedra Menina, que até hoje está lá, aos pés do Pico da Bandeira, testemunha do grande amor da indiazinha por João Polino que, fielmente manteve sua palavra e se casou com dona Rita, com quem vive feliz até hoje...

Segunda Guerra Mundial - João Polino, o Herói de Santa Martha




Nos idos dos anos quarenta, havia uma ebulição no mundo, a segunda guerra mundial era a notícia em todos os jornais e rádios do país.
A entrada do Brasil na guerra mexia com os brios do nosso amado povo e, em Santa Martha não era diferente.
No único rádio do distrito, que ficava na praça principal, João Polino, ao invés da maioria da população que se espremia para poder ouvir o programa musical de Francisco Alves na Rádio Nacional, se interessava verdadeiramente pelo que ocorria do outro lado do mundo.
Como bom comunista, sem o saber, torcia imensamente pela vitória dos Aliados contra o regime fascista de Mussolini e, principalmente, contra o nazismo alemão.
Nas discussões que se faziam em torno das mesas do principal botequim do distrito, o “Santamartense”, não media palavras e nem conseqüências ao defender o líder russo.
Do outro lado, alguns descendentes de italianos ou de alemães eram as principais vítimas das críticas e comentários do nosso herói.
Até que, um dia, a despeito de todos aqueles que achavam que o jovem era somente um “catador de marra”, ao saber da entrada do Brasil na guerra e a convocação de Voluntários para irem ao combate, não pestanejou.
Entrando em contato com alguns conhecidos, no Rio de Janeiro, se ofereceu para entrar em combate.
Foi
um Deus nos acuda; sua irmã, Oracina, estava assustada com tal atitude mais radical do tempestuoso irmão.
Não houve quem o demovesse da idéia, nem mesmo o pároco de Santa Martha, o padre Josias, velho conselheiro do vilarejo.
Ao dizer que havia recebido a confirmação de que tinha sido aceito, João causou verdadeiro clímax entre os habitantes. Não foram poucas as moçoilas que suspiraram frente à possibilidade de, simplesmente, conversar com tal herói.
Num dia frio, daqueles que ninguém esquece, partiu nosso amigo para o Rio de Janeiro, em busca das aventuras que a Europa preparava...
Passados seis meses da viagem, eis que uma notícia caiu como uma bomba em Santa Martha. No domingo, no trem das sete horas, iria chegar de retorno do Velho Continente, o heróico João Polino.
Banda de música na Praça, feriado escolar, todo mundo alvoroçado para recepcioná-lo.
Às sete e meia, pois o trem sempre atrasa, chegou com toda pompa e circunstância, para deleite de toda a população, o nosso Pracinha.
Fogos de artifício e os dobrados tocados no coreto da Praça Santa Bárbara. Os alunos da Escola Municipal, uniformizados, com Dona Louza à frente, reverenciavam o maior herói da história Santamartense.
Depois do rasta-pé que durou a madrugada inteira, João Polino, vivendo como se fosse um sonho, custara a dormir.
No dia seguinte, logo cedo, foi até ao armazém do Seu José Reis, usufruir um pouco da fama.
Ao ser indagado como fora a experiência, João não pestanejou: Que a Guerra estava sendo muito difícil, que tinha matado mais de quarenta alemães, etc. Falara, inclusive, que a Alemanha era muito bonita, e que não tinha dúvidas de que, assim que o povo alemão fosse libertado do nazismo, o país iria se recuperar.
José Reis, quieto, ouvia tudo e nada falava...
Mas, ao perceber que João se referia à Alemanha e não à Itália, estranhou.
-Hei João, quer dizer que a Alemanha é muito bonita? Aonde foi a pior batalha?
-Berlim. Respondeu João Polino, sem pestanejar...
Educadamente José não falou nada, e nem comentou o fato de João ter retornado a Santa Martha com uma morenice de fazer inveja...

VESTIDO VERMELHO E CURTO.


A noite traria de novo aquilo, aquela sensação de total insegurança, um misto de angústia e solidão.
A vida fora muito difícil, mas nada justificava aquele medo e aqueles pesadelos, terrores noturnos que faziam cada segundo se tornar uma incômoda eternidade.
Na idade do lobo, se transformara novamente em criança, cada noite era uma ânsia gigantesca, uma tenebrosa experiência com transpirações estranhas e tudo exalando um cheiro de fim, de ocaso, de vazio,
Nada mais poderia impedi-lo de viver, já tinha tido tantas e tanta decepções e vazios que nada parecia vencê-lo, mas aquilo parecia demais.
Os olhos ficavam fixos no teto, e cada vez que um carro passava na rua, os faróis iluminando o teto, pareciam lampejos de um tempo jamais esquecido.
As sensações de perda, do oco, do nada se aglomeravam e geravam um desesperador sentimento atroz.
Suas andanças pelo mundo, suas noites solitárias nos hotéis e pensões da vida de um “representante comercial” novo nome para caixeiro viajante.
Nome bonito como os paletós inexoráveis, devidamente lavados e passados nos mesmos hotéis onde dormia.
A solidão por companheira.
Claro que havia as prostitutas, mas isso não o tentava, sexo é bom, mas tem que ter o amor por base, pelo menos a atração física.
E os orgasmos fingidos e pagos regiamente o diminuiriam, o tornariam não o agente, mas sim a vítima, o prostituído.
Mas acostumara-se com essa solidão. Fiel e eterna companheira.
Podia ter-se casado, mas não, a solidão fora sua esposa e a mãe de cada uma das suas rugas e de cada fio branco de cabelo.
O amor, na verdade, não servia para ele e, talvez mais que o próprio amor, a palavra família era muito confusa.
Não se adaptaria a vozes e correria de crianças pela casa, nem podia imaginar-se em tal situação.
Era por demais egoísta para poder dividir seu espaço com mais alguém e, depois de certo tempo, sua independência seria totalmente aniquilada.
Sabia disso e isso lhe era de tal forma insuportável que, melhor nem pensar.
Fora sua a opção pela solidão, mas, de algum tempo para cá, essa o apavorava.
Como é que, beirando os 50 anos, idade em que deveria ser mais forte que sempre, esses pavores poderiam estar tão firmemente arraigados?
A timidez piorara, agora dera para gaguejar, essa tartamudez o surpreendia.
Velho, gago e medroso.
Que final de vida se desenhava!
Faltava voltar a ter as enureses, ai sim, a sua decadência seria completa.
Procura um psicólogo, talvez, quem sabe.
Um psiquiatra talvez fosse melhor.
Ouvira falar na andropausa, parecia esse o caso.
Mas, que nada!
A solução era parar de palhaçada e retornar à vida.
O dia nascia, e a vida renascida melhorava tudo, menos a gagueira, recomeçava a trabalhar.
Mas quando se aproximava a noite, ressurgiam os medos e se repetia tudo.
Começara a beber, isso talvez ajudasse.
No começo sim, o álcool fora um bom companheiro.
A embriaguez dava alento e, ainda por cima, desinibia-o.
Começara a freqüentar boates e prostíbulos.
Tornara-se um pândego, e foi perdendo os medos e as angústias.
Mas cada vez mais necessitava do álcool como suporte, cada vez mais e cada vez maior quantidade.
Um homem de 50 anos não tem tantos atrativos, mas o paletó, a gravata e uma pasta dessas de executivo associadas a esse homem, produz um encanto impar.
E foi assim, naquela noite.
Belas pernas, morena, deliciosamente escondida parcamente num vestido vermelho, curto, pernas torneadas, coxas deliciosas, rebolado divino, vestido vermelho, curto, curtíssimo.
O tempo também era curto e curto o punhal, o vestido vermelho, agora mais do que nunca, vermelho.
A vida restara mais curta que o vestido e que o punhal.
O paletó e a gravata manchados de sangue.
Na pasta algumas amostras de pano, pano vermelho, do mesmo tecido do vestido, não dava nem para fazer um vestido, mesmo curto como o da moça que, chateada, saiu do hotel praguejando

TRAVESSEIRO DE PEDRA


Mendigo atrapalha campanha de Serra em Araçatuba
Assessores
deram R$ 1,00 para afastar o mendigo, que insistia em cumprimentar o político
Chico Siqueira

ARAÇATUBA, SP - O candidato do PSDB ao governo de São Paulo, José Serra, está em campanha neste Sábado na cidade de Araçatuba. O ex-prefeito de São Paulo chegou por volta das 12h30 no Calçadão comercial da cidade do interior paulista. Após a caminhada, o candidato se reúne com prefeitos e lideranças políticas da região. Na caminhada de Serra pelo Calçadão, a assessoria do candidato retirou do caminho um mendigo que insistia em cumprimentá-lo. Para evitar o assédio assessores de Serra deram R$ 1,00 para o mendigo, que se afastou satisfeito com o dinheiro.



Mario nascera na cidade de Aimorés, Minas Gerais; tivera uma infância e adolescência difícil como todo mundo que vivia na zona rural.
Na época da colheita do café ainda tinha trabalho mas, passada a safra, a situação voltara ao desespero de sempre.
A fome era muita, a esperança; ah! Essa era pouca, ou melhor, quase nenhuma.
Um tio seu fora para São Paulo, e o chamara para ir também.
No começo relutou muito mas, depois de uma safra muito difícil onde o preço do café tinha despencado, senão me engano, na época do plano cruzado, não teve outra alternativa.
Ir para São Paulo era o destino de muitos iguais a ele, Mario. E a capital paulista tinha emprego, tinha comida, tinha futuro.
Qual nada; até que nos primeiros anos, a situação ainda estava mais ou menos. Mas depois que o xará dele assumiu o poder, a coisa foi de mal a pior.
Como o Estado entrou em declínio econômico, foi da pobreza à miséria, da periferia às ruas.
Com a Martha ainda obteve uma pequena melhora, um pouco de esperança, com a possibilidade de se alimentar e poder ir para um dos abrigos na cidade.
Mas, depois que ela perdeu a eleição e um outro assumiu a prefeitura, a coisa acabou de vez.
O viaduto que servia de abrigo para as noites de frio, fora modificado, tendo sido colocado uma rampa que impedia o repouso do pobre.
Sem local para dormir, se mudou para Araçatuba, no interior do Estado.
Ali, a situação estava um pouco melhor; pelo menos podia continuar mendigando, o que lhe dava, não posso dizer prazer, mas um certo conforto.
Vivia disso, e sobrevivia disso.
Era complicado para os outros entenderem, mas não era de todo infeliz.
Ouviu falar numa tal de bolsa família e, como tinha dois filhos que moravam com a mãe numa favelinha lá pros lados de Osasco, pensou em procurar saber como fazia para conseguir a bolsa família.

Pois bem, naquele dia, lá pro final de maio, soube que um político influente ia vir até Araçatuba para fazer campanha.
Bem, devia ser aquele moço nordestino, o tal da bolsa família.
Resolveu chegar perto dele para pedir a bolsa família pra mulher e pros meninos.
Mas, ao se aproximar, nem deixaram falar com o homem.
Deram pra ele um real e mandaram-no sumir.
Um real é pouco, muito pouco, mas pelo menos aquele moço careca que ele viu de costas, não tinha expulsado ele do viaduto, nem tinha feito a covardia de mandar fazer rampa no lugar da cama onde ele dormia, mesmo sobre um travesseiro de pedra.

ESQUIZOFRENIA


O medo a acompanhava desde menina, medo cruel e tenaz, medo de tudo e de todos.
A voz não a largava nunca, voz intensa e repetitiva, uma voz que, desde seus tempos de adolescente nunca se calava.
A mãe já tinha levado-a a todas as benzedeiras, pais de santo, pastores, enfim a todos os que eram indicados pelos vizinhos e amigos.
Nada adiantava nada; o doutor tinha passado uns remédios, mas também sem efeito.
O efeito máximo que consguia com os medicamentos, era dormir, mas os sonhos repetiam todos os fantasmas do dia.
Nada mais podia fazer. O simples fato de andar já a estava deixando em pânico.
Um caso de possessão demoníaca, por certo, dizia a tia religiosa, o caso mais claro que tinha visto na vida.
As excomunhões se repetiram, a voz parara, mas, agora, não era somente uma, era uma legião de demônios que tomavam conta da pobre endemoniada.
A tia, vendo que as coisas estavam mudando, apavorada com a legião de demônios que, a partir daquele momento, tomaram conta da pobre sobrinha, resolveu consultar um conhecido, autoridade máxima em assuntos de possessão, respeitado até por outras designações religiosas.
A vinda dessa autoridade mexeu com todos na pequena cidade, a ponto de virem pessoas até das cidades vizinhas para presenciar o milagre do pastor.
Esse, ao perceber que o caso era muito complicado até para ele, principalmente pelo fato de que, a menina, ao falar grunhia e gemia incorporando outras vozes e idiomas diversos, incompreensíveis mesmo, além de resistir a qualquer intervenção dele. Então, diante da sensação de impotência, resolveu consultar outra autoridade no assunto.
Essa "autoridade" era um verdadeiro estelionatário, vivia da fama adquirida por “espetáculos” pré montados com "artistas” regiamente pagos para suportarem os tapas e tabefes soltos à revelia.
Vivia da fama adquirida por esses “milagres” e mantida pela divulgação bem feita, principalmente nas cidades menores.
O pastor, de boa fé, obviamente, contactou esse trambiqueiro que, a peso de ouro, se dispôs a ir para “curar” a pobre adolescente.
Ao vê-la, uma coisa o assustou, os trejeitos da menina eram os mesmos de Amélia, o amor de sua adolescência, e a sua primeira vítima.
Do amor impossível ao estupro e desse ao assassinato foi um pulo.
Amor frustrado, o corpo jogado no rio, encontrado poucos dias depois, ninguém suspeitou nem suspeitaria dele, menino tímido e quieto, incapaz de “fazer mal a uma mosca”.
Entretanto, o tempo passara e Melinha tinha sido esquecida e ocultada num canto qualquer de um passado longínquo.
Mas o andar manso da menina e, principalmente o nome dessa o fez ressuscitar essa lembrança;
Amélia esquecia de dizer seu nome, mas agora que tenho a imagem de tudo que aconteceu viva na memória, não posso mais ocultá-lo.
A pobre menina estava exausta, vítima tanto dos demônios quanto dos exorcistas.
Nenhuma lucidez restava mais naquela mente conturbada, doente, sem compreensão e ajuda a não ser o misto de agressões verbais e físicas.
Porém, os olhos parados e resignados, ao verem o milagreiro se transtornaram e um gemido formidável ecoou pelo vilarejo.
Com fúria, passou a xingar e ofender o exorcista, aos gritos de: Assassino! Assassino!!!
Este ficou assustado com tal manifestação associada com a lembrança do passado, recém acordada por uma associação estranha entre aquela Amelinha e a sua, o deixou em alerta.
O que queria dizer isso?
Quando a menina, não sei se por acaso ou se por uma força estranha, entre dentes disse-lhe “Amélia, Amélia”, esse se postou de joelhos e numa atitude surpreendente, beijou-lhe os pés e pediu perdão.
Todos ficaram assustados com a cena, o exorcista havia se rendido ao demônio?
Beijara-lhe os pés e pedia-lhe perdão, o que queria dizer isso tudo!?
Num átimo, para desespero de todos, a menina pulou sobre ele e agarrou-o pelo pescoço.
Não iria mais tirar suas mãos, até que, numa atitude insólita, sua mãe, a mesma mãe que amava-a tanto, pegando no machado que pendia na cozinha, desferiu golpes a esmo.
De imediato, os dois corpos quedaram-se sobre o chão ensangüentado.
Juram que viram os dois abraçados, com as bocas, coincidentemente postadas uma na outra, num enigmático beijo.

DUAS VOLTAS


Na pequena Mirai de Ataulfo Alves e de Marcos Coutinho Loures, moram ainda muitos parentes meus, inclusive primos, tios, tias; parentes enfim, pelo lado de meu pai.
Entre esses meus primos, dois protagonizaram essa história que passo a narrar agora.
Declino-me de dizer o nome dos personagens por questões meio que óbvias e, à moda antiga colocarei somente as iniciais dos nomes dos nossos amigos.
P... Era um rapaz muito bem apessoado, loquaz, namorador; um tipo bem agradável e muito solicitado por todos, da pequena Mirai. Porém, tinha um hábito terrível, bebia muito e, quando estava embriagado, cismava de aprontar alguma.
Volta e meia as placas de sinalização amanheciam jogadas na rua, algumas portas das casas, abertas, outros portões escancarados; etc...
Tal fato deixava em polvorosa, os pacatos miraienses; era um tal de carro entrando na contramão, de cachorros e gatos fugindo pelas ruas, bêbados entrando nas varandas das casas, um verdadeiro pandemônio.
Pois bem, o delegado da cidade, já sabendo quem aprontava aquilo, mas sem poder provar, admoestava nosso travesso e ameaçava-o de prisão a cada final de semana.
Sóbrio, P... era o sinônimo da candura; cordato, não criva qualquer tipo de problema, muito pelo contrário. Ajudava na hora da missa, tratava a todos com solicitude e presteza; mas, se bebesse...
Um dia, no sábado à noite, P... Resolveu beber além da conta e, como havia comprado um Fusca usado, e a rua já estava praticamente vazia, pois já se passava das 2 horas da manhã, decidiu entrar com o carro dentro da Praça principal da cidade.
Para seu azar, esquecera-se que o delegado morava defronte à Praça e, ouvindo aquela balbúrdia do carro passando por cima dos canteiros, tirando fininho dos bancos, se levantou e ao abrir a janela, se deparou com o espetáculo.
Ligou para a delegacia, onde estavam de plantão dois soldados e o carcereiro J..., PRIMO EM PRIMEIRO GRAU de P....
Ao chegarem à Praça, foi o mesmo que pegar um gambá depois de embriagado e satisfeito.
P... rendeu-se sem esboçar nenhuma reação.
O delegado, feliz por ter conseguido colocar as mãos no Pedro Malasarte Miraiense, deu-lhe voz de prisão e, com um sorriso estampado no rosto, deu a ordem ao carcereiro: - J... , prenda esse vagabundo e dê DUAS VOLTAS NA CHAVE, DUAS VOLTAS, HEIN...
J... sabendo do temperamento bonachão do primo e que, assim que a carraspana passasse, ele voltaria a ser o bom rapaz de sempre; e conhecendo bem o delegado, percebendo que esse, embora justo já estivesse com a paciência esgotada com P...; pensou, pensou e:
Cumprindo as ordens do delegado, realmente deu duas voltas na chave:
UMA PARA FRENTE E A OUTRA PARA TRÁS!

DE FAMÍLIA E DE FAMÍLIAS


Naquela mesma cidade pequena de Minas, onde o Prefeito Francisco tinha tido uma votação expressiva, mesmo das beatas e dos senhores conservadores do local, como eu já citei, havia um prostíbulo famoso, com meninas muito bonitas e de variadas “espécies”.
Clarice era mestra no metièr e sabia que, a melhor forma de manter a freguesia era a variedade.
A cada mês “trocava” as meninas com outras profissionais da difícil arte de amar, por meio de umas relações comerciais que tinha com várias casas em Juiz de Fora e Rio de Janeiro.
Uma nova “estréia” era patrocinada por um dos coronéis da cidade, ou das cidades vizinhas; regada à música, dança e muita alegria.
Pois bem, Francisco, como já havíamos dito, era um dos maiores freqüentadores de tal casa de diversão sabendo, inclusive, quando haveria ou se haveria uma nova “inauguração”.
Quando viajava, principalmente em caráter oficial, pois sabia que as despesas iriam ser bancadas pela municipalidade, Francisco costumava levar consigo uma ou duas das “meninas”, para se divertir e causar inveja aos outros prefeitos das cidades próximas.
Tal variedade de “acompanhantes” dava a Francisco certo ar de virilidade do qual ele tinha muito orgulho.
Mas a verdade é que, nosso amigo e sua amada esposa tinham um casamento feliz.
Pode parecer paradoxal, mas, para a pequena burguesia local, o fato de terem um casal de filhos, irem com freqüência à missa, estarem juntos nas festas da padroeira, no carnaval e em todos os casamentos e aniversários da “high society” do local, os tornava um casal “exemplo”.
E esse aspecto “família” era de fundamental importância para Francisco.
Pois bem, como os mais antigos se recordam na década de 70 a Coca Cola litro ainda era uma raridade.
Mas, tínhamos uma de 750 ml, se não me engano que era chamada de “Coca Família” lembram-se?
Mas, voltando à vaca fria, numa dessas viagens, Francisco levou consigo duas “menininhas” das mais bonitas que tinha aparecido no lugar.
A viagem era longa, se não me engano para Belo Horizonte e, como tinham saído de manhã, Francisco estava com fome e, parando em um restaurante à beira da estrada, foram almoçar.
Francisco fez seu pedido e as meninas também.
Nesse interem, Francisco e o motorista confabulavam sobre outro assunto quando o garçom perguntou o que as meninas iriam beber.
-Coca Cola, responderam.
O garçom solícito pergunta então: FAMÍLIA?
No que nosso herói de súbito, pegando o bonde andando responde revoltado:
-FAMÍLIA O QUE?! ESSAS SÃO LÁ DO PROSTÍBULO DA CLARICE SIM SENHOR! E COM MUITA HONRA!!!!

O HOMEM DE BRASÍLIA



Havia um prefeito na zona da mata mineira, lá pelos idos dos anos 70 de características inusitadas.
Político à antiga, tinha entre suas características mais comuns, certa ingenuidade e uma absoluta matreirice associadas com uma singular singeleza.
Contam que, no auge do Opala, como um dos carros mais bonitos e de maior status nesse país, principalmente no Diplomata, símbolo de ostentação nos meios quase rurais desse país, nosso herói comprou um desses carros.
Era o orgulho do Prefeito, todo azul, com listras brancas laterais, era lindo de se ver.
Por dentro, colocara um ar condicionado, que o fazia mais e mais se sobressair sobre as dezenas de fuscas, Variants, Dkws e Corcéis que circulavam pelas ruas esburacadas ou sem calçamento do lugarejo.
Nosso prefeito a quem vou chamar de Francisco, tinha um amor muito grande pelo automóvel, quase tanto quanto pelas “meninas” da Clarice, velha cafetina de histórias generosas e muitas vezes cômicas.
Dona de vasto repertório de intrigas e confissões, sua agenda era quase que tão temida quanto à de uma coleguinha sua famosa, lá de Brasília.
Falando em Brasília, voltemos ao fato antes que os devaneios me façam perder o fio do novelo, ou da novela...
Um dia, Francisco foi chamado para uma reunião com o Governador de Minas, Francelino Pereira, se não me engano.
Esse fato deixou nosso amigo em polvorosa. Um Governador de Estado convocá-lo para uma reunião! Era um fato de maior importância, talvez o de maior relevância naquele recém nato município.
Se arrumou, mandou comprar um Terno na Ducal, loja famosa do Rio de Janeiro, se aprontou todo, mandou a patroa comprar um vidro de Vitess, se perfumou todo, recendendo ao perfume até os cabelos.
Muito bem vestido para os padrões da municipalidade, pegou o seu Opala e mandou o motorista da ambulância, velho correligionário que, na ausência de um motorista oficial da prefeitura, se colocou à disposição de Francisco para levá-lo à Belo Horizonte.
Viagem longa, cansativa, mais de 400 quilômetros, muitos deles em estrada de terra.
“Vou pedir ao Francelino para asfaltar essas estradas” pensava nosso amigo, já se sentindo dono de uma amizade mais estreita com o Governador Mineiro.
O correligionário da Arena não ia lhe negar o pedido.
Mas, voltando ao caso, eis que chegam a Belo Horizonte, cidade grande que assustava o simplório político.
No Palácio da Alvorada, ao dar entrada, teve que deixar seus documentos, o que irritou-o sobremaneira. Mas, cada roca com seu fuso, cada povo com seu uso, pensou e obedeceu mesmo a contragosto.
Ao se sentar, defronte a uma moça bonita que o pediu para esperar um pouco, começou a sentir que sua presença era aguardada, mas não tão ansiosamente como pensara de início.
Depois de quase duas horas esperando, vê chegar um homem, todo engravatado, com uma aparência muito elegante e ares de superioridade.
Esse novo personagem, ao entrar, cumprimenta informalmente a secretária, como se já a conhecesse há tempos.
Nisso, percebe quando a mesma, pelo telefone conversa com o Governador:
-Sr. Governador, o homem de Brasília chegou.
Ah, isso fora demais. Ao que, prontamente, sem titubear, Francisco se ergue revoltado e desfere essa:
- Se ele veio de Brasília, fala pro Francelino que o Francisco que veio de Opala está aqui, num vou deixar que um camarada, só por que veio com um carrinho desses possa achar que é melhor que eu. EU VIM DE OPALA MOÇA!

ARCA DE NOÉ


Falando em Padre Nonato, me vem outra história ocorrida com este inesquecível amigo.
Como já disse anteriormente, Padre Nonato era um mulato obeso, não muito alto, com voz alta e firme, humor raro e caráter idem.
Carioca da Gamboa, acostumado ao jeito moleque do Rio, principalmente do “malandro carioca”, hoje praticamente extinto, na sua forma pura e original; sendo substituído pelos “malandros” com gravata e capital, como dizia Chico Buarque; Padre Nonato amava sua cidade natal.
Os ares de Minas tinham dado um ar mais maroto e desconfiado ao nosso personagem, mas não tinham conseguido destruir a maravilha carioca que transbordava, vem em quando, em algumas atitudes e palavras suas.
O hábito de usar a batina em qualquer situação, velho uniforme de todos os dias, mesmo nos mais quentes, dava ao Padre um aspecto interessante.
Gordo, mulato, de batina negra, andando pelas ruas no tórrido R io de Janeiro em Janeiro, chamava logo a atenção.
Pois bem, nesse clima e com esse quadro de exasperar só de imaginarmos, Padre Nonato fora à Cidade Maravilhosa rever os amigos, que um dia...
E nessa viagem, ocorreu um fato insólito que gerou muitas gargalhadas em quem testemunhou tal episódio.
Centro do Rio, Avenida Rio Branco, Padre Nonato faz sinal para um ônibus.
O ônibus pára, o padre sobe no coletivo...
Até aí tudo transcorre dentro da tranqüilidade esperada.
Porém, eis que um gaiato, de dentro do ônibus sai com essa:
-Hei, está subindo um URUBU no ônibus.
Ao que o padre, sem titubear responde em voz alta:
- É a arca de Noé está cheia agora, tem o URUBU e tem o VEADO FALANTE!....

CRÔNICAS - COMO UM PADRE



Me recordado do Padre Raimundo Nonato, já citado anteriormente, tenho uma de suas mais deliciosas histórias me aflorando, coçando meus dedos e querendo nascer; antes que seja à fórceps, vamos dar vazão a essa narrativa.
Visconde do Rio Branco, como toda pequena cidade de Minas, contava com uma forte oligarquia rural e, como não podia deixar de ser, essa oligarquia detinha o poder político e econômico.
Os “Comendadores, Capitães e Coronéis” eram expressões dessa realidade.
Havia, nos anos 60, um desses “Comendadores” que, estava para Visconde do Rio Branco como quase um senhor feudal.
Homem de riqueza bastante generosa e de empáfia semelhante.
Com seu chapéu de couro, cobrindo quase um metro e noventa de força bruta e revólver ligeiro, esse cidadão atemorizava, só pelo aspecto físico, quem quer que se aproximasse.
Padre Nonato, dono de um senso de humor ímpar, mas de um sentimento de justiça maior e, não suportando o caráter prepotente do nosso ‘Comendador”, mantinha relações, por vezes conflitantes, com o mesmo.
Nos seus sermões, como libertário que era, pregava a justiça social e revelava seu caráter judicioso ao tratar, equilitariamente tanto os pobres como os abastados.
Isso irritava o Comendador; mas o bom humor do Padre, muitas vezes inibia seu desafeto.
No fundo, o Comendador admirava Padre Nonato, mas não podia confessar isso, sob pena de ter sua posição abalada, como um dos “padrinhos” e “benfeitores” da Sociedade local.
Num desses períodos de trégua, o Comendador convidou ao nosso herói para um almoço em sua fazenda.
Nonato aceitou prontamente e, ao chegar à propriedade do homem rico, foi surpreendido com um verdadeiro banquete.
Banquete para mineiro é banquete mesmo, regado a cachacinha e sucos vários, trazendo leitão a pururuca, tutu, torresmo, arroz branco, feijão tropeiro, mandioca frita, chouriço, lingüiça, entre outras coisas.
Na sobremesa, goiabada com queijo, doce de leite, doce de figo em caldas, essas maravilhas todas que trazem um prazer aos olhos, ao olfato e ao paladar.
Pois bem, ao terminar a refeição farta, o Comendador bate na barriga, arrota e solta um provocativo:
-Hoje comi muito, como há muito não comia, COMI VERDADEIRAMENTE COMO UM PADRE!
Ao que Padre Nonato, calmamente retrucou:
-É, Comendador, quer dizer que, pela primeira vez na vida o SENHOR COMEU COM EDUCAÇÃO!
CAI O PANO....

LEONEL SERTANEJO


João Polino tem uma característica de personalidade muito interessante;
Hay gobierno, soy contra. Qualquer que seja esse, mesmo o eleito com seu voto.
A capacidade de radicalizar-se contra tudo e contra todos que é vista em alguns políticos nossos, de tal forma está entranhada em João que isso se torna, muitas vezes hilário.
Na pequena cidade onde morava, João era de uma atuação efetiva, mas totalmente contraditória.
Nas eleições para a prefeitura do local, João se esmerava em discutir contra os que não apoiavam o seu candidato, chegando a discutir e praguejar contra todos, amaldiçoando mesmo os filhos se esses, porventura votassem ou fizessem campanha para outro candidato.
Nas cidades pequenas, muitas vezes um cargo qualquer, da faxineira da escola até a direção dessa, passam pela mão do prefeito de plantão, essa dura realidade tem que ser modificada, mas demonstra o grau de subserviência a que têm que se submeter para conseguir ou manter seus empregos.
Pois bem, se a “vítima” de João fosse um candidato que ganhasse as eleições, esse fazia tanta balbúrdia que, mesmo que um parente seu tivesse apoiado o candidato vencedor, provavelmente a situação para o pobre ficava difícil de se sustentar.
Mas, se o candidato de João ganhasse, ainda assim estava complicado, pois passando alguns meses, lá estava João se transferindo para o outro lado; e quem era endeusado, de uma hora para outra estava “ardendo no inferno político” do inventivo e contraditório Leonel sertanejo.
Com a última eleição para presidente não foi diferente não, se João foi Lulista de primeira hora, da noite para o dia, Lula ficou sendo culpado pela Greve de Ônibus em Vitória, pela invasão do Iraque e até pela torção no tornozelo do velho João.
A última agora é a paixão de João por certa candidata alagoana; é pensando bem faz sentido...
O que temo é que, se um dia ganhar a eleição, vai começar a achar tantos defeitos na moça que, no mínimo ela vai dar as audiências de praxe, nas palavras de João, somente de calcinha e sutiã...

OS OLHOS E O SORRISO


Trazia um sorriso indefectível, quase sempre acompanhado de um olhar a esmo, perdido, sem nexo ou horizonte.
Quase não falava e não mexia com ninguém, mas o simples fato de olhar “daquele jeito” assustava as pessoas.
Menino criado solto pelas vielas sem calçamento do pequeno distrito de Alegre, no Espírito Santo, comia às vezes, quando lhe dessem alguma coisa, qualquer coisa.
Muitas vezes o prato de comida era acompanhado por impropérios, outras vezes a negativa era acompanhada por pedradas, copos de água fervendo e outras coisas mais.
O menino foi crescendo assim, dormindo com os bois nos estábulos ou num canto qualquer a esmo.
Nos tempos de frio, e olhe que aquele lugar era frio, muitas vezes os seus pedidos por comida ou água eram respondidos com jarros de água fria, o que foi lhe dando uma resistência espantosa.
Agüentava bem o frio, passava os invernos mais recolhido, qual fosse um bicho meio que hibernando meio que vivendo.
Os dentes perdidos na falta de assistência e pelas pedradas disparadas pelos meninos do distrito, foram deixando vazios naquele sorriso que davam mais e mais a impressão de debilidade mental, mas de uma enigmática e tenebrosa face que associava esse sorriso com o olhar, olhar para nunca, para ontem.
Como em todo lugar pequeno, tínhamos ali também, os gaiatos de sempre. E a brincadeira predileta que o ócio criava era a de deixar um aos outros, embriagados.
Com ele não podia ser diferente, o álcool era gostoso, a embriaguez mais ainda, e a anestesia fazia bem ao nosso rapaz.
Embriagado, as coisas pioravam de vez.
As poucas “boas almas” do vilarejo viraram-lhe a cara, numa sucessão de impropérios e negativas que foi definhando o rapaz.
Mas o sorriso permanecia, os olhos de sempre, a vida passando, de mal a pior.
A fome voraz fez com que começasse a se adaptar a um cardápio mais variado e simples.
Começava a comer frutas e legumes, muitas vezes verdes, arrancados do pé e devorado sem tempero, sem cozimento, crus.
Quando foi visto comendo jiló cru, uma mulher teve pena e, pouco a pouco foram uma ou outra, enchendo novamente a latinha enferrujada com os restos das refeições. Os porcos nem repararam na partilha.
Pois bem, no meio dos velhacos do local havia um que ultrapassava os limites.
Ao perceber que nosso amigo repetia o que era-lhe dito, sem capacidade de analisar, ensinou-lhe os palavrões de sempre.
Até aí tudo bem, meio as risotas abafadas das “donzelas” e o praguejar das velhas beatas, tudo ia transcorrendo como de sempre.
Um dos filhos da burguesia local, e burguesia nesses casos não passa de um sitiante melhor ou, na maioria das vezes, demonstrando melhor condição econômica, mesmo que à custa de engodos e trambiques vários, não nutria muitas simpatias pelo rapaz.
O motivo foi que, um dia o ingênuo, sem querer esbarrou na roupa nova do burguesinho e, como as mãos não eram religiosamente lavadas, manchou um pouco a blusa.
Havia uma menina muito bonita e, mais que bonita, uma verdadeira patricinha, dessas que soem ocorrer nestes lugarejos.
Ao saber que o mendigo havia assobiado para ela, revoltou-se.
E, na sua revolta foi tirar satisfação com o pobre, cuja única reação foi o sorriso sem dentes e o olhar perdido.
O aristocratazinho interpretou aquilo como se fosse uma ofensa ou um tipo de deboche.
Passaram-se alguns dias e corria a notícia de boca em boca.
Acharam o corpo do rapaz, numa clareira dentro da mata, num sitio abandonado perto do centro do distrito.
As marcas de sevícia eram assustadoras, o pênis cortado, a língua arrancada, as vísceras expostas, uma crueldade ímpar.
Somente os olhos e o sorriso, como a perdoar as mãos assassinas restavam, pairando sobre o distrito...

MANCEBÔ


Falando no Padre Nonato, me recordo de outro fato ligado, no mínimo inaudito.
Contou-nos o bom clérigo que, um dos principais auxiliares de sua Igreja, lá em Visconde do Rio Branco, havia, para escândalo da conservadora sociedade da época, arranjado uma amante.
Tal fato se espalhara na pequena cidade como se fosse uma bomba de efeitos avassaladores.
Todas as beatas comentam, na surdina, tal fato, o que deixava Dona Dinha, esposa do nosso personagem, em palpos de aranha.
Muitas vezes, quando ela chegava, as rodas de conversa se esvaziavam o que a deixava sem graça.
Várias vezes, essa senhora já tinha ido ao confessionário e, em prantos, solicitava ajuda ao amigo Padre Nonato.
Esse, sem querer criar muito atrito, já que a situação era deveras delicada, resolveu, num dos seus sermões e sendo extremamente cuidadoso, conversar de uma forma mais sutil com seus fiéis.
Ao começar sua homilia, o querido sacerdote saiu-se com essa:
“Queridos fiéis, por um desses acasos, fiquei sabendo que, aqui entre nós, um dos mais caros e importantes fiéis, cometeu um pecado terrível: amancebou-se! E, continuando a falar, disse da gravidade do fato etc e tal.”
Pois bem, ao final da missa, eis que o Don Juan aproxima-se do altar e, elogiando o sermão agradece ao padre.
Esse, sensibilizado pelo efeito causado ao fiel, pergunta-lhe qual a providência que o mesmo iria tomar, após tal fato.
No que, surpreendentemente, o mesmo responde:
-Uai seu Padre, deixa o menino nascer primeiro que eu vou batizar ele com o senhor, e vou colocar aquele nome bonito que o senhor disse.
Surpreso, Padre Nonato, vendo que o fazendeiro não entendera nada perguntou-o então que nome era esse.
A resposta pronta – Uai, sô esse tar de Mancebô!

De graça, até caipirinha do Carlos Alberto.


Espera Feliz tem uma das mais animadas feiras agropecuárias da região.
Todos os anos, grande parte da população da cidade e dos municípios vizinho se reúnem para assistir a shows musicais; as crianças se animam para irem ao Parque de Diversões. Há corridas de motocross, etc.
Como o frio impera no julho caparonense, com os termômetros tendendo a zero grau de temperatura, há a venda de bebidas para aquecer esta friagem.
Carlos Alberto, sabendo disso, resolveu ganhar uns trocados com a venda de sua caipirinha, famosa entre os amigos.
Fez quase um galão da bebida e foi vender na festa.
Sem perceber, colocou sua barraca próximo a um camarada que vendia pinga com mel. Este era um antigo barraqueiro que todos os anos ia até a pequena cidade para “fazer a festa”.
Com o começo da festa, nosso amigo Carlos Alberto iniciou a venda de sua caipirinha.
“Caipirinha a um real, somente um real...”.
Ao que o vendedor de pinga com mel reagiu: “Pinga com mel a setenta e cinco centavos”.
Logo depois, a reação de Beto foi cruel: “Caipirinha a cinqüenta centavos...”.
O frio aumentando, Beto vendendo uma bebendo outra, esquentando o frio e ficando tonto. Cada vez mais quente e mais tonto.
Nessas alturas do campeonato, percebendo que não poderia concorrer com Beto, o barraqueiro já estava se retirando.
Quando, Beto percebeu isso, foi inexorável:
“Caipirinha de graça, só pra terminar o estoque, vamos nessa...!”
Obviamente, acabou tudo em pouco tempo. Beto, mais bêbado que tudo, foi para o meio da festa e ficou até de madrugada.
Dia seguinte, plantão no Hospital, Beto meio de ressaca, chegou para trabalhar.
De repente, começaram a aparecer vários pacientes com uma queixa comum: diarréia e vômitos.
Havia algo de podre no reino da Dinamarca. Nessas alturas, Beto se escondeu na Sala de Raios-X, sob o pretexto de que estava cansado...
Sebastião, outro funcionário, deu a resposta para o mistério.
“Beto, sua caipirinha estava até gostosa, mas não entendi aquele cheiro estranho e também não estou entendendo essa dor de barriga que está dando em todo mundo, inclusive em mim.”
Beto
, na maior cara de pau esclareceu com um sorriso meio maroto:
“O problema não foi da caipirinha não, o que aconteceu foi que, depois de ter feito a mistura toda, é que eu reparei que tinha feito numa lata de querosene, dessas de cinco litros, que estava no quintal lá de casa”.
O primeiro a dar uns tapas no pé da orelha de Beto foi Sebastião.
Ainda bem que a maior parte dos que tiveram a diarréia não se lembraram da caipirinha dada por “cortesia” pelo nosso amigo...
Foi a estréia e despedida de Carlos Alberto na promissora vida de barraqueiro; para agradecimento de todos, inclusive o meu. Plantão como aquele eu não esperava ter tão cedo.

As aventuras de Gilberto na cidade Grande 3 - conosco


Gilberto, muito simpático e simplório, fora visitar um primo de sua mãe na cidade de Niterói em sua primeira passagem pela cidade Maravilhosa.
Esse primo era uma pessoa muito culta, contador aposentado que tinha na leitura seu maior hobby. Fora muito respeitado como contador em Icaraí, nos bons tempos da juventude.
Escrevera um livro de poemas, poesia clássica com sonetos em alexandrinos e decassílabos heróicos e sáficos.
Fazia questão de falar um português perfeito, tomando cuidado com os acentos e vírgulas, bem pausadas em cada intervenção que fizesse.
Após os bom dias e como vai de praxe; Gilberto com a timidez inicial estava se sentindo como um peixe fora d’água perante tantos rapapés e delicadezas do primo.
A casa, com seus bustos em miniaturas espalhados pela mesa de centro, com seus quadros expostos na parede e sua biblioteca ostentada como a mostrar que naquela casa morava um erudito, inibia mais ainda nosso herói.
Mas, dentro daquela puerilidade típica dos simples, Gilberto foi se soltando pouco a pouco.
Já estava mais à vontade, dando notícias da família, que mamãe estava bem, que os meus irmãos estavam fortes, que os pés de quiabo do seu João estavam produzindo muito, que a Ritinha estava estudando, aquelas coisas de família...
Seu primo, educadamente solicitou à esposa para que preparasse uma mesa com quitutes para que fizessem um lanche rápido, conhecedor da fama de bom prato do nosso amigo.
Este, querendo demonstrar educação, prometera a si mesmo ser menos pródigo nas refeições, aconselhado que fora sobre o fato de que, na cidade grande, ao contrário do que ocorre nas pequenas cidades, o fato de se repetir à exaustão os pratos não significava exemplo de boas maneiras.
No interior, se você não repetir a refeição a dona da casa pode se sentir ofendida, acreditando que a comida não tenha sido do agrado do visitante. Se você quiser agradar, repita, pelo menos uma vez. Isso demonstrará a todos o quanto você gostou da comida.
Pois bem, quando o erudito senhor chamou-o, Betinho causou surpresa a todos que observavam a cena.
“Gilberto, você quer tomar um café e comer conosco?”
A resposta veio rápida e esclarecedora:
“Primo, o café até que eu não quero não, mas um conosquinho cairia bem agora!”

As aventuras de Betinho na cidade grande 02


Nos primeiros dias de Rio, Betinho até que não aprontou muito não.
Depois do vexame em Copacabana, resolveu, mineiramente, ficar na dele.
Por mais que a gente esperasse que Beto cometesse alguma gafe, nada ocorria. Espertamente, ele passou a repetir tudo o que fazíamos, se portando muito bem.
Mas, um dia, naquele calor e areias escaldantes do Rio de Janeiro em pleno verão, resolvemos tomar um chope num barzinho da orla.
Delicioso chope, com aquele refrescar que dá água na boca só de se lembrar.
E desce um, e desce dois, e desce mais, o calor, o chope, o chope, o calor e depois de uns quinze chopes a cabeça rodando, Beto foi se soltando.
Mentiroso de fama ímpar na região do Caparaó, foi desfiando seu rosário de “causos”, vindo a relembrar dos tempos de infância e de adolescência.
Recordou, sem brigar, a história dos bombons e de Pedro Gambá, lamentando o gênio exageradamente irascível, que abortou sua promissora carreira de ponta esquerda.
Lembrava de suas pescarias onde conseguira uma fórmula mágica de pescar cascudos com anzol, além de ter pegado vários e vários bagres e, incríveis lambaris diurnos, nas suas pescarias noturnas.
Mas isso é outra história e dela iremos nos ocupar depois.
Estávamos nos divertindo com as mentiras do nosso querido amigo. Nesse meio tempo, encontramos com um amigo nosso a quem não víamos há bastante tempo e nos distraímos com relação a Beto.
Esse não se fez de rogado e continuou a beber.
Lá pelas tantas, nosso convidado, querendo atrair Beto para a conversa, resolveu perguntar a esse se estava gostando.
A resposta veio rápida : “O chope tá uma delícia, mas mais gostosos são esses biscoitinhos”.
Biscoitinhos? Que biscoitinhos eram esses se não tínhamos pedido tira gostos?
Para nossa surpresa, Beto degustava com prazer inaudito, os marcadores de chope, colocando generosas pitadas de sal...
ERAM OS FAMOSOS “BISCOITINHOS”...

Aventuras de Beto na cidade Grande 1


Betinho, nosso famoso ponta esquerda ibitiramense, era um rapaz muito simples. Embora fosse muito forte, era de uma comovente ingenuidade.
Me recordo que, nos idos da década passada, numa inesquecível viagem fomos ao Rio de Janeiro.
Entre nós, havia um amigo extremamente gozador e, sabendo tanto da ingenuidade quanto do “pavio curto” do nosso gigantesco herói, resolveu aprontar algumas com ele.
Capixaba da divisa com Minas no Rio, tem como obsessão ir até o mar, tão longínquo quanto apaixonante.
Ainda mais nas praias cariocas, famosas por suas belezas e pelas belezas suadas que passeiam próximo ao mar.
Betinho ficou encantado com tanta beleza e, assustado com tamanha quantidade de pessoas, e com o marzão grande, repetiu aquela famosa frase dos caipiras que vêm o mar na primeira vez; soltando um gostoso: “Eta marzão besta, meu Deus”.
Renato, o nosso amigo brincalhão, não perdeu a chance:
“Você tá achando que isso aqui tudo é de graça?”
Ao que Beto respondeu: “E não é não?”
“Claro que não, tem que pagar para entrar na água.”
“Uai, onde a gente paga?”
“Você quer entrar na água?”
“Claro, quero saber se ela é salgada mesmo sô!”
Apontando para o Posto de Salvamento, senão me engano o Posto 5, lá na Copacabana, princesinha do mar, Renato foi incisivo: “É lá que se vende o Ingresso”.
Não deu outra; Betinho, sem pestanejar se dirigiu ao Posto e, perguntando ao Salva Vida onde compraria o ingresso para entrar, e quanto custava, diante da gargalhada deste, saiu indignado:
“Depois esse pessoal reclama, a gente quer ser honesto e o pessoal nem aí, vou ser obrigado a dar um “tombo” (calote na gíria da nossa região) e entrar sem pagar...”

DO DERBY IBITIRAMENSE


Final de campeonato, jogo duro entre Pedra Roxa e Santa Marta. No gol do time de Santa Marta, o reabilitado Pedro Gambá.
No time de Santa Marta, Betinho, o nosso craque da ponta esquerda, recém contratado ao Pedra Roxa.
Betinho estava ansioso para poder mostrar ao ex-time que fora injustiçado; craque que era, ao ser retirado do time.
O apelido de “Cagão” fora incorporado ao nome. Era conhecido como Betinho Cagão e isso o deixava extremamente irritado.
Todo mundo estava consciente disso, do ódio que tinha ao apelido e, se alguém quisesse briga com ele, era só o chamar pelo apelido que tinha.
Como Betinho tinha quase dois metros de altura de ignorância pura e fama de bom de briga, nem a torcida adversária ousava provocá-lo.
Contam que já tinha feito muito cabra valentão virar sócio de dentista por conta disso.
Voltemos então ao jogo. Dessa vez, por precaução, Betinho não procurou ninguém, nem dona Filinha nem ninguém mais.
Pedro Gambá, como todos sabem, era um excelente goleiro, afilhado de João Polino, ex-técnico do time; famoso pelo tiro que deu na bola, impedindo a maior goleada da história entre os dois times.
Os tempos eram outros, Pedro parara de beber e, todos dizem, se fosse mais jovem teria ido para o Rio, defender um time grande.
O jogo transcorria tranqüilo, o time de Santa Marta estava ganhando de um a zero, num golaço de Zeca Aipim, centro avante que viera do Rio passar umas férias e, por conta do futebol, acabara ficando em Santa Marta.
Quand
o, aos trinta minutos do segundo tempo, num lance estranho, Leozinho Patada, ao bater uma falta, a bola milagrosamente bateu na trave e depois nas costas do goleiro e, na bunda de Betinho, saindo milagrosamente pela linha de fundo.
O goleiro Pedro Gambá, ao comemorar a ajuda do ponta esquerda e sorte salvadora deste, caiu na besteira de fazer o seguinte comentário:
-Ainda bem que você é muito cagão, Betinho.
Antes não tivesse feito. O sangue ferveu e Betinho, sem perceber o que estava fazendo partiu para a agressão contra o pobre goleiro.
Um soco só e o pobre infeliz estava desmaiado, com a boca estourada e os dentes, os pouco restantes, espalhados pelo gramado.
Os dois expulsos, um preso e outro no Hospital.
O jogo terminou para desespero de João Polino em três a um para Pedra Roxa.
A partir daquele dia, realmente Betinho, espera um pouco preu ver se ele não está perto, Cagão teve que encerrar sua carreira.

A CARREIRA RELÂMPAGO DE UM PONTA ESQUERDA


Durante praticamente toda a sua carreira como jogador de futebol Betinho sempre deu muito azar.
Reserva do melhor jogador do time de Pedra Roxa, o famoso Léozinho “patada”, por ter o chute mais poderoso do Sul do Espírito Santo, esperava ansioso pela oportunidade de poder mostrar o seu talento, ou em busca da posição de titular ou, quem sabe, poder ser visto por outro clube e se transferir.
Betinho era um canhoto muito habilidoso e tão supersticioso quanto.
Nos seus tempos de menino, sonhava sempre com a camisa 11 da seleção brasileira, mirando sua carreira na de Zé Sergio, famoso ponta esquerda do São Paulo e da Seleção Brasileira.
Dormia e acordava pensando em futebol, sua paixão pelo Vasco da Gama tinha lhe dado muitas alegrias, principalmente quando o Flamengo perdia.
Aí se realizava totalmente, ficava a semana inteira sorrindo, mais feliz até do que quando o vascão lograva ganhar.
No infantil e no juvenil, a carreira ia de vento em popa até que, numa hora maldita, o tal do Leozinho, camarada nascido lá em Caiana, Minas, se mudou para Pedra Roxa.
Daí em diante, somente decepções.
Mas, como o sol nasce para todos, um belo dia apareceu a oportunidade que Betinho tanto esperava.
Leozinho que quase nunca se machucava teve um estiramento muscular, não foi um estiramento comum, havendo até ruptura muscular e logo da coxa esquerda, a da “patada”.
Betinho, com toda a superstição desse mundo, resolveu procurar uma mãe de santo para poder se aconselhar como poderia aproveitar melhor aquela chance.
A mãe de Santo foi inexorável – teria que colocar dois bombons caseiros dentro da sunga e jogar com os bombons, sem poder retirá – los.
Esses “bombons” santificados pela dona Filinha eram a chave do sucesso.
Betinho, muito crédulo, assim o fez.
O jogo era contra Limo Verde, clássico intermunicipal; sempre envolto em muitas confusões, principalmente se o jogo fosse ao campo do Limo Verde e esse era o caso.
Como o uniforme do Limo Verde era obviamente verde, o Pedra Roxa resolveu jogar com o seu uniforme reserva; totalmente branco.
O dia estava muito quente e o sol estava escaldando, mais de trinta graus à sombra.
Betinho, empolgado com a oportunidade, obviamente não se esqueceu dos bombons.
O jogo começou muito corrido, e com o calor e a transpiração, os bombons começaram a derreter.
Bombom dentro de sunga branca em calção branco, derretido; imagem como ficou.
O técnico ao ver a cena nem pestanejou: “esse menino não tem condições de jogar no meu time” e, imediatamente sacou-o do jogo.
Assim, nesse mal entendido, mas nem tão mal cheiroso, a carreira promissora do nosso ponta esquerda, acabou.
Ao sair de campo, foi direto à casa de dona Filinha, que disse o seguinte:
-Mas vancê é munto burro mesmo, pru não feiz com os bombons com chocolate branco?

ROTINA E DESESPERANÇA


Aquele dia não seria diferente dos outros, a vida vai em ondas como o mar. Vai e volta, ondula e, embora não se repita, sempre retorna para o local de onde veio. Da terra, da água, dos elementos todos, continente e conteúdo.
A mão cansada de tantas escritas, de tantas labutas, da força bruta e da esperança curta.
Capaz de fazer sol ou talvez de chover.
Chuva na alma é lágrima na certa. Mas é bom que limpa os olhos para poder ver melhor o novo dia.
Fantasias e ilusões se despedem da realidade, mas logo essa vem e desabam-se todos os castelos. A areia volta a ficar disforme e repete-se o mecanismo intrincado que leva do nada ao nada.
Dia comum, homem comum, com um sonho comum, como um outro qualquer.
Qual quer que seja a causa, os percalços cansam os pés descalços e machucam. Resultado: calçar de novo a bota. Embotam os pensamentos, mas nada mudaria.
Nada mudará.
A rotina que a retina absorve, conserva viva toda espreita, toda espera, mas nada.
Mais nada poderia transtornar mais do que a ausência. Nem a presença.
Ele agora tinha certeza de que ela fora embora. Embora a cama desfeita denunciasse a companhia.
Entre saudade e alívio, a opção era dupla, ou tripla, tripas expostas do relacionamento que se partira, extirpado, estripado, expulso de maneira comum, portanto sórdida.
Sabia que ela não o amava mais. Nem ele, tampouco. Nem a ela e nem a ele mesmo. A mesmice, mumificara o que ficara dos murmúrios de amor.
A meia idade, a meia luz, a meia vida, a meia esperança, as meias soltas ao lado da cama. Meio de vida de pobre, classe média, média com pão e manteiga. Vida pingada como o pingado do boteco, no teco-teco que nunca decola.
De cola firme, colada ao peito, calada no peito, na calada da noite.
O te quero nem mais nem tento, invento, no mesmo intento.
Preferia o tento a contento no mesmo canto sem encanto, desencanto.
Destilando o destino, ir embora.
Mas nada adiantaria, ele bem sabia que nada adiantaria.
O porto aberto, meia garrafa, o porto distante, a porta escancarada, aportando e portando a mesma sensação.
O vazio, o vão, o chão da casa, e o não repetido.
Vestiu a camisa, a brisa esfria e provoca a tosse. Nas troças da vida, as trocas e traças, estraçalhando os traços pretensos.
Na parede, um olhar sem sentido, o mesmo olhar perdido, denunciava que, realmente, aquela vida não seria diferente das outras, quanto mais o dia...

AMA SECA


Nunca gostei de cães, nunca. Sempre tive certa ojeriza a esses animais barulhentos, com suas manias absurdas, como arranhar a casa toda, sujar todos os ambientes, essas coisas...
Todos os cachorrinhos do mundo, em contrapartida, eram adotados por minha irmã, Andréa Cristina.
Deveria se chamar Francisca, tal a mania de trazer filhotes de animais para casa.
Lembro-me de pelo menos uns dez cães e outros tantos gatos. À noite, durante um belo par de noites, ninguém conseguia dormir direito com a sinfonia dos filhotes .
Andréa era cuidadosa e isso fazia com que a maioria sobrevivesse aos primeiros dias, crescendo amamentados pelas mãos carinhosas e meigas de Andréa.
Mãos cristinas, verdadeiramente cristinas.
Porém, depois de alguns dias, quando já estavam aptos à sobrevivência, misteriosamente desapareciam.
As “fugas” noturnas só nos foram esclarecidas depois de muito tempo, quando meu pai confessou ser o misterioso alforriador dos bichinhos.
Mas um dia, em Mirai, quando estávamos visitando nossa amada avó, fato que se repetia nas férias escolares ou nos feriados prolongados, Andréa abusou.
Àquela época, lá pelo final dos anos sessenta, ainda não havia essa conscientização com relação aos animais silvestres, portanto o estilingue ou atiradeira, era um dos brinquedos mais usados pelas crianças, além da espingarda de chumbinho.
Os ovos e pintinhos da casa da minha avó estavam desaparecendo, deixando marcas indeléveis da presença de algum “nefasto” visitante noturno.
O diagnóstico foi firmado e confirmado – Gambá.
Para quem não sabe, esse bichinho, além do hábito de comer ovo e pequenos pintinhos e frangos, tem a incontrolável obsessão por cachaça.
Gosta e gosta muito, bebe até cair e, depois disso, ali fica, rindo e satisfeito.
Feito isso, é só dar uma paulada na cabeça e a ninhada agradece.
Um belo dia, após terem sido executadas, com êxito absoluto, as táticas de guerra, meu tio anunciou a morte do fedorento animal.
Passados alguns instantes, eis que surge a minha irmã com uns cinco ou seis pequenos animais rosados nas mãos.
Não era gambá, era gamboa. E estava com uma ninhada dentro da bolsa.
O marsupial deixa o filhote na bolsa até completar o crescimento desses.
E, por sorte dos filhotinhos, isso estava para acontecer a qualquer momento quando houve a execução.
Pois bem, a franciscana Andréa, para assombro de todos e repugnância de alguns, menos do meu pai, resolveu adotar os bichinhos.
Esses cresceram e, desta vez, sem ajuda do abolicionista Marcos Coutinho Loures, deram vazão a seus instintos selvagem e fugiram, deixando minha irmã extremamente tristonha.
Ama-seca de gambá, primeira e última de que tenho notícia.

MENOSPREZO E TRAIÇÃO


O dia estava lindo, um sol maravilhoso num céu de brigadeiro.
O rio convidava a nadar e, como sempre fazia desde menina, ela resolveu ir até a prainha que se formava numa curva do rio, em sua fazenda.
Colocou seu biquíni e foi, aproveitando as férias escolares que se iniciavam naquele dezembro abrasador.
Sabia que, naquela hora, os meeiros e campeiros estavam trabalhando e, filha de coronel, ninguém ousaria perturbar o seu banho de sol.
Bastava uma palavra para que o pai resolvesse o problema do bisbilhoteiro.
Deliciosamente deitada, com aquela preguiça salutar e reconfortante, olhava a esmo, como que namorando a interminável corrente que trazia e levava as águas do rio, nesse suave escoar...
Lembrara-se de seu aniversário, maioridade atingida, agora era dona do nariz.
Aliás, sempre fora. Amazona aos doze anos, cavalgava maravilhosamente bem, com os lindos cabelos louros soltos, montada a pelo sobre o seu cavalo manga-larga. Bela cena que a memória do vilarejo fez questão de registrar no único foto da vila.
Dezoito anos, faculdade próxima, ano que vem vestibular. Medicina era o sonho, poderia fazer, o pai garantiria tudo.
Vida boa, liberdade.
Quando, ao longe, na estradinha de lavoura que cortava o morro mais próximo, sentiu um movimento estranho no bambuzal.
Reparando bem, percebeu que o movimento se repetira algumas vezes.
Pegou o binóculo e, para sua surpresa, reparara nos vultos de uns meninos, adolescentes e quase crianças lá no alto.
Pensou logo que estavam observando-a, presa da curiosidade e da sensualidade que aflora na adolescência.
Isso era o cúmulo. Ia dar o flagra nos meninos e entregá-los ao pai e que se danassem estes pestinhas.
Silenciosamente, se levantou e como se fora nadar, mergulhou no rio.
Exímia nadadora, sabia como fazer para surpreender os moleques.
Após ter nadado uns cem metros e sumido do campo visual dos meninos, voltou à margem e, subindo célere o morro, se preparava para repreender os safados.
Qual o quê, para sua surpresa não era nada do que imaginava.
Parada, quieta submissa, uma mulinha estava na estradinha.
Passiva, recebia os “carinhos” de um moleque de mais ou menos treze anos.
E, depois dele, uma fila se formara.
Cada um aguardando a sua vez...
Ao ver tal cena, sua ira redobrou e, tomando um pedaço de pau na mão, começou a espancar a esmo, todos os meninos, aleatoriamente.
Pior do que ser observada e desejada pelo bando dos moleques, era isso.
Quando viu os meninos desejando a mulinha, sentiu um enorme vazio no peito e uma terrível sensação de menosprezo e de traição!

DAS CAMPANHAS POLÍTICAS - COMO SE ABORTA UM SONHO


Jovem e apaixonado pela política, Fernando era um dos principais talentos de oratória do MDB muriaense e, disso muito se orgulhavam seus pais e parentes.
Aos 22 anos, era candidato à Câmara dos Vereadores e, com um discurso eloqüente conquistava, a cada dia, mais respeito e maior número de eleitores.
Seus discursos inflamados empolgavam a todos, levando muita gente ás lágrimas.
A sua verve política era de assombrar mesmo os mais antigos e experientes políticos.
Porém, um fato insólito, marcou sua estréia como político.
Muriaé, como uma cidade que vivia da Rio - Bahia e era freqüentada por muitos caminhoneiros, tinha uma das maiores e mais variadas Zonas Boêmias da região.
Famosa pelo tamanho, quantidade e qualidade de opções tinha, apesar de se localizar no centro da cidade, algumas características iguais a todos os bairros proletários desse país.
A polícia visitava bem mais a região do que a prefeitura. O sistema de saneamento básico era um horror. A iluminação pública, um descaso total, assim como a saúde dos moradores, abandonados.
Água potável? Nem pensar. Água de mina, se tanto.
Fernando, como bom e honesto ideólogo, tentava reverter esse quadro.
Pois bem, seu trabalho de dia a dia era um dos mais admiráveis, sempre em presença do Padre Jonas, velho “comunista” para o Governo, mas um excelente e coerente cristão.
Às vésperas da eleição, no seu último discurso, Fernando escolhera justamente essa região para fazer um comício.
Centenas de pessoas se aglomeravam para poder ouvi-lo.
Estava bonito de se ver, aquelas bandeirinhas do antigo MDB desfraldadas naquela região abandonada por todos.
Ao começar o seu discurso, Fernando fez uma comparação entre sua candidatura e outras, da famigerada Arena.
- Márcio, filho do dono da Fábrica de Tecidos o que é?
-Candidato dos empresários!
Os aplausos corriam à solta. Entre hurras e foguetes.
-Antonico, o fazendeiro mais rico da região é o quê?
- Candidato dos latifundiários.
Mais aplausos e mais foguetes.
Mas aí, aconteceu a tragédia!
-Eu, que nasci aqui no meio de vocês o que sou?
Aí um gaiato, mais que depressa deu a resposta que selou a candidatura fracassada do jovem Fernando:
- FILHO DA PUTA!!!!!

DA UPC E DO CONSERVADORISMO


A ditadura militar deixou sobre muitos brasileiros uma sensação de medo que, muitas vezes, se aproximava de um pavor incontrolável.
Dentre essas pessoas vitimizadas pelo pânico aparentemente sem motivação algum, estava Átila que, apesar do nome, era um dos mais medrosos dentre tantos iguais, na cidade de Ubá.
Ubá, cidade de mais ou menos cem mil habitantes na zona da Mata Mineira, é um dos principais pólos da indústria de móveis de Minas e, como toda cidade mineira que se preza, tinha na TFP uma de suas mais eficientes e castradoras entidades.
Nos idos dos anos 80, o ar que se respirava, para horror de Átila, trazia o prenúncio de liberdade.
O escravo adora e teme o chicote e, como não poderia fugir à regra, nosso amigo era um fervoroso defensor da ditadura militar, o que trazia, embutido, seu ódio contra tudo que “cheirasse” a manifestações contra o Estado Ditatorial.
Foi candidato, derrotado, à Câmara Municipal pela Arena, obviamente.
Quando soube das greves no interior paulista, amaldiçoou aquele “barbudo agitador”.
Expressava sua revolta para quem quisesse e tivesse paciência de ouvi-lo.
Quando houve a ANISTIA, exasperou-se ao ver o “temível” Leonel Brizola descer no Aeroporto do Rio e ser, cúmulo dos cúmulos, aplaudido por uma multidão.
É, esse país estava virando uma anarquia. Que saudades dos tempos de Médice e de Geisel. Aqueles homens é que eram de bem.
Um borra botas fujão como esse Leonel ser aplaudido, isso o revoltava sobremaneira.
Ao ver uma foto de Fernando Gabeira portando uma tanguinha de crochê, e sendo apontado como o “Muso do verão”, ficou exacerbado : “Como pode um comunista safado como esse, depois de ter matado muita gente no Araguaia aparecer agora com essa coisa de crochê? Isso é muita falta de vergonha! Isso é coisa de um homem usar?”
As eleições para Governador o assustaram mais ainda. Ao saber que o “fujão” se elegera Governador do Rio, quase teve um colapso.
Tancredo Neves, ainda vai lá, mas esse tal de Brizola não. Nunca.
Entre seus amigos, as discussões políticas sempre terminavam com suas máximas tipo : “Brasil, ame-o ou deixe-o”, entre outras cositas más.
Pois bem, com isso, seu círculo de amizades foi ficando restrito e quase que se resumia a Pedro Paulo.
Companheiro de sinuca e de “visitas às escondidas” à famosa casa da red light, ou da luz vermelha, se preferires.
Mas aquilo que vira naquele fatídico dia no BANCO DO BRASIL, logo num banco estatal, o deixou extremamente chateado.
Ao entrar no banco, lera UPC, a famosa Unidade Padrão de Capital que, para gáudio dos que assistiram a cena, transformou-se sob uma voz revoltadíssima na seguinte afirmativa:
“Esse é o cúmulo do absurdo, a que ponto chegamos, em pleno Banco do Brasil, fazer uma propaganda dessas; repare bem no que está escrito:
UPC – União dos Partidos Comunistas”...

DE BÓIAS FRIAS E BÓIAS QUENTES


O vírus da política ataca algumas pessoas em fases bem distintas da vida.
Conheci, em Minas Gerais, um médico desses antigos, da época onde ainda não existiam hospitais na maioria das pequenas cidades, quando a medicina era exercida quase que artesanalmente, sem laboratórios nem exames complementares mais efetivos.
Esse colega, já beirando os setenta anos de idade, pertencia a essa fase naquela cidadezinha bucólica.
Tinha como característica, o fato de prescrever medicamentos de há muito abandonados e substituídos por outros, sem que o abandonado médico, sem contacto com revistas e muito menos representantes de laboratórios e menos ainda com as notícias mais recentes da medicina, tivesse buscado qualquer atualização.
Outra característica que lhe era peculiar era o hábito de construir e destruir e reconstruir várias vezes a casa onde morava e onde era seu consultório e até centro cirúrgico, onde fazia pequenas, médias e até, ousadamente, cirurgias de maior porte.
Com o detalhe de ser, ao mesmo tempo, cirurgião, anestesista e parteiro, contando somente com o apoio de um atendente de enfermagem cujo apelido era bem sugestivo: “Peremo”.
Ao procurar saber a origem do apelido, alguns amigos foram bem objetivos – seu apelido derivava da resposta que dava quando alguém lhe perguntava como tinha sido seu dia de trabalho- “Peremo duas pendicite e uma ursa no istombo!”
Esse médico, durante sua vida de dedicação ao município, teve participação efetiva na construção do primeiro posto de saúde, no hospital municipal, na criação do Ginásio Estadual e depois na “Escola Estadual de primeiro e segundo graus”.
A construção do Clube Recreativo da cidade também fora idéia sua.
Portanto, quando jovem, tinha tudo para se candidatar com êxito ao cargo de Prefeito, mas não o fizera, deixando que a idéia fosse aflorar na sua maturidade.
Ao se aposentar, acreditando no poder que julgava ter sobre os cidadãos do município, lançou sua candidatura à Prefeitura.
Uma de suas promessas demonstra o grau de senilidade do nosso amigo.
Propunha, para ineditismo programático, uma coisa fantástica ou de insanidade ímpar.
“Vamos propor a transformação do Bóia fria em Bóia QUENTE, com a colocação de veículos da prefeitura, distribuindo a alimentação na Zona Rural, na hora do almoço e do lanche dos lavradores. Isso vai acabar com a comida fria, transformando os agricultores em BÓIAS QUENTES.”
Obviamente
, com pouco mais de 200 votos, coube ao nosso doutor mudar-se, revoltado, para o Rio de Janeiro onde soube foi encontrado morto num motel, acompanhado de uma jovem adolescente de 18 anos.
Mas isso são fofocas, e eu odeio fofocar

Suco de Jabuticaba...


Em Espera Feliz, tenho um grande amigo, um dos melhores fisioterapeutas que conheci, sujeito íntegro, honesto, de uma serenidade invejável.
Já quase cinquetão, toda semana faz uma via crucis, de Espera Feliz até o interior do Estado do Rio, onde moram sua filha e sua esposa.
A opção sacrificante pela melhor qualidade de estudo e de base financeira para a filha, segue-se há mais de dez anos; mas o meu querido amigo não reclama, fazendo semanalmente o percurso sem nem ao menos demonstrar cansaço.
Pertencente a uma Igreja evangélica extremamente rigorosa com relação a hábitos como o de beber, de fumar ou de comer carne de porco, nosso amigo é um dos missionários mais assíduos e respeitados dessa Igreja.
Pois bem, um belo dia, ainda no período em que sua esposa morava em Espera Feliz, me recordo de um convite que eles me fizeram para visitar a casa nova que haviam alugado.
Convite regado a um delicioso churrasco e a refrigerantes, aos quais, como abstêmio, não fiz nenhum reparo.
Mas, lá pelas tantas, animado com uma receita de “suco” de jabuticaba que obtivera de um conhecido cafeicultor da região, fui convidado a tomar um copo de tal maravilha.
Realmente estava muito gostoso, supimpa mesmo.
Conversa vai, conversa vem, suco pra cá, suco pra lá, a cabeça começando a girar, a música ficando mais alta, a animação também, resolvi perguntar ao meu amigo como se fazia tal delícia.
A resposta veio rápida e elucidativa:
“Marcos, pegue dez litros de jabuticaba, coloque dez quilos de açúcar, deixe em uma vasilha grande por vinte dias, depois é só coar, deixar na geladeira e beber”.
Realmente, tinha descoberto uma receita maravilhosa para se fazer um licor de jabuticaba.
Não devia, nem podia, mas esclareci ao meu amigo dos poderes maravilhosos da alcoólica bebida.
Espantado, a partir daquele dia, o suco de jabuticaba continuou freqüentando sua geladeira, mas sem os fundamentais vinte dias de fermentação...

Odeio essa gentalha


Odeio gentinha. Podem ter certeza de que não há coisa pior do que esse tipo de coisa abjeta chamada povinho.
Não quero ser preconceituosa, mas me dá nojo saber que tem gente que defende esse bando de cachaceiros.
Inclusive um presidente tão beberrão como esse que o povinho escolheu para governar esse paisinho de terceiro mundo.
Se o sujeito ainda bebesse vinho, cognac, uísque, ainda ia. Mas, francamente, bebedor de cachaça é duro.
Um camarada que não tem noção do que seja finesse, nem tem idéia do que seja escargot nem vitela. Acredito que esse sujeitinho de terceira deve achar que caviar é caca de barata.
Falar em ovas de esturjão, para esse tipo de gentinha deve parecer ofensa...
Cada asneira falada por esse boçal me dá mais tristezas por ter nascido nesses cantos de cá. Paiseco infeliz.
Aquela máxima tem tudo a haver com o que vocês chamam de “País do Futuro” – que povinho Deus mandou para cá.
Lembro-me dos bons tempos passados, dos tempos do Copacabana Palace, do Ibraim Sued...
Que delícia me recordar dos jantares no Hotel Glória, nas festas no Quitandinha, nos grandes saraus nas mansões de Botafogo...
Tínhamos orgulhos de sermos brasileiros.
Não éramos governados por essa caboclada inculta e sem classe.
Uma vez, num dos dias mais inesquecíveis da minha vida, Jorginho, o nosso playboy, namorou Grace Kelly!!
O Presidente da República tinha que, como diplomata maior da nação, falar no mínimo quatro ou cinco idiomas.
Não ser um ignaro energúmeno como esse que temos agora!!
Como podem ter dúvidas entre um MÉDICO e um operário preguiçoso que cortou o dedo para se aposentar?
Ah! Que saudades dos tempos onde tínhamos um Paulo Francis, um Guinle... Hoje o que restou? Respondam-me: O que sobrou disso tudo?
Nada, um povinho funkeiro, sambista (que nojo), coisa de favelado...
Me lembro daquelas noites quando dançávamos com Paul Mauriat, Severino Araújo, que delícia...
Depois que inventaram essa tal de “democracia”, isso tudo acabou.
Não que eu seja a favor da ditadura não, longe de mim, sou a favor da aristocracia; se possível, da monarquia.
Imaginem que maravilhoso termos um Rei, termos barões, duques, condes e viscondes...
Quanto teríamos de belo e maravilhoso na Corte, com seus palácios e requintes...
Mas juntou-se essa petralha ladra e roubou tudo, sonhos e dinheiro.
Pobre não pode ter oportunidade mesmo não, o meu amado Fernando Henrique está certo, pobre chegou perto de dinheiro, acabou...
Outra coisa, essa turma tem é que ir trabalhar, não é partido de trabalhador?
Não me venham falar em igualdade, nem em fraternidade, muito menos de solidariedade; isso é conversa para ganso dormir.
Ganso gordo, foie gras fabuloso.
Faisões, galetos a primo canto.
Camarões, lagostas, mas lula, lula não. Isso é coisa de polvo...

Uma esmola a um pobre que é são. ( Captado numa conversa dentro de uma loja de muambas chiques em Sampa)


Um total absurdo essa distribuição de dinheiro para a ralé. Quem tem competência que se estabeleça, quem não tem, fazer o quê?
Não agüento mais esse lero-lero pseudo esquerdista de “renda mínima”.
Quem mandou o sujeito não estudar? E, depois que estudar, vai fazer o que com o diploma?
Essa história de dar o peixe, está criando uma geração preguiçosa!
Podem apostar que, daqui a alguns anos vai ser muito difícil encontrar empregadas domésticas, lavradores, biscateiros, faxineiras, etc...
Essa plebe rude vai se achar capaz de alguma coisa e aí, já era...
Vamos ter que procurar mão de obra nos países mais pobres.
Ou vamos poder convencer uma advogada a trabalhar como doméstica?
Esse pessoal tá pensando o quê? Estão achando que vai haver melhor distribuição de renda?
Eu, francamente, tenho pena dos iludidos que vão pensar que poderão competir com os rapazes e moças criados a pão de ló. Na hora agá, desemprego ou subemprego.
Não se iludam não, vocês estão sendo enganados por esta corja ladra e escroque!
O que é do homem, o bicho não come! Filho de peixe, peixinho é...
Então, meus filhos, prestem atenção no que essa mulher vivida, educada nos melhores colégios do Rio e da Europa diz : NÃO SE ILUDAM COM O SAPO BARBUDO.
É melhor vocês ficarem aprendendo a costurar e cozinhar, lavar chão, e lavar banheiro, pois esse será o final de quem acreditar nesse “golpe do canudo”.
Quem nasceu para plebe nunca chega à majestade!
E, na verdade, todos esses programas “esmolares” que dizem, assistencialistas, me lembram aquela máxima:
“Seu doutor, uma esmola a um pobre que é são, ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão”.
Eu acuso Lula de estar transformando nosso povo em uma cambada de sem vergonhas e viciados...
E, depois quem vai fazer a faxina lá em casa?
E, quando meu sofá ou as roupas ficarem inutilizáveis, vou poder dar para quem?
Já estou vendo em quanto esse Operário Ladrão e Alcoólatra vai inflacionar a caridade...
Onde vou colocar os brinquedos quebrados dos meus netos?
Me respondam e pensem. Onde iremos parar com esses programas “sociais”?
Por último, como faz para pescar? Se alguém souber, quero aprender.

DOS TEMPOS DA ARENA E DO MDB


Nos tempos da ditadura, como todos nós sabemos, havia somente dois partidos políticos no Brasil, mas, por uma desses casuísmos inerentes aos períodos de exceção, havia a divisão dos partidos em “famigeradas” sublegendas, o que permitia, em Muriaé, que a antiga UDN e o antigo PSD andassem lado a lado numa mesma ARENA governistas.

Alguns poucos corajosos, se reuniam no MDB e faziam tripla oposição; aos Governos Federal, Municipal e Estadual, todos unidos sob a égide da cruel ditadura militar que vivíamos.

Em Muriaé, havia uma professora de Português muito querida por todos, de temperamento explosivo e famosa por suas atitudes corajosas e, muitas vezes, intempestivas.

Pois bem, numa eleição para prefeito e vereadores, lá pela década de 70, a nossa amada mestra, resolveu se candidatar.

Como só poderia ser, optou pelo MDB, o que diminuía bastante suas chances de se eleger, mas, mantinha a coerência de uma lutadora.

Tínhamos nesta mestra, além de um excelente caráter, uma purista do idioma, reagindo com indignação a qualquer erro crasso que ocorresse.

Cabo eleitoral de cidade pequena, normalmente, não tem ideologia. A sua principal função, a de arregimentar eleitores, normalmente é recompensada a peso de ouro.

Luisinho Pereba era um dos mais requisitados de Muriaé, tinha dívidas para com o pai de nossa heroína, fruto de casos passados ligados à compra e venda de gado.

Nessa eleição, portanto, não adiantava nem a Arena 1 nem a Arena 2 tentarem contratar Luis, este estava irremediavelmente ligado à nossa candidata.

Estava, mas não ficou...

Não é por causa de “compra” ou aliciamento, como vocês podem pensar não. Luis era incorruptível.

O problema foi a maldita mania de perfeição de nossa mestra com relação ao idioma.

Num comício, para melhor localizarmos, no MAIOR comício preparado pelo MDB, ansioso com a provável votação recorde de sua candidata e a possibilidade de eleger um vereador, fato raro naqueles tempos bicudos, a professora fez um dos mais belos e corajosos discursos.

Ao falar da desigualdade, da opressão, da falta de liberdade de expressão, nossa heroína se emocionara às lágrimas.

Empolgado, Luis, mesmo sem entender muito que a mestra dissera, resolveu tomar o microfone e defender, com unhas e dentes a sua candidata.

Num momento de emoção incontida saiu-se com essa:

-Votem em M..., ela é a MULHER IDEAL PRA “CAMA” DOS VEREADORES DE MURIAÉ!

A professora, ao ouvir tal disparate, não conseguiu se conter:

- Ideal PRA CAMA DOS VEREADORES É A SUA MÃE, SEU IMBECIL!

Surpreso com a reação da professora e sem entender muito bem o porquê, Luis se levantou e retirou-se do palanque. Do palanque e da campanha!

Claro que a nossa mestra não se elegeu, mas pelo menos a sua honra e a da “flor do Lácio” foram respeitadas!

DAS CARONAS E DE PAULO CARNIÇA

Falando em Paulo Carniça, assim que se aposentou como açougueiro e político, o nosso querido amigo, passou, por um processo de alienação mental progressiva, a adquirir um hábito terrível.

Pedia carona a quem quer que fosse para qualquer lugar.

Era comum alguém passar de carro e, ao ser feito o sinal de solicitação de carona por Paulo, ao parar e informar que o rumo a ser tomado era outro, Paulo entrar no carro assim mesmo e ir para nem imaginava.

Esse hábito era conhecido de todos, inclusive por João Bento, caminhoneiro conhecido de uma cidade próxima a nossa.

Pois bem, numa tarde de sexta feira, João Bento, ia para Muriaé, onde tinha marcado um encontro com um desafeto para acertarem as contas sobre um terreno vendido há tempos, no estado da Bahia.

Distraído, ao perceber que Paulo lhe pedia carona, parou e perguntou para onde esse ia.

Ao informar Paulo que iria para Muriaé, esse, prontamente, subiu no carro e se acomodou no banco do carona.

Quando chegaram ao cartório, João pediu a Paulo que esperasse um pouco, pois ele voltaria em seguida.

Para espanto de Paulo, ao descer, João deixou perceber que estava armado.

Mas, como Paulo conhecia João e sabia que o mesmo tinha um temperamento pacífico, permaneceu no seu lugar enquanto o amigo se dirigia par o cartório.

Nesse ínterim, um conhecido de Paulo o reconheceu e começou a conversar com ele.

Assunto bobo, tipo como vai a comadre, como vão os meninos essas coisas...

Mas, de repente, se ouviu um tiro e um burburinho gigantesco no outro lado da rua.

João vem correndo, abre a porta e, com a arma ainda em punho, acelera o carro a toda.

Paulo, pálido e tremendo todo, dos pés à cabeça, olha para João que, sem pestanejar foge em alta velocidade, Rio Bahia abaixo.

Num sentido totalmente contrário ao da pequena cidade.

João distraído e Paulo apavorado, não deu outra.

Quando João se apercebeu da presença de Paulo, já estavam próximos de Governador Valadares.

Ao perceber o amigo em estado de pânico, mas sem poder voltar para trás, pergunta-o se poderia deixá-lo ali.

Paulo nem sabia que cidade era aquela, mas, devido ao estado de choque em que se encontrava, nem pensou em dizer não.

Devidamente “despejado” na cidade estranha, Paulo dava graças a Deus por estar vivo.

João, quando parou o carro, quase na divisa com a Bahia, ao reparar bem naquela mancha escura no banco do carona do seu carro, passou a entender melhor o apelido de Paulo Carniça.

Quanto a esse, depois de tal episódio, se curou da mania de pegar carona.

Agora, como ele voltou para casa; isso são outras caronas!

DE COMPUTO E DE CÔMPUTO


Num dos episódios mais tensos da Câmara dos Vereadores de nossa pequena cidade, temos um embate inesquecível.

Dr. Flavio era um daqueles médicos do interior que, por idealismo ou por sede de poder, passa a entrar na vida política do município, normalmente com êxito.

Elegera-se vereador e, como tal, era uma ilha de conhecimento em meio ao deserto de idéias que compõe normalmente o poder legislativo interiorano.

Paulo Carniça, depois que concluíra o Mobral estava a toda e, já fazendo o projeto Madureza, se achava um douto, capaz de emitir com franqueza suas opiniões sobre qualquer assunto.

Num de seus arroubos de intelectualismo, em plena sessão aberta da Câmara Municipal, saiu-se com essa:

-Senhor Presidente, eu computo novos casos de tuberculose na nossa cidade, e isso vem aumentando todos os meses;

Além disso, eu computo também o aumento das muriçocas e pernilongos que estão impedindo o nosso povo de dormir.

Nessas computações, foi um tal de computo pra cá, computo pra lá até que, para cutucar o doutor Flavio que a tudo observava calado, Paulo cismou de dizer “computo que o atendimento da Santa Casa está muito aquém do que merece nosso povo!”.

Nessas alturas, Dr. Flavio se ergue e, agressivamente responde ao vereador computante.

-Vossa Excelência está enganado, NÃO SE FALA COMPUTO E SIM CÔMPUTO!”, para começo de conversa e, depois, o senhor não tem conhecimento de causa para poder julgar o trabalho de saúde no nosso município.

Ao que, sem pestanejar PAULO RESPONDE:

- Em primeiro lugar, quando eu falo com Vossa Excelência eu falo COM PUTO sim! E, depois quem é o Senhor pra falar em conhecimento de causa. Pelo que me consta o Senhor é Doutor médico e não doutor advogado!

DOS POBREMAS QUE ADAPITO


O Português é um idioma muito complicado e traz algumas armadilhas que são extremamente freqüentes e até aceitáveis, tanto que uso a linguajem coloquial e dialética em muitas coisas que escrevo.
Mas, no dia a dia, temos que tomar muito cuidado com as palavras.
Principalmente de acordo com a função social que exercemos.
Conheci um professor de português que não conseguia falar PROBLEMA, sendo inevitável o POBREMA, embora escrevesse corretamente.
Da mesma forma, conheci um outro que pela dificuldade de falar com o p mudo e, mantendo o paroxítono falava invariavelmente os opito, adapito, rapito etc...
Um dia, estava o mestre numa reunião informal com seus alunos, após uma prova que tinha sido extremamente difícil.
Daniela era uma das meninas mais bonitas da turma e por isso, mas não tão somente por isso, era uma das mais assediadas por todos, inclusive pelo mestre, meio solteirão, mas de passado conhecido como namorador e com relativo sucesso com a mulherada, entre alunas e professoras.
Entre as críticas feitas e as respostas competentemente dadas, bem no instante que Daniela estava se aproximando, o nosso Mestre, ao ser perguntado sobre como ele tinha visto o aproveitamento da turma saiu-se com essa:
-Eu capito que tenha sido bom...
Daniela, ouvindo tal resposta e sem estar inteiramente inteirada sobre o assunto, responde de bate pronto:
- É verdade professor, o CAPITO de ontem da novela das oito foi muito bom mesmo!

A Bichana

Num dia quente de janeiro, João Polino, cansado da mesmice santamartense, resolveu dar um passeio no Rio de Janeiro.
Seu irmão mais velho, há muito morava na cidade maravilhosa e estava cansado de convidar nosso herói para passar umas semanas com ele, desfrutando da praia de Copacabana.
João fez os preparativos para a viagem, arrumou a sua mala, sem esquecer-se das lembranças que levaria para o amado irmão.
Uma cachacinha de lei, um pote de doce de leite, outro de doce de figo, umas goiabas, mangas espada, laranjas,etc.
E, como queria agradar a sua cunhada, amante de animais de estimação, criadora de gatos siameses, angorás; resolveu levar um filhote de onça pintada para ela.
Ao ser informado de que não poderia levar um animal vivo no ônibus, muito menos um filhote de onça, João não pestanejou. Pegou o bichinho e colocou num bornal à parte, tampando a boca da bichana com um pano e amarrou as patinhas do pobre animal, imobilizando-o totalmente.
Assim que entrou no coletivo, deixou as malas no guarda volume, no bagageiro e, carregou o bornal consigo...
Desceram por Ibitirama, passando por Celina e quando já estavam perto de Guaçui, aconteceu o imprevisto. A onça, mercê de tanto stress, resolveu, bem como direi para não chocar as senhoras, evacuar...
As fezes da bichana tinham um odor deveras intenso, empesteando todo o ônibus.
João Polino, fez que não era consigo e, simulando um sono profundo, fechou os olhos e ficou quieto,
Mas, a situação estava ficando insustentável; um passageiro olhando para a cara do outro, desconfiado, como se quisesse reclamar mas sem saber a quem.
Assim que passaram por Guaçui, começou a chover; chuva torrencial.
Daquelas que não permitem janelas abertas, sob o risco de empapuçar quem ousasse abri-las.
Janelas fechadas, o cheiro se intensificando a cada minuto, os olhares desconfiados e João Polino dormindo...
Num certo momento, o motorista não suportando mais tal catinga, disparou, tentando ser educado...
-Quem tiver com a bichana fedendo, por favor, saia do ônibus!
A Dona Zica, esposa do seu Jacinto, coitada, pensando que era com ela que o motorista falava, desceu envergonhada...

Caixeiro Viajante


João Polino, quando rapaz, era um dos maiores conquistadores de Santa Martha, um verdadeiro cavalheiro, dono dos olhos mais azuis do Caparaó.
O seu atual cunhado, José Reis, irmão de sua amada Rita, tinha um armarinho de secos e molhados naquela terra adorada e fria.
João, dono dos seus dezessete anos, resolveu trabalhar com José, de olho na Rita, menina ainda, mas dona de uma mansidão e serenidade realmente cativantes.
Logo assim que começou a trabalhar, João recebeu um convite irrecusável; uma das maiores distribuidoras de alimentos da região, com sede em Cachoeiro de Itapemirim, resolveu chamá-lo para fazer um teste como caixeiro viajante.
João não pestanejou; a possibilidade de um ganho maior e uma vida de aventuras que se desenhava pela frente eram por demais tentadoras para o nosso herói.
O gostoso da profissão era isso mesmo, a variedade de lugares e de pessoas com que conviveria. Todas essas coisas cativaram João, que começou uma história de aventuras sem par...
Numa dessas viagens, João iria para Guaçui, o que não teria problemas já que a cidade tinha uma infra estrutura até que razoável.
O Hotel Real, no centro da cidade tinha vários leitos à disposição dos viajantes de sempre e dos turistas ocasionais.
Acontece que, por aqueles dias, haveria uma exposição de gado na cidade e o hotel estava totalmente completo.
Nada demais para João, acostumado às intempéries da estrada.
Acontece que, quando se preparava para ir para a estrada, viajando para São Tiago e dali para São Lourenço quando encontraria, facilmente carona ou condução para sua amada Santa Martha, a tempo de ver sua Rita, a chuva despencou.
Chuva não, minto; tempestade, e das brabas.
Chovia como dizem alguns , a cântaros, e até canivete começou a cair sobre as costas dos desavisados.
Procura daqui, procura dali, eis que surge a última esperança: uma pensão lá pros lados da Vila Alta, usada por casais em busca de um local sem testemunhas para a noite de amor que se aproximava.
Mesmo lá, não havia leitos. Mas, com pena de João Polino, Toniquinho, o gerente da pensão deu uma sugestão:
Havia um senhor de avançada idade que, sem parentes e sem amigos, morava na pensão, dono de um quarto vitalício, pago regiamente com seus proventos de ex-militar.
A noite avançava e a chuva nem sombra de amainar...
João aceitou o convite de dividir a cama com aquele senhor, inofensivo e asmático.
Noite alta, madrugada adentro, eis que, de repente, o senhor dá um grito e começa a pedir ajuda de João:
-Meu filho, me arranje uma mulher, pelo amor de Deus, te dou tudo o que tenho, mas me arranja uma mulher depressa...
Ao que João impiedoso, respondeu: -De forma alguma meu senhor, nem por todo dinheiro desse mundo!
-Por que, meu filho, me diga por quê?
-Em primeiro lugar, são duas horas da manhã e eu não vou sair de madrugada procurando mulher, tenha a santa paciência!
-Em segundo lugar, está chovendo muito e eu não trouxe nem guarda-chuvas e não quero ficar doente, muito menos pegar uma pneumonia e em terceiro lugar: meu senhor, o que o senhor está segurando não é o seu não, É O MEU!

O Caixeiro Viajante e a Onça

Naquele dia de dezembro, João Polino, maior expoente da JR distribuidoras de alimentos, sediada em Cachoeiro do Itapemirim, ia ter que viajar para São José da Pedra Menina, no município de Espera Feliz, nas Minas Gerais.
A estrada era de terra e, como não havia condução para lá, João teria que ir a cavalo.
Nada demais para o grande cavaleiro, acostumado com a montaria, desde menino. Rei dos rodeios que começavam a ser disputados naquela região.
Domador de cavalo bravo, João tinha, por costume, levar a sua garrucha pelas estradas pois, principalmente nas madrugadas era comum se deparar com matilhas de cães do mato, onças pintadas e outras feras que habitavam aquelas matas do Caparaó.
Durante o caminho, solitário e ansioso, João contava com as estrelas como guia e em noite de lua clara, a lua dava a claridade necessária para que a travessia fosse feita sem maiores problemas.
Em São José da Pedra Menina, João era muito conhecido, tendo pousada na hora que quisesse, mas a saudade de sua amada não permitia que o mesmo pernoitasse por lá, ainda mais que a carne é fraca e os olhos azuis conquistadores, não daria outra...
A sorte de João era que, além da garrucha, levava consigo um canivete, desses que os caboclos usam para cortar fumo e unha...
Naquele fatídico dia, a noite estava enluarada e João, para distrair, começou a imitar todos os passarinhos que conhecia. De canário a curió, passando pela graúna, João era um dos maiores imitadores de passarinho da região.
O canto do inhambu era extremamente familiar para João. Para João e para a pintada.
A pintada não, as pintadas...
Ao imitar o inhambu, João nem reparava que estava preparando a própria cova.
Pois bem, em meio ao canto, recebeu, surpreso uma resposta...
Atrás do inhambu, ia João, e o inhambu atrás de João. Inhambu não, onças e das grandes.
Ao avistar as pintadas e perceber que estava com a garrucha, ficou num mato sem cachorro.
Se desse um tiro, poderia matar uma onça, mas a outra teria tempo e disposição para engoli-lo, e vivo...
Parou, pensou e sem pestanejar agiu.
Mirou não na onça, mas no canivete.
Canivete à frente, a bala disparada, metade da bala em cada onça.
Uma correria de dar pena; os dois monstros miando e correndo, feridos de morte.
Acontece que, pensando que ninguém iria dar crédito a sua história, João não perdeu tempo: agarrou a onça pelo rabo, logo a maior delas.
A bichinha saiu correndo mas a pele, descolando-se toda, ficou nas mãos de João.
Ao chegar em Santa Martha, o maior sucesso.
Todas as moças querendo saber do ocorrido, todo mundo em polvorosa.
A história correu mundo, mas só não convenceu a José Reis que, homem sabido, tinha visto a mesma textura e os mesmos desenhos do “couro” de onça, numa confecção de tecidos que visitara em Vitória, no mês anterior...

Gilberto e a Curva do Rio

Gilberto era o maior pescador de Santa Martha, e disso ninguém pode duvidar.
Um dia, a sua sobrinha Alessandra veio passear, em visita aos seus avós, Seu João Polino e dona Rita . Betinho convidou-a para irem pescar no rio Norte, que atravessava a pequena e convidativa Ibitirama.
Alessandra e seu pai, Joãozinho ficaram muito animados com o convite e fizeram todos os preparativos necessários.
No dia marcado para a aventura, fizeram uma massa especial que consistia num misto de ração, com farinha de trigo e queijo. Prepararam duas varas com molinete e partiram para a margem do rio, junto com o nosso herói.
Surpreendentemente, Gilberto não levava nada a não ser um desses caniços de bambuí muito usados pelos sertanejos para a pesca de lambaris e de acarás.
No meio do caminho, o rio fazia uma curva muito fechada e Joãozinho, que passara sua infância naquelas redondezas não reconheceu tal curva.
Lembrava-se que havia um pé de ingazeiro aonde ia, muitas vezes, se deliciar com os ingás que ajudavam passar o tempo.
Pois bem , o pé de ingá tinha desaparecido e no seu lugar, o rio descrevia aquela estranha curva.
Como o poeta dizia que queria ter seu coração enterrado na curva do rio, João logo associou a curva a uma sensação agradável e comunicou a Gilberto como havia mudado a geografia daquele braço do Itapemirim.
Gilberto, sem pestanejar, foi desfiando seu rosário de histórias sobre pescaria.
A curva daquele rio tinha uma explicação, no mínimo inusitada.
Num dia de dezembro, o calor estava escaldante e a pescaria monótona não trazia nada além de lambaris e de pequenas acarás sem graça.
Mas, a vara de bambuí, num instante se envergou com toda a força.
Gilberto, agarrou-se com toda a força possível e impossível àquela vara e tentou, embalde, retirar o peixe.
Vendo que a situação era um tanto quanto complicada e aproveitando-se de que um cavaleiro, por coincidência, João Polino, passava por ali, teve uma idéia brilhante.
Pedindo a Seu João que apeasse, Gilberto amarrou a vara nas patas traseiras do cavalo e solicitou que esse fosse estimulado a tracionar
Tentando retirar o peixe.
Vara amarrada no cavalo, cavalo tentando sair, poeira levantando e nada de se retirar o peixe.
Nesse momento, passa um lavrador muito amigo de Gilberto e de João Polino e, ao ver a situação, teve a idéia de amarrar uma corda no seu fusca e tentar puxar.
Fusca amarrado no cavalo, cavalo amarrado na vara, fumaça nos pneus e nada do peixe sair.
Beto estava ficando desesperado mas, ao se lembrar que ali morava o seu Benedito e que esse tinha um jipe, solicitou ao mesmo que ajudasse.
Jipe amarrado no fusca, fusca amarrado ao cavalo, cavalo preso na vara e nada!
O peixe deveria pesar, por baixo, mais de quinhentos quilos, para poder agüentar tal tranco e nem se mexer!
A situação já estava passando dos limites quando o Seu Benedito recordou-se de que tinha um caminhão estacionado na venda do Paulão, vizinho de propriedade e fornecedor de todas as horas.
Paulão, ao ver a situação não titubeou; com uma corrente de ferro amarrou o caminhão no jipe, jipe preso no fusca, fusca preso no cavalo, cavalo na vara e o peixe teimosamente nem se movia...
A turma já ia desistindo quando surgiu a presença de Mário.
Funcionário da prefeitura, estava patrolando as estradas de terra do município, e ao ver tal fato inusitado, cedeu a patrol para a tentativa de se retirar o peixe.
Patrol atada no caminhão, caminhão preso no fusca, fusca preso no cavalo, cavalo na vara e, mesmo assim, nem se movia...
Alessandra já irritada com a história resolveu dar um basta e perguntou definitiva:
-E aí Gilberto, o quê que aconteceu afinal?
Gilberto calmamente, respondeu: -Ué! Você não queria saber porque que apareceu essa curva?
Entortamos o rio mas não tiramos o peixe....

Gilberto e o Peixe Estranho

Pescaria boa, somente nos meses que têm a letra R: de setembro a abril, quando está mais quente e os peixes ficam mais espertos.
Pescar no inverno é quase certeza de bornal vazio. Menos para Gilberto, o nosso grande pescador!
A isca não importa, muito menos a vara, ele pesca até sem anzol!
E isso causou espanto em todos os pescadores de Santa Martha, acostumados à pesca menos exitosa, felizes com os poucos bagres, mariazinhas, cambevas e outros peixes noturnos...
Acontece que, naquele dia de inverno; inverno santamartense que, para quem não conhece é de um frio cortante e inesquecível, ainda mais se embalado com a garoazinha chamada de “nublina” pelo povo da região, Gilberto se animou a ir pescar.
Dona Rita quis impedir, mas sabia que seria em vão, Gilberto era de uma teimosia asinina!
Preparativos feitos, Betinho partiu rumo ao delicioso hábito da pesca.
Noite fria e garoenta, os ossos tiritando e as mãos congeladas...
A pescaria ia, como sempre, num marasmo gostoso e, se não fossem os pernilongos e muriçocas, dava até vontade de dormir...
Quando, de repente, a vara enverga com força. Gilberto, numa luta hercúlea, depois de três horas, conseguiu finalmente retirar o peixe do rio.
Peixe estranho, meio cor de rosa, com um nariz diferente, sem escamas.
Beto, desconhecendo o peixe, mas satisfeito com a pescaria, resolveu se dar por satisfeito e mal esperava para mostrar a todos aquela espécie diferente que tinha conseguido pescar.
Ao chegar em casa, lá pelas três horas da manhã, foi se deitar e sem incomodar ninguém, temendo as broncas de Ritinha e de Seu João Polino, foi para a cama, sem ao menos se lavar; trocando de roupa silenciosamente e às escuras.
O peixe fora deixado, estrategicamente, próximo à sua cama, numa bacia bem grande, onde mal cabia o graúdo.
O sol ia nascendo quando Beto ouviu um barulho estranho.
Como se tivesse caído uma panela ou coisa assim.
Espantado, procura pelo peixe e nada.
Procura daqui, procura dali, cadê o peixe, meu Deus.
Algum moleque safado tinha entrado pela janela e roubado o seu peixe estranho. Agora não poderia mais contar para ninguém sobre o que tinha acontecido, sob pena de ser chamado de mentiroso.
E, mentiroso, era coisa que não admitiria, tudo menos mentiroso.
É claro que podia, como todo bom pescador, podia até exagerar um pouco; mas mentira era coisa proibida no seu vocabulário.
De repente ouviu um barulho que parecia vir de cima, com um rabo de olho deu uma guinada e, para sua surpresa, viu o inacreditável.
Um jovem nu, inteiramente nu, em cima do seu guarda roupa.
Ah, Beto ficou furioso, como é que podia ter entrado um sujeito e ainda mais pelado, no seu quarto.
Como iria se explicar ao povo de Santa Martha? Logo ele, tão machista e metido a paquerador!
Um homem bonito, deveras muito bonito, peladinho de tudo, nuinho da silva...
Beto, reparando com mais cuidado, percebeu que na boca do rapaz havia um corte, um profundo corte, que perfurava sua bochecha...
É, por pouco não tivemos o primeiro filho do boto de Santa Martha...

O Cãozinho

Menina muito esperta, Ritinha tinha um defeito; a curiosidade em excesso cria situações inauditas.
Oracina, sua irmã adorava cães e gatos; e os tivera às dezenas; se não fosse João Polino, aquela casa em Santa Martha teria se transformado num verdadeiro asilo de cães abandonados.
Acontece que um deles, o Plutão, era o xodó de Oracina.
Muitas vezes brigara com seus irmãos por causa daquele cãozinho.
Realmente o bicho era bonito, todo negro e com uma pequena mancha branca próximo aos olhos, dando uma sensação de uma bela máscara de carnaval; Joãozinho, muito sacana tinha colocado o apelido de Máscara Branca no animalzinho, em homenagem à famosa marchinha de carnaval muito tocada na época.
Plutão resistira a todas as tentativas de expulsão que João Polino efetuara.
Vira-latas sim, mas com classe e beleza. Manso até onde podia chegar, Plutão era o companheiro mais constante de Oracina.
Quando saia quer fosse de noite ou de dia, Plutão a acompanhava, fiel e companheiro.
Ritinha, crescendo junto com o animal, pois eram praticamente da mesma idade, tivera por ele um afeto quase que fraternal.
Adorava brincar com o animalzinho o que, muitas vezes, causara ciúmes em dona Rita e mesmo em Oracina.
Numa tarde, lá pelos idos de 1979, deu-se uma enorme confusão na casa.
Corre-corre e latidos misturados com desespero. O pobre animal corria feito louco pela casa a fora, sem que ninguém entendesse por que.
Oracina, com medo de que seu bibelozinho estivesse doente e, pior, fosse necessário sacrificá-lo, entrou em pânico.
Nisso, com a cara mais lavada do mundo, Ritinha adentra a sala, esclarecedora:
-O que houve, pergunta Oracina à sua irmã caçula.
A resposta veio rápida e com toda a simplicidade que somente a infância traz.
-Sabe o que foi? Pergunta, já respondendo Ritinha.
Sabe a cachorrinha da vizinha, a Lulu?
-Sim, responde Oracina, assustada.
-Pois é, o Plutão machucou a patinha da frente.
-E daí?
-Daí a Lulu, ficou com peninha dele e deu uma carona, amarrada nele igual aquele recoque que puxou o carro do tio José outro dia. (reboque queria dizer a ingênua criança)
- Tá bom e o quê que você fez, pestinha?
Perguntou Oracina já irritada com a caçula.
-Daí eu fiz uma coisa errada, e é por isso que ele ficou com raiva de mim...
-Fala, peste, o que você fez?
-Ah, Cicina, eu cortei a cordinha...

Ninguém acertou na mosca

Final de campeonato, jogo entre Pedra Roxa e Santa Martha. Estádio lotado!
Na arquibancada, estavam sentados Dadinho e Gilberto quando, ao perguntar as horas para um sujeito que estava sentado na carreira atrás, tiveram uma surpresa no mínimo agradável.
Zezinha Muriçoca, uma das mais belas e desejadas garotas de Pedra Roxa estava sentada dois degraus acima.
Sentada e usando uma minissaia extremamente convidativa e reveladora.
Reveladora não era a palavra correta, já que tal visão gerara uma dúvida atroz.
Gilberto que tinha se aposentado precocemente no futebol, depois dos episódios já descritos sobre a confusão dos bombons e do apelido, não titubeou.
Afirmou peremptoriamente que a deliciosa moçoila estava usando uma calcinha preta.
No que foi, imediatamente, desmentido por Dadinho. Calcinha preta que nada, estava era mesmo sem calcinha!
Calcinha preta pra cá, sem calcinha prá lá, a discussão estava esquentando.
Até que resolveram apostar, aposta entre irmãos, coisa de dez reais, por aí.
Para que não houvesse mentiras e isso Beto não admitia, amigo incondicional da verdade que era, decidiram pedir ajuda a Pedro Gambá, a essas alturas um abstêmio totalmente confiável.
Pedro, imediatamente aceitou a missão “delicada”.
Iria chegar até bem perto de Zezinha Muriçoca e decidiria a questão.
O jogo tinha começado e todo o público estava empolgado com a atuação do time de Santa Martha, todos, exceto Zezinha que estava preocupada com o time de Pedra Roxa, além de Gilberto e Dadinho, mais preocupados com as calçolas da garota.
Pedro Gambá estava demorando e Dadinho, desconfiado, solicitou que alguém fosse chamá-lo.
Quando foi encontrado, olhar fixo entre as pernas da incauta moça, pediu um instante e que iria descer em seguida.
Dez minutos depois, eis que surge o juiz da partida entre Gilberto e Dadinho.
Ansiosos com o final da contenda, perguntaram em solilóquio ao famoso Pedro Gambá.
-E aí? Quem ganhou?
Pedro, para surpresa de todos, deu um veredicto inusitado e inesperado.
-É, para falar a verdade, deu empate!
-Como? Empate?
-Não é calcinha preta e nem ela está sem calcinha...
Aquilo que vocês viram, é MOSCA...

Matemática e Cachaça

Josias era um homem trabalhador, honesto e fiel, muito fiel a Deus e a sua querida Joana. Moça bonita, uma morena exuberante, cerca de vinte anos mais jovem que Josias.
Em Santa Martha, Josias trabalhava como sapateiro, um artista famoso, procurado por vários clientes oriundos das redondezas e até da Cachoeiro..
Acontece que, de uns tempos para cá, a Igreja que Josias freqüentava começara a perceber que aquele antigo fiel tinha desaparecido.
Josias começara a beber, primeiramente sozinho e às escondidas, depois cada vez mais frequentemente e a cada dia com menos recato. Até que, um dia, apareceu no barzinho do Gilberto, ponto de encontro da meninada assaz namoradeira do distrito.
A sua estréia foi inesquecível; acabando com todo o estoque de fogo paulista que tinha no bar. Lá pelas quatro horas da manhã foi levado para casa. Totalmente embriagado.
A expulsão da Igreja foi sumária, principalmente depois do dia em que, além de dormir durante o culto dominical resolveu fazer da perna do pastor um urinol improvisado.
O escândalo tomou conta da comunidade, entre assustada e brincalhona.
Quem não gostou nada disso foi Joana, a bela morena se viu, da noite para o dia, vítima das mais indecorosas e maldosas piadas da comunidade.
Mas, a situação estava indo de mal para pior e, apesar de todas as orações, juras e promessas feitas para a salvação do nosso amigo, tudo estava como dantes no quartel de Abrantes, Josias Abrantes, que esse era o nome completo do nosso sapateiro.
As moças e os rapazes de Santa Martha já estavam sentindo a falta do nosso expoente na nobre arte da sapataria, agora as meia-solas e os consertos impossíveis teriam que ser feitos em outro lugar, para prejuízo dos bolsos e da qualidade dos serviços prestados.
Joana, no começo, ainda se manteve fiel ao nosso alcoólatra mas, como, na porta onde entra a miséria sai o amor; não resistiu por muito tempo...
Naquela época, o Governo do Espírito Santo estava contratando novos policiais e Maximiliano era um desses. Lotado em Santa Martha, tinha chegado a pouco tempo na pacata localidade.
João Polino foi o seu instrutor sobre as almas santamartenses mas, por causa de um descuido, se esqueceu de falar sobre Josias. Mas nem precisava, tal a insignificância do pobre cachaceiro...
Gilberto, com pena de Joana, passou a não vender mais bebida alcoólica para o sapateiro mas, nada disso adiantava. Bebia até álcool puro e, se bobeassem, esvaziaria tanque de combustível.
Na noite gélida daquele julho implacável, Maximiliano fazia a sua primeira ronda noturna quando, sem esperar, encontrou um cidadão tentando, de qualquer modo, acertar a chave na fechadura.
Ajudou-o a abrir a porta mas, por dever do ofício e por desconhecer aquele cidadão, perguntou se era ele mesmo que morava ali.
Diante da pergunta, Josias foi incisivo: “Claro que moro, entra comigo e você vai ver”.
Ao adentrar pela casa, Josias foi logo falando: “Tá vendo aquele cara deitado no sofá? É meu cunhado”.
“Vem cá comigo que eu vou te mostrar uma coisa: Aquela mulher deitada aqui no quarto é minha esposa, e aquele camarada deitado ao lado dela; sou eu”.
Ao que o guarda, sem mais nada a perguntar, se despediu e foi-se embora.
Josias deitou-se na cama e ao contar os pés, reparou que havia algo de estranho:
Um pé, dois pés, três, quatro, cinco, seis pés.
Epa! Tem gato nessa tuba! Mas depois, para se tranqüilizar, se levantou e foi até ao pé da cama e recontou: um, dois, três, quatro!
Dois da mulher e dois meus!
É, eu tenho que parar de beber mesmo!

João Polino e o Mar Azul

O mar é azul, e isso ninguém pode negar. Acontece que, em Santa Martha, distante do mar e próximo da montanha, essa realidade traz fantasias maravilhosas sobre o tamanho, a cor e o sabor salgado da imensidão marinha...
João Polino ,meninote ainda, resolveu ir sozinho ao Rio de Janeiro. Coisa quase impossível àquela época, nos anos trinta. Estradas de terra sem nenhuma pavimentação, teria que ir a cavalo até Alegre e depois pegar um ônibus que o levaria à cidade Maravilhosa.
Mas nada é impossível quando os sonhos são grandes e a força de vontade maior ainda, e esse era o caso do nosso herói.
Num dia de domingo, nos idos de março, montou o seu cavalo, prometendo trazer a água do mar, pelo menos um cantil, para a sua amada irmã e quase mãe Oracina...
Dias longos e difíceis nas costas de um cavalo cansado e envelhecido, um verdadeiro rocim quixotesco, iam os dois, o jovem cavaleiro e o velho animal descendo a serra do Caparaó.
Dinheiro? Quase não levava, o bastante para pagar as passagens de ônibus entre Alegre e o Rio de Janeiro. Coragem muita, dono dos fantásticos e irresponsáveis dezesseis anos de idade.
A noite trazia as suas armadilhas e era melhor dormir, deitado sob a luz da lua e ouvindo a sinfonia de grilos, sapos e corujas. Claridade, somente a dos pirilampos que povoavam os sonhos do nosso amigo.
Passa-se o primeiro dia, o segundo e no terceiro dia da aventura, o imprevisível aconteceu. O cavalo, cansado da viagem, deitou-se e não mais se levantou.
O que fazer? Como poderia seguir adiante?
Para sua sorte, estava próximo de Alegre, deixara Celina para trás e a serra agora estava acabando, numa descida cheia de curvas e desesperanças...
Voltar atrás seria a decisão de qualquer um mas, quem disse que João Polino era qualquer um?
Herói que se preza não pode temer intempéries nem dificuldades e, promessa feita era para ser cumprida.
Faltavam poucos quilômetros para chegar em Alegre e isso era o bastante.
Mas, o dinheiro que levava não daria para a volta, já que teria que comprar ou, pelo menos, alugar um outro corcel.
A decisão cruel, embora a única possível, se apresentou. Teria que comprar um cavalo em Alegre e reiniciar a viagem, de volta...
Mas, pensamento rápido como o de João era raro e, teve uma brilhante idéia.
Água azul, mar azul, água salgada e mar salgado...
Oracina não perdia por esperar!
Numa vendinha no centro de Alegre, João resolveu os seus problemas.
Comprou um tablete de anil e um quilo de sal.
A água poderia ser do rio Norte mesmo, o cantil esperava a água marinha...
Não deu outra, três dias depois, Oracina tinha em suas mãos a mais legítima água azul e salgada do mar nas suas mãos...

João Polino e a Caixa de Cedro

Aquela caixinha de madeira era uma das coisas mais importantes que João Polino tinha.
Uma das mais não, a mais importante. Guardada a sete chaves não mostrava para ninguém a não ser para a sua amada Rita, mesmo assim depois de que essa jurou por todos os santos que não iria nunca revelar a existência de tal tesouro.
Não era muito bonita nem apresentava detalhes e nem entalhes, era uma pequena caixa feita de cedro, de forma quadrada com mais ou menos um palmo de altura.
Dentro dela nada havia sendo, por assim dizer, uma caixa rústica e comum; mas raríssima, ao mesmo tempo.
Não pela qualidade ou pela beleza da caixa, nem pela caixa ao menos, o que transformava tal objeto em peça única será explicado a seguir:
Nos idos de 1940, João Polino se tornara caixeiro viajante como pudemos relatar anteriormente.
Nas suas andanças pelo interior de Minas e do Espírito Santo, conhecera um turco, conhecido como Salim, embora seu nome provavelmente fosse outro, que vendia roupas e tecidos para as mocinhas curiosas e elegantes desse interior afora.
Um dia, por uma dessas desventuras que atingem-nos de vez em quando, a vida se tornara extremamente difícil para Salim. Envolvido em dívidas impagáveis, precisava urgentemente de dinheiro. E isso não era fácil, pois estamos falando de uma região decente, mas pobre, muito pobre...
Ao saber que João estava economizando dinheiro para comprar uma casinha onde iria compartilhar o amor de sua vida; Salim resolveu chorar suas mágoas com o velho amigo e pedir algum dinheiro emprestado.
João, como tinha um coração extremamente suscetível e gostava, realmente, do amigo turco, não pestanejou e emprestou cinco contos de réis a Salim.
Essa quantia era extremamente vultosa para os parâmetros da época e do lugar. Uma verdadeira fortuna!
Passados quase dois anos do empréstimo, nada de Salim falar em pagamento e, pelas vestimentas usadas por ele e, principalmente depois da compra de um carrinho, usado é verdade, pelo caixeiro, João começou a ter vontade de cobrar a dívida.
Quando falou em pagamento, Salim desconversou e alegando novas dívidas se disse impossibilitado de pagar o que devia.
João, ao perceber que tinha sido passado para trás, esperneou e falou mais alto, prometendo que iria receber o dinheiro a qualquer preço.
Sabendo da fama de brigão e bom de sela do companheiro, Salim fez uma proposta:
Já que não tinha dinheiro iria pagar com a coisa mais importante que possuía na vida, herança de seus antepassados libaneses: uma caixa.
Mas não era uma caixa qualquer, era uma caixinha de cedro feita pelo maior carpinteiro de todos os tempos.
Ele, Ele mesmo, Jesus Cristo!
Ao saber disso, sem pensar duas vezes, nosso herói aceitou tal objeto sagrado e único como forma de pagamento do empréstimo.
E, todas as noites, rezava defronte àquela relíquia com toda a fé e devoção.
Passou-se o tempo, recomeçou a ajuntar dinheiro, casou-se, mobiliou a casa e teve os filhos, um após o outro até completar seis com o nascimento da caçulinha Ritinha e a adoção do sétimo, nosso amigo Gilberto, a imagem espelhar de João Polino.
Gilberto era muito curioso e não respeitava nada dentro da casa, ainda mais que, por ser mais novo que os netos mais velhos de João e Rita, tinha os privilégios que somente os netos têm.
Um dia, sem mais nem menos, Gilberto pegou a caixa, semi apodrecida pelo tempo e corre pela sala mostrando a todos a sua nova descoberta.
A caixa de madeira, orgulho de João Polino. Ao ver o menino com aquele objeto na mão, dona Rita gritou para que ele a desse antes que João chegasse pois, senão a coisa ia pegar.
Gilberto, assustado com o grito inesperado de dona Rita deixou a caixa cair. O estrago foi imediato, com uma enorme fratura na madeira, deixando uma rachadura de ponta a ponta no objeto sagrado.
Dona Rita entrou em desespero, o que iria dizer para o marido, como impedir que esse desse uma sova em Gilberto, o que iria fazer?
Até que, num momento de serenidade, Loza, sua cunhada, teve uma brilhante idéia.
Levar a caixa até um carpinteiro conhecido em Iúna, cidade próxima, que daria jeito em dois tempos.
Combinaram que levariam a caixa para ser consertada no dia seguinte.
Chegando à carpintaria do “Seu” Juca, tiveram uma decepção gigantesca quando esse disse que não adiantaria tentar consertar o que não tinha mais conserto, devido ao fato de que a madeira estava totalmente apodrecida e não agüentaria nem uma meia sola.
Dona Rita, então, num gesto desesperado, contou a história da aquisição do objeto por João sem omitir sequer os detalhes da origem e raridade do mesmo.
Ao que, Juca não pestanejou e respondeu rápido:
“Dona Rita, o carpinteiro que fez essa caixa pode ser até Jésus mas, jamais Jesus”.
“Repare aqui no canto inferior da caixa”.
Ao que, entre decepcionada e aliviada dona Rita leu : “Fabricado em Ubá MG”.

João Polino e as Tanajuras



Nos idos dos anos 40, uma das maiores pragas que assolavam Santa Martha eram as saúvas.
Houve quem disse que “ou o Brasil acaba com as saúvas ou as saúvas acabam com o Brasil”. Na verdade, saúva é nome quase estranho por aquelas bandas, a danadinha é conhecida como “formiga cabeçuda” e é dessa forma mais irônica que irei tratar as famosas destruidoras.
Na época das primeiras chuvas da Primavera, principalmente após um dia muito quente, ocorre uma festa nos pequenos vilarejos Brasil a fora.
As fêmeas e os machos da espécie resolvem sair dos formigueiros para executarem o sacrossanto ato da fecundação e cumprir a norma divina do “crescei e multiplicai-vos”; nesses dias as crianças entram em total reboliço. É um tal de sair correndo atrás das fêmeas, as famosas tanajuras, e dos machos, conhecidos como bitus.
As pobres fêmeas das formigas cabeçudas, são caçadas pelos mais diversos motivos. Me recordo, até hoje, que meu pai pagava alguns trocados para quem levasse algumas guardadas num pote, é uma excelente isca para pescar.
Outras vezes, a criançada faz uma brincadeira um tanto quanto agressiva com as pobres fêmeas bundudas. Introduzindo um palito ou um pedaço de pau na “bunda” de uma tanajura alada, essa começa a bater desesperadamente suas asas, fazendo um barulho peculiar e dando voltas em torno do palito, parecendo um helicóptero tentando levantar vôo, mas com uma espécie de âncora presa na parte inferior.
As pobres tanajuras, depois de fecundadas, iam ao solo já sem as asas, se tornando presas fáceis, mesmo quando conseguiam cavar as tocas onde iriam construir um novo formigueiro.
Acontece que, por seleção natural, uma gigantesca parcela dos animais são devorados ainda no vôo pelos passarinhos ou no solo pelas esfomeadas galinhas, repasto de primeira; outras vezes, vão parar em uma farofa enriquecida com as “nádegas” fritas, servindo como um prato de raro paladar.
Conheci um colega, médico, que não perdia uma revoada de tanajuras. Fazia um dos melhores tira gostos da região!
Pois bem, a cada ano se renova a vida no mundo das formigas, com a possibilidade da criação de novos e temíveis formigueiros.
Os famintos e vegetarianos insetos, com sua capacidade de cortar qualquer tipo de folha, causam destruição ímpar nas lavouras, qualquer uma delas, não respeitando nada.
O uso de defensivos agrícolas faz com que se controle a população desse terrível animalzinho, voraz e destruidor.
Em Santa Martha não era diferente, os lavradores entrando em desespero a cada novo formigueiro criado.
Numa época em que os venenos eram de difícil acesso e de efeitos colaterais muito graves, João Polino, com seu espírito ecológico e inventivo criou uma maneira para que, sem uso de tóxicos, conseguir acabar com os famigerados formigueiros.
A fama do invento correu mundo, até chegar em Vitória, onde um engenheiro agrônomo resolveu ir a Santa Martha para que João lhe mostrasse sua engenhosa descoberta.
Encontrar João Polino não foi muito fácil, pois estávamos em plena primavera, época da reprodução dos insetos.
Mas, depois de vários quilômetros e horas de procura, o nosso engenheiro encontrou João em plena atividade, num dos sítios mais afetados pela peste.
Por mais que João tentasse disfarçar, não teve jeito, o engenheiro vendo o nosso amigo com uma caixinha na mão, perguntou o que era,
João respondeu rápido: rapé!
-Rapé? Perguntou o engenheiro.
-Sim, faz parte do meu invento.
-Como assim?
-Simples, coloque um pouco de rapé na porta do formigueiro.
-E aí?
- Coloque uma pedrinha próxima ao rapé.
-E depois?
-Seu moço, é só a formiga cheirar o rapé e espirra, e quando der o espirro, bate a cabeça na pedra e morre. Assim é que eu acabo com os formigueiros!

Gilberto, o Caçador...

Gilberto tinha arranjado uma namorada. Uma moça muito recatada, daquelas que o povo da roça diz “que é pra casar”. Menina prendada, filha de um vizinho do Seu João Polino, um homem sério, de poucas palavras, fiel a Deus, um homem honrado.
A moça, apesar de baixinha, era muito apetitosa, dona de um par de coxas roliças e curtas, com um jeitinho de cabocla solta dentro de um vestidinho deliciosamente curto.
As brincadeiras dos namorados, simples e ingênuas, levantavam, de vez em quando o vestidinho da moça, o que deixava Beto totalmente excitado, mas os conselhos de dona Rita batiam fundo, e Beto evitava provocar mais a menina, sob a pena de ser admoestado tanto pelos pais dele quanto pelo sisudo pai da menina.
Aquele domingo estava maravilhoso, um sol claro prenunciava uma noite clara de lua cheia, muito bom para a caça; esporte proibido, ainda mais naquela região próxima ao Parque do Caparaó.
Mas o que é proibido para um jovem inquieto como Gilbeto?
Nada, absolutamente nada e, temerário, combinou com um amigo ir caçar naquela noite.
O problema era a menina, acostumada ao namoro na sala de casa todos os dias, depois da missa.
Conversa vai, conversa vem, Gilberto inventou uma viagem até Ibitirama, naquela noite para justificar a sua ausência.
Depois das lágrimas mal disfarçadas da menina e das desculpas esfarrapadas, Gilberto planejou se encontrar com o amigo lá pelas sete horas da noite e se embrenhar na mata próxima aonde morava, em busca das pacas e tatus que aparecessem...
Naquela noite, lá pelas seis da tarde, Gilberto passou na casa da moça e procurando por ela, obteve a resposta de que ela, já que Beto não passaria por ali naquela noite, tinha ido visitar uma tia que morava lá pelos lados de Iúna, distante então da mata onde iria acontecer a caça.
Caçar é, com perdão dos ecologistas, um dos mais deliciosos esportes; já que faz parte do instinto básico de sobrevivência do ser humano.
A liberação de adrenalina é total, com uma sensação de prazer equiparado com a pescaria, com a conquista de um amor, como a conquista, enfim.
Gilberto, puro e instintivo, obtinha com a caça uma sensação quase orgásmica!
Noite alta, lua cheia, uma espingarda meia boca, os nossos dois heróis, a ponto de realizarem uma das maiores caçadas das suas vidas!
Já tinham matado duas pacas e um tatu, caçada inesquecível.
Mas, de repente, um barulho atrás de uma moita chamou a atenção, pelo tamanho do bicho não era coisa pouca não.
O amigo de Gilberto, Manezinho Chicote, pensou logo em tamanduá bandeira; Beto, mais audacioso, imaginou um veado campeiro.
Veado campeiro é raridade absoluta naquelas bandas, mas se contam histórias da captura de um ou dois exemplares daquele animal, provavelmente, fugidos de algum criador clandestino.
Quietos, sem fazer barulho algum, se aproximaram da moita e mandaram bala.
Se ouviu, neste instante, um grito, muito mais humano do que qualquer coisa.
E, junto com o grito, avistaram uma bunda branca, saindo correndo ensangüentada...
Logo em seguida, uma forma feminina se levantou, e Gilberto reconheceu, sob a luz da lua, aqueles cabelos lisos e aquele rosto por quem tinha se apaixonado!
Xingando a moça, Gilberto partiu atrás dela mas, propositadamente, Manezinho, sabendo da fama de violento de seu amigo, deu-lhe uma providencial rasteira.
Que esfriasse a cabeça e não fizesse besteira.
No dia seguinte, já mais calmo e desiludido, Gilberto saiu de casa para comprar um maço de cigarros na vendinha do povoado e chegou a tempo de ouvir uma conversa esclarecedora.
Doutor Marcos Valério que tinha atendido mais cedo no posto, comentava o fato com o enfermeiro que atendia à população santamartense da necessidade de se encaminhar Pedro Malta, um campeiro que trabalhava para o seu Joaquim, vereador adorado do distrito, para Guaçui.
O motivo: um tiro de espingarda que tinha atingido a bunda do pobre rapaz e parecia ter se alojado perto do quadril do moço.
Gilberto tinha quase acertado na vítima. Campeiro sim, veado não. O chifre ficara por conta dele, Beto

UM SIMPLES ARRANHÃO?


Essa quem me contou foi o Dr Igor Areas, um dos maiores irmãos que a vida me deu.
O fato ocorreu em Bom Jesus do Itabapoana num daqueles plantões arrastados em que o pinga-pinga de pacientes ocorria em absoluta harmonia com a chuva que caia mansamente há horas.

De repente houve um acidente provocado pela chuva associada com a bebida.

Uma colisão terrível entre um automóvel e um caminhão.

Obviamente o carro levou a pior e, como costuma acontecer nas madrugadas de todo o país, um casalzinho fazia uma festinha particular num motelzinho na beira da estrada.

inebriado pelo álcool e pelas curvas da bela morena, o rapaz não percebeu a carreta que vinha em direção contrária.
O beijo foi terrível.

A moça foi esmigalhada e o cadáver estava irreconhecível, todo estropiado.

Mas o que chamava a atenção do Dr. Igor era a agitação que tomava conta do rapaz que tinha escapado praticamente ileso do acidente, como que por milagre.

Ele chorava copiosamente e a todo momento maldizia a sorte.

Igor, comovido com as manifestações de desespero tentou consolar o rapaz.

- É amigo, a vida é assim mesmo. Mas você é novo e pode se casar de novo.

Surpreendentemente, o jovem olhou para o nosso querido amigo e disse:

- Doutor. O senhor tá achando que eu estou chateado pela morte daquela quenga, vadia?

Aí, no mesmo instante Igor se irritou ao ver a frieza do rapaz.

- Pô! Você dirige bêbado, bate com o carro, mata a menina e ainda fica lamentando os arranhões? Agradeça a Deus e siga adiante.

- Agradecer o quê? A minha vida acabou! É que o senhor ainda não teve tempo de ver direito e tá achando que só foram arranhões. Vai ver o que está na boca daquela puta!

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