sábado, 15 de setembro de 2007

DICIONÁRIO FILOSÓFICO VOLTAIRE R- V

RELIGIÃO
Primeira questão

O bispo de Glocester, Warburton, autor de uma das mais sábias obras que já se escreveram, assim se exprime, página 8, tomo 1o.:
“Uma religião, uma sociedade que não está fundada sobre a crença numa outra vida deve ser sustida por uma providência extraordinária. O judaísmo não está fundado sobre a crença numa outra vida; portanto o judaísmo foi sustido por uma providência extraordinária”.
Vários teólogos se ergueram contra ele; e como se retorquem todos os argumentos, retorquiram o seu; disseram-lhe:
“Toda religião que não estiver baseada sobre o dogma da imortalidade da alma e sobre as penas e recompensas eternas é necessariamente falsa; ora, o judaísmo não conheceu esses dogmas; portanto o judaísmo, longe de ser sustido pela Providência, era, segundo vossos princípios, uma religião falsa e bárbara que atacava a Providência”.
Esse bispo teve alguns adversários que lhe afirmaram que a imortalidade da alma era conhecida entre os judeus, nos próprios tempos de Moisés; ele lhes provou porém mui evidentemente que nem o Decálogo, nem o Levítico, nem o Deuteronômio tinham uma única palavra a respeito dessa crença, e que é ridículo pretender turvar e corromper algumas passagens dos outros livros para concluir daí uma verdade que não está absolutamente anunciada no livro da lei.
O senhor bispo, tendo escrito quatro volumes para demonstrar que a lei judaica não propunha nem penas nem recompensas depois da morte, jamais pôde responder a seus adversários de maneira satisfatória. Estes lhe diziam: “Ou Moisés conhecia esse dogma e então enganou os judeus não o manifestando; ou ignorava-o, e nesse caso não tinha conhecimentos suficientes para formar uma boa religião. Com efeito, se a religião fosse boa, por que teria sido abolida? Uma religião verdadeira deve ser para todos os tempos e todos os lugares; ela deverá ser como a luz do Sol que ilumina todos os povos e todas as gerações”.
Esse prelado, por esclarecido que fosse, teve muito trabalho em se livrar de todas essas difíceis proposições; porém qual o sistema isento de dificuldades!
Segunda questão

Outro sábio muito mais filosófico, que é um dos mais profundos de nossos dias, apresenta fortes razões para provar que o politeísmo foi a primeira religião dos homens, e que se começou por crer em vários deuses antes que a razão fosse suficientemente esclarecida para não reconhecer senão um Ente Supremo.
Ouso crer, ao contrário, que se principiou por reconhecer um único Deus, e que em seguida a fraqueza humana adotou vários deles; e eis como concebo a coisa:
É indubitável haverem existido burgos antes que se construíssem grandes cidades, e que todos os homens foram divididos em repúblicas antes de ser reunidos em grandes impérios.
É bem natural que um burgo atemorizado pelo trovão, afligido pela perda de suas colheitas, maltratado pelo burgo vizinho, sentindo todos os dias a própria fraqueza, pressentindo por toda parte um poder invisível, tenha terminado por dizer: “Existe algum ser acima de nós que nos causa bens e males”.
Parece-me impossível que tenha dito: “Há dois poderes”. Por que vários? Principia-se sempre pelo simples, em seguida vem o composto e amiúde, enfim, volta-se ao simples mercê de luzes superiores. Tal é a marcha do espírito humano.
Qual é esse ente que se teria invocado a princípio? Seria o Sol? Seria a Lua? Não creio. Examinemos o que se passa entre as crianças; representam mais ou menos o que são os homens ignorantes. Não percebem a beleza nem a utilidade do astro que anima a natureza, nem os socorros que a Lua nos presta, nem as variações regulares do seu curso; não o pensam, estão muito acostumadas a todas essas coisas. Não se adora, não se crê senão aquilo que se teme; todas as crianças olham para o céu com indiferença; mas estruja o trovão e elas tremerão, irão se esconder.
Sem dúvida, os primeiros homens agiram de forma idêntica. Apenas umas espécies de filósofos que assinalaram o curso dos astros ensinaram também a admiração e adoração; os cultivadores simples e sem luz alguma não conheciam o bastante para perfilhar tão nobre erro.
Portanto, uma aldeia ter-se-á limitado a dizer: “Há uma potência que troveja, que atira neve sobre nós, que faz morrer nossos filhos: acalmemo-la; mas como? Vemos que acalmamos com pequenos presentes a cólera das pessoas irritadas: façamos pois pequenos presentes a essa potência. É também preciso dar-lhe um nome. O primeiro que se oferece é o de Chefe, Dono, Senhor; essa potência é pois chamada Senhor. É provavelmente a razão pela qual os primeiros egípcios chamaram ao seu deus Knef; os sírios, Adonai; os povos vizinhos, Baal ou Bel, ou Melch, ou Moloch; os citas, Papeu: palavras que significam Senhor, Mestre.
Foi assim que se encontrou quase toda a América dividida numa multidão de pequenas populações, tendo todas seu deus protetor. Os próprios mexicanos, os peruvianos, que eram grandes nações, tinham apenas um deus: uns adoravam Manco Capaque, outros o deus da guerra. Os mexicanos davam ao seu deus guerreiro o nome de Vitzlipufzli, assim como os hebreus haviam cognominado o seu senhor de Sabaoth.
Não é por uma razão superior e cultivada que todos os povos começaram a reconhecer uma única divindade. Se tivessem sido filósofos, teriam adorado o deus de toda a natureza, e não o deus de uma aldeia; teriam examinado essas relações infinitas de todos os seres, que provam um ente criador e conservador; porém eles não examinaram nada, eles sentiram. Aí está o progresso de nosso frágil entendimento; cada burgo sentiu sua fraqueza e a necessidade de um forte protetor. Imaginou esse ser tutelar e terrível residindo na floresta vizinha, ou na montanha, ou numa nuvem. Apenas imaginou um só deus, pois o burgo não tinha senão um chefe na guerra. Imaginou-o corporal, porque era impossível figurá-lo de outra forma. Não podia crer que o burgo vizinho não tivesse também o seu deus. Eis por que Jefté disse aos habitantes de Moabe: “Possuís legitimamente o que vosso deus Camos vos fez conquistar; deveis deixar-nos gozar dos bens que nosso deus nos concedeu por suas vitórias” (61).
Tais palavras ditas por um estrangeiro a outros estrangeiros são notáveis. Os judeus e os moabitas tinham desapossado os naturais do país; uns e outros apenas tinham o direito da força, e uns disseram aos outros: – “Vosso Deus vos protegeu em vossa usurpação, tolerai agora que nosso Deus nos proteja na nossa”.
Jeremias e Amos perguntaram um ao outro “que razão teve o deus Melcom para se apoderar do país de Gade”. Parece evidente, por essas passagens, que a antiguidade atribuía a cada país um Deus protetor. Encontram-se ainda hoje vestígios dessa teologia em Homero.
É bem natural que havendo-se aquecido a imaginação dos homens e tendo seu espírito adquirido conhecimentos confusos, tenham eles multiplicado seus deuses, e estipulado protetores para os elementos, mares, florestas, fontes, campos. Quanto mais examinaram os astros, mais foram feridos pela admiração. Poder-se-á não adorar o Sol, quando se adora a divindade de um ribeiro? Desde que o primeiro passo foi dado, a terra em breve foi coberta de deuses; e enfim desce-se dos astros aos gatos e às cebolas.
Entretanto é preciso que a razão se aperfeiçoe; o tempo forma, enfim, os filósofos que percebem que nem as cebolas, nem os gatos, nem mesmo os astros concertaram a ordem da natureza. Todos esses filósofos babilônicos, persas, egípcios, citas, gregos e romanos admitem um Deus supremo remunerador e vingador.
Eles não o dizem a princípio ao povo: pois quem falasse mal das cebolas e dos gatos diante das velhas e dos padres teria sido lapidado; quem quer que reprochasse aos egípcios o fato de comerem os seus deuses, acabaria sendo ele próprio devorado, como, de feito, Juvenal nos relata que um egípcio foi morto e comido completamente cru numa disputa de controvérsia (62).
Mas que se fez? Orfeu e outros estabeleceram mistérios, que os iniciados prometeram mediante juramentos execráveis nunca revelar, e o principal desses mistérios é a adoração de um único Deus. Essa grande verdade penetra metade da terra; o número dos iniciados torna-se imenso. É verdade que a antiga religião sempre subsistiu; mas, como não é contrária ao dogma da unidade de Deus, deixa-se que subsista. E por que aboli-la? Os romanos reconhecem o Deus optimus maximus; os gregos têm o seu Zeus, seu Deus supremo. Todas as outras divindades são apenas intermediárias: imperadores e reis são instalados no posto de deuses, isto é, de bem-aventurados; é porém certo que Cláudio, Otávio, Tibério e Calígula não são considerados como criadores do céu e da terra.
Numa palavra, parece provado que, no tempo de Augusto, todos os que tivessem uma religião reconheciam um Deus superior, eterno, e várias ordens de deuses secundários, cujo culto foi chamado mais tarde idolatria.
Os judeus jamais foram idólatras: porque, não obstante terem admitido alguns malakhim, anjos, seres celestes de uma categoria inferior, sua lei não ordenava de forma alguma que tais divindades secundárias tivessem culto entre eles. Adoravam os anjos, é verdade, isto é, prostravam-se diante deles quando bem entendiam; mas, como isto não sucedia com freqüência, não havia cerimonial nem culto estabelecido para eles. Os querubins da arca não recebiam homenagem alguma. Era costume adorarem os judeus abertamente um único Deus, assim como a multidão inumerável dos iniciados o adoravam secretamente em seus mistérios.
Terceira questão

Foi ao tempo em que o culto de um Deus supremo estava universalmente estabelecido na opinião de todos os sábios, na Ásia, na Europa e na África, que a religião cristã nasceu e se desenvolveu.
O platonismo auxiliou bastante a compreensão de tais dogmas. O Logos, que para Platão significava a sapiência, a razão do Ser Supremo, tornou-se em nossos tempos o Verbo e uma segunda pessoa de Deus. Uma metafísica profunda e acima da inteligência humana foi um santuário inacessível no qual se desenvolveu a religião.
Não procuremos repetir aqui como Maria foi declarada mãe de Deus, como se estabeleceu a consubstancialidade do Pai e do Verbo e a processão do Pneuma, órgão divino do divino Logos, duas naturezas e duas vontades resultantes da hipóstase, e enfim a manducação superior, a alma nutrida tal como o corpo dos membros e do sangue do Homem-Deus adorado e comido sob a forma do pão, presente aos olhos, sensível ao paladar, e contudo anulado. Todos os mistérios foram sublimes.
Começou-se, desde o segundo século, por esconjurar os demônios em nome de Jesus; depois se expulsavam em nome de Jeová ou Ihaho: pois conta S. Mateus que tendo os inimigos de Jesus dito que ele esconjurava os demônios em nome do príncipe dos demônios, ele lhes respondeu: “Se é por Belzebú que eu esconjuro os demônios, em nome de quem o fazem vossos filhos?”
Não se sabe em que tempo os judeus reconheceram por príncipe dos demônios a Belzebú, que era um Deus estrangeiro; sabe-se porém (e é José quem no-lo diz) que havia em Jerusalém exorcistas especiais para esconjurar os demônios dos corpos dos possessos, isto é, dos homens atacados de doenças singulares, as quais se atribuíam então em grande parte da terra a gênios malfeitores.
Exconjuravam-se pois os demônios com a verdadeira pronunciação de Jeová hoje perdida, e com outras cerimônias esquecidas hoje em dia.
Esse exorcismo por Jeová ou outros nomes de Deus estava ainda em uso nos primeiros séculos da igreja. Orígenes, disputando contra Celso, diz-lhe, no. 262: “Se, invocando Deus ou jurando em seu nome, chamam-no o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, alguma coisa há de haver nesses nomes, cuja natureza e força são tais que os demônios se submetem a quem os pronuncia; mas se o chamamos com outro qualquer nome, como Deus do mar ardente, suplantador, esses nomes não terão virtude. O nome de Israel traduzido em grego nada operará; pronunciai-o porém em hebreu, com os outros termos necessários, e imediatamente operareis a conjuração”.
O próprio Orígenes, no número 19, diz estas palavras notáveis: “Há nomes que têm uma virtude natural, como os que empregam os sábios entre os egípcios, os magos da Pérsia, os brâmanes da Índia. O que chamamos magia não é uma arte vã e quimérica, tal como o pretendem os estóicos e os epicuristas: nem o nome de Sabaote nem o de Adonai foram feitos para seres criados; mas pertencem a uma teologia misteriosa que se liga ao Criador; de lá vem a virtude desses nomes quando coordenados e pronunciados segundo as regras, etc.”.
Assim falando Orígenes não apresenta seu sentimento particular: exprime a opinião universal. Todas as religiões então conhecidas admitiam uma espécie de magia; distinguia-se a magia celeste e a magia infernal, a necromancia e a teurgia: tudo aí era prodígio, adivinhação, oráculo. Os persas não negavam os milagres dos egípcios, nem os egípcios os dos persas; Deus permitiu que os primeiros cristãos fossem persuadidos dos oráculos atribuídos às sibilas, e lhes deixou ainda alguns erros pouco importantes, que não corrompiam o fundamento da religião.
Coisa grandemente notável é que os cristãos dos dois primeiros séculos votavam o maior horror aos templos, aos altares e às imagens. É o que diz Orígenes, no. 374. Tudo mudou depois com a disciplina, quando a igreja recebeu uma forma constante.
Quarta questão

Desde que uma religião é legalmente estabelecida num estado, todos os tribunais se ocupam imediatamente de impedir que se modifiquem a maioria dos atos praticados nessa religião antes de ter sido publicamente acatada. Os fundadores reuniam-se secretamente apesar dos magistrados; hoje não se permitem as assembléias públicas senão sob os olhos da lei, e todas as associações que se afastarem dela são proibidas. A antiga máxima era que é melhor obedecer a Deus do que seguir as leis do estado. Apenas se ouvia falar em obsessões e possessões, o diabo andava à solta na terra: já hoje o diabo não sai de sua morada. Os prodígios, as profecias, eram necessárias então: já não se admitem. Um homem que profetizasse calamidades nas praças públicas seria metido num manicômio. Os fundadores recebiam secretamente dinheiro dos fiéis; um homem que recolhesse hoje dinheiro para dele dispor sem ser autorizado pela lei teria que responder perante a justiça. Assim, estão completamente fora de uso todos os caibros que serviram para construir o edifício.
Quinta questão

Depois da nossa santa religião, que sem dúvida alguma é a única boa, qual será a menos má?
Não seria a mais simples? Não seria aquela que ensinasse muita moral e pouquíssimos dogmas? a que tendesse a tornar os homens justos sem os tornar absurdos? a que não ordenasse absolutamente crer em coisas impossíveis, contraditórias, injuriosas à Deidade e perniciosas ao gênero humano, e que não ousasse ameaçar com as penas eternas os que tivessem o senso comum? Não seria aquela que não sustentasse sua crença por intermédio de tribunais nem inundasse a terra de sangue por causa de sofismas ininteligíveis? aquela que de um equívoco, um jogo de palavras e duas ou três cartas sobrepostas não fizesse um soberano, e um Deus de um padre freqüentemente incestuoso, homicida e envenenador? a que não submetesse os reis a esse padre? a que não ensinasse senão a adoração de um Deus, a justiça, a tolerância e a humanidade?
Sexta questão

Diz-se que a religião dos gentios era absurda em muitos pontos, contraditória, perniciosa; mas não se lhe teriam imputado maiores males do que na realidade praticou, e mais tolices do que pregou?
“Pois em ver Júpiter mudado em touro, – serpente, mono ou outra coisa qualquer, – nada de belo encontro – nem me admirará se suceder”. (Prólogo de Anfítrion).
Sem dúvida isto é muito impertinente; mostrem-me, porém, em toda a antigüidade um templo dedicado a Leda deitando com um mono ou com um touro. Houve em Atenas ou Roma algum sermão para encorajar as moças a fazer crianças com os macacos do seu pátio? As fábulas recolhidas e ornadas por Ovídio constituem a religião? Não se parecem elas à nossa Lenda Dourada, à nossa Flor dos Santos? Se algum brâmane ou dervis nos viesse objetar a história de Santa Maria egipciana, a qual, não tendo com que pagar aos marinheiros que a conduziram ao Egito, deu a cada um deles o que chamamos favores, à guisa de dinheiro, diríamos ao brâmane: “Meu reverendo padre, estais enganado, nossa religião não é a Lenda Dourada”.
Reprovamos aos antigos seus oráculos, seus prodígios: se eles voltassem ao mundo e pudéssemos contar os milagres de Nossa Senhora de Loreto e os de Nossa Senhora de Éfeso, para que lado penderia a balança?
Os sacrifícios humanos foram estabelecidos em quase todos os povos, mas muito raramente postos em uso. Apenas temos a filha de Jefté e o rei Agague imolados entre os judeus, porque Isaque e Jônatas jamais o foram. A história de Ifigênia não é muito acreditada entre os gregos; os sacrifícios humanos são muito raros entre os antigos romanos. Numa palavra, a religião pagã fez derramar pouquíssimo sangue, enquanto a nossa alagou a terra. A nossa é sem dúvida a única boa, a única verdadeira; mas fizemos tanto mal por seu intermédio que quando falamos das outras devemos ser modestos.
Sétima questão

Se um homem quiser persuadir de sua religião a estrangeiros ou compatriotas não deverá empregar a doçura mais insinuante e a mais acareante moderação? Se começar por dizer que o que ele anuncia está demonstrado, encontrará uma multidão de incrédulos; se ousar dizer-lhes que eles não rejeitam a sua doutrina senão porque ela condena as suas paixões, que o seu coração corrompeu o seu espírito, que eles apenas têm uma razão falsa e orgulhosa, ele os revolta, anima-os contra si, arruina ele próprio o que quer edificar.
Se a religião que anuncia é verdadeira, torná-la-ão a insolência e o arrebatamento mais verdadeira? Ficais encolerizados quando dizeis que é preciso ser dócil, paciente, benfeitor, justo, preencher todos os deveres da sociedade? Não, porque todo mundo é do vosso parecer. Por que, pois, dizeis injúrias ao vosso irmão quando lhe pregais uma metafísica misteriosa? É que o seu bom senso irrita o vosso amor próprio. Tendes o orgulho de exigir que vosso irmão submeta a sua inteligência à vossa; o orgulho humilhado conduz à cólera, nem é outra a sua origem. O homem ferido por vinte balas numa batalha não fica encolerizado; mas um doutor ferido pela recusa de um sufrágio torna-se furioso e implacável.
RESSURREIÇÃO

Conta-se que os egípcios não construíram as suas pirâmides senão para fazer túmulos e que os seus corpos embalsamados por dentro e por fora esperavam que suas almas viessem reanimá-los ao fim de mil anos. Mas se os seus corpos deviam ressuscitar, por que a primeira operação dos perfumistas era perfurar-lhes o crânio e tirar-lhes o cérebro? A idéia de ressuscitar sem cérebro faz supor (se se permitir a expressão) que os egípcios não o tinham muito vivo; é preciso, porém, considerar que a maioria dos antigos julgava que a alma estivesse no peito. E por que deveria estar no peito mais do que em qualquer outra parte? É que, com efeito, em todos os nossos sentimentos um pouco violentos experimentamos perto do coração um confrangimento ou uma dilatação, que fez pensar ser ali o alojamento da alma. Essa alma era qualquer coisa de abstrato, de aéreo; era uma figura leve que vagava pelo espaço até encontrar de novo seu corpo.
A crença da ressurreição é muito mais antiga do que os tempos históricos. Atálida, filha de Mercúrio, podia morrer e ressuscitar ao seu bel prazer: Esculápio restituiu a vida a Hipólito; Hércules a Alceste; Pélopes, tendo sido cortado em pedaços pelo pai, foi ressuscitado pelos deuses. Conta Platão que Eros ressuscitou por quinze dias somente.
Os fariseus, entre os judeus, só adotaram o dogma da ressurreição muito tempo depois de Platão.
Há nos Atos dos Apóstolos um fato bem singular e digno de atenção Jacó e vários dos seus companheiros aconselharam S. Paulo a ir ao templo de Jerusalém observar todas as cerimônias da antiga lei, por cristão que ele fosse, “a fim de que todos saibam”, dizem-lhe, “que tudo o que se diz de vós é falso e que continuais a guardar a lei de Moisés”.
Então S. Paulo foi durante sete dias ao Templo, mas no sétimo foi reconhecido. Acusaram-no de lá ter ido com estrangeiros e de o ter profanado. Eis como ele se livrou da entaladura:
“Ora, sabendo Paulo que uma parte dos que lá estavam eram saduceus e outra fariseus, gritou na assembléia: “Meus irmãos, eu sou fariseu e filho de fariseu; é por causa da esperança duma outra vida e da ressurreição dos mortos que me querem condenar” (63). Não houvera nenhuma questão da ressurreição dos mortos em todo esse negócio; Paulo dizia-o apenas para atirar os fariseus e saduceus uns contra os outros.
V. 7. “Paulo, tendo assim falado, motivou uma dissensão entre os fariseus e saduceus, e a assembléia foi dividida.
V. 8. “Porque os saduceus dizem que não há ressurreição, nem anjo, nem espírito, enquanto os fariseus reconhecem um e outro, etc.”.
Pretendeu-se que Jó, que é muito antigo, conhecesse o dogma da ressurreição. Citam-se as suas palavras: “Sei que o meu redentor está vivo e que um dia a sua redenção se erguerá sobre mim, ou que eu me erguerei do pé, que minha pele voltará e que ainda verei Deus em minha carne”.(64)
Mas vários comentadores entendem por essas palavras que Jó espera que há de melhorar em breve de sua doença, e que não permanecerá sempre deitado na terra como estava. Há provas de que essa explicação seja verdadeira, porque ele gritou aos seus falsos e empedernidos amigos: “Por que então dizeis: persigamo-lo?” ou então: “Porque direis: porque nós o perseguimos”. Isso evidentemente não quer dizer: “Arrepender-vos-eis de me haver ofendido quando me virdes no meu primeiro estado de saúde e opulência?” Um doente que diz: “Eu me levantarei”, não diz: “Eu ressuscitarei”. Dar sentidos forçados a passagens claras é o meio seguro de jamais se entender.
S. Jerônimo coloca o nascimento da seita dos fariseus muito pouco tempo antes de Jesus Cristo. O rabino Hilel passa por ser o fundador da seita farisaica, e esse Hilel foi contemporâneo de Gamaliel, o mestre de São Paulo.
Vários desses fariseus acreditavam que somente os judeus ressuscitariam e que o resto dos homens não valiam a pena. Outros sustiveram que não se ressuscitaria senão na Palestina, e que os corpos daqueles que forem enterrados alhures serão secretamente transportados para Jerusalém, a fim de se juntarem à sua alma. Mas São Paulo, escrevendo aos habitantes de Tessalônica, diz-lhes que “O segundo advento de Jesus Cristo é para eles e para ele, que eles serão testemunhas”.
V. 16. “Porque logo que o sinal for dado pelo arcanjo e pelo som da trombeta de Deus o próprio Senhor descerá do céu, e os que estiverem mortos em Jesus Cristo ressuscitarão por primeiros”.
V. 17. “Depois nós que somos vivos e que tenhamos sobrevivido até então seremos elevados com eles às nuvens para irmos perante o Senhor, no meio do ar, e assim viveremos para sempre com o Senhor” (65).
Essa importante passagem não prova evidentemente que os primeiros cristãos esperavam ver o fim do mundo, como de feito se prediz em S. Lucas, no tempo mesmo em que viveu S. Lucas?
Acreditava Sto. Agostinho que as crianças, e mesmo as crianças natimortas, ressuscitariam na idade madura. Os Orígenes, os Jerônimos, os Atanásios, os Basílios não creram que as mulheres pudessem ressuscitar com o seu sexo.
Enfim, sempre disputamos sobre o que fomos, sobre o que somos e sobre o que seremos.
SALOMÃO

Teria sido Salomão rico como se disse? Afiançam os Paralipômenos que o “melk” Davi, seu pai, deixou-lhe cerca de vinte milhões de nossa moeda corrente, segundo o cálculo mais modesto. Não há tal soma de dinheiro corrente em toda a terra e é muito difícil que Daví tivesse podido amealhar tamanho tesouro no pequeno país da Palestina.
Salomão, segundo o terceiro livro dos Reis, tinha quarenta mil coudelarias para os cavalos de suas carruagens. Quando mesmo cada coudelaria não contivesse mais que dez cavalos, isso somaria apenas o número de quatrocentos mil que, juntos a seus doze mil cavalos de sela, teria feito quatrocentos e doze mil cavalos de batalha. É muito para um “melk” judeu que jamais praticou a guerra. Essa magnificência não tem exemplo num país que apenas produzia asnos e onde hoje não existe outra montaria. Mas parece que os tempos mudaram. É verdade que um príncipe tão sábio, que tinha mil mulheres, podia ter também quatrocentos e doze mil cavalos, quando mais não fosse para levá-las a passeio ou ao longo do lago de Genezaré ou de Sodoma, ou à torrente de Cedrão, que é um dos sítios mais deliciosos da terra, embora, na verdade, essa torrente esteja seca durante nove meses do ano e o terreno seja um tanto rochoso.
Mas teria esse sábio Salomão realmente escrito as obras que lhe atribuem? É verossímil, por exemplo, que seja o autor da égloga intitulada Cântico dos Cânticos?
Pode ser que um monarca que possuía mil mulheres dissesse a uma delas: “Que ela me beije com um beijo de sua boca, pois seus seios são melhores do que o vinho”. Um rei e um pastor, quando se trata de beijar na boca, podem se exprimir da mesma maneira. É verdade que é muito estranho haver-se pretendido que foi a moça quem assim falou elogiando os seios do amante.
Não negarei que um rei galante tenha podido fazer que sua amante dissesse: – “Meu bem amado é como um ramilhete de mirra, ele morará em meus seios”. Não entendo muito bem o que significa esse ramilhete de mirra; mas enfim, quando a bem amada diz ao bem amado que lhe passe a mão direita sobre o pescoço e a abrace com a direita, entendo muito bem.
Poder-se-ia pedir algumas informações ao autor do Cântico quando diz: “Vosso umbigo é como uma taça na qual há sempre algo que beber; vosso ventre é como um alqueire de trigo; vossos seios são como duas crias de cervo e vosso nariz é como a torre do monte Líbano”.
Confesso que as églogas de Virgílio são de outro estilo; mas cada um tem o seu, e um judeu não é obrigado a escrever como Virgílio.
É aparentemente um belo efeito de eloquência oriental dizer: “Nossa irmã é ainda pequena, ela não tem seios. Que faremos de nossa irmã? Se é um muro, construamos sobre ele; se é uma porta, fechemo-la”.
Belas coisas, belas anedotas para Salomão, o mais sábio dos homens... Era, dizem, seu epitálamo para o seu casamento com a filha do faraó; é porém natural que o genro do faraó deixe sua bem amada durante a noite para ir passear em seu jardim das nogueiras, que a rainha corra sozinha, descalça, atrás dele, que seja espancada pelos guardas da cidade e que estes lhe tirem a roupa?
Poderia a filha de um rei ter dito: “Eu sou morena, mas sou bela como as peliças de Salomão”? Tais expressões poder-se-iam atribuir a um pastor, porquanto ao cabo de contas não há grande relação entre peliças e a beleza de uma moça. Mas, enfim, as peliças de Salomão poderiam ter sido admiradas em seu tempo, e um judeu do povo, que fazia versos à amante, poderia ter dito, em seu linguajar judeu, que jamais rei algum tivera roupas de pele tão bonitas como as dela; quanto ao rei Salomão, deveria estar muito entusiasmado com suas peliças para compará-las à amante: se um rei de nossos dias compusesse um tal epitálamo para o seu casamento com a filha de um rei vizinho não passaria, com toda certeza, pelo melhor poeta de seu reino.
Vários rabinos sustiveram que não só essa pequena égloga voluptuosa não era do Salomão, mas que também não era autêntica. Teodoro de Mopsueste tinha idêntica opinião, e o célebre Grótio chama ao Cântico dos Cânticos obra libertina, flagitiosus; contudo ela está consagrada, e é considerada como uma perpétua alegoria dos esponsais de Jesus Cristo com sua igreja. É preciso não esquecer que a alegoria é um pouco forte, nem se sabe que poderia a igreja deduzir do ponto em que o autor diz que sua irmã não tem seios, e que, se é um muro, é preciso construir sobre ela.
O livro da Sabedoria tem um tom mais sério; porém não pertence mais a Salomão do que o Cântico dos Cânticos. Atribui-se comumente a Jesus, filho de Siraque, outros a Fílon de Biblos; mas, seja quem for o autor, parece que no seu tempo ainda não existia o Pentateuco, porque ele diz no capítulo 10 que Abraão quis imolar Isaque no tempo do dilúvio, e, por outro lado, fala do patriarca José como de um rei do Egito.
Os Provérbios foram atribuídos a Isaías, a Elzias, a Sobna, a Eliacin, a Joaquê e a vários outros. Mas, quem quer que seja que compilou essa coletânea, de sentenças orientais, não há o menor viso de verdade em que tenha sido um rei quem se deu a tal trabalho. Teria ele dito que “O terror do rei é como o rugido de um Leão?” É assim que fala um súdito ou um escravo, que a cólera do seu senhor faz tremer. Teria Salomão falado tanto da mulher impudica? Teria dito: “Não olheis o vinho quando se afigura claro e sua cor brilha através do copo”?
Ponho francamente em dúvida a existência de copos no tempo de Salomão: é uma invenção muito recente; toda a antigüidade bebia em taças de madeira ou de metal; e essa única passagem indica que essa obra foi elaborada por um judeu de Alexandria muito tempo depois de Alexandre.
Resta o Eclesiastes, que Grótio pretende ter sido escrito sob o reinado de Zorobabel. Sabe-se perfeitamente com que liberdade o autor do Eclesiastes se exprime; sabe-se que ele disse que: “Os homens nada têm mais do que as bestas; que mais vale nunca ter nascido, do que existir; que não existe nenhuma outra vida; que a única coisa boa em tudo isso é podermos diverti-nos com aquela a quem amamos”.
Pode ser que Salomão tenha feito tais discursos a algumas de suas mulheres; pretende-se tratar-se de objeções; porém essas máximas, de ar um tanto libertino, nem de leve se parecem a objeções, e entender num autor o contrário do que ele diz é zombar da humanidade.
Aliás, vários padres pretenderam que Salomão tenha feito penitência; assim, pode-se perdoá-lo.
Porém, que esses livros tenham ou não sido escritos por um judeu, que nos importa? Nossa religião cristã alicerceia-se sobre a judaica, mas não sobre todos os livros que os judeus escreveram. Por que será o Cântico dos Cânticos mais sagrado para nós do que as fábulas do Talmude? Porque, diz-se, nós o incluímos no cânon dos hebreus. E que é esse cânon? Uma coletânea de obras autênticas. Essa é boa! Uma obra, por ser autêntica, é divina? Uma história dos reis de Judá e de Siquêm, por exemplo, será algo mais que uma história? Eis um estranho preconceito. Nós abominamos os judeus, e queremos que tudo o que por eles foi escrito e por nós recolhido traga o sinete da Divindade. Jamais se viu contradição tão palpável.
SENSAÇÃO

As ostras têm, diz-se, dois sentidos; as toupeiras, quatro; os outros animais, como os homens, cinco. Algumas pessoas admitem um sexto, mas é evidente que a sensação voluptuosa de que pretendem falar reduz-se ao sentimento do tato e que cinco sentidos constituem o nosso quinhão. É nos impossível imaginar ou desejar mais que isso.
Pode ser que em outros planetas existam sentidos de que não fazemos a mínima idéia; pode ser que o número de sentidos aumente de planeta em planeta e que o ser que tem sentidos inúmeros e perfeitos seja o termo de todos os seres.
Mas, nós outros com os nossos cinco órgãos, qual é o nosso poder? Sentimos sempre contra nossa vontade, e jamais por que o desejemos; é-nos impossível deixar de ter a sensação que a nossa natureza nos destina quando o objeto nos fere. O sentimento está em nós mas não depende de nós. Nós o recebemos; e como o recebemos? Sabe-se perfeitamente que não há nenhuma relação entre o ar agitado e as palavras que me cantam e a impressão que essas palavras gravam no meu cérebro.
Admiramo-nos do pensamento; mas o sentimento é igualmente maravilhoso. Um poder divino lampeja na sensação do último dos insetos como no cérebro de Newton. Contudo, que milhares de animais morram à vossa vista, não vos inquietareis pelo que possa vir a ser a sua faculdade de sentir, embora tal faculdade seja obra do Ser dos seres; vós os olhais como máquinas da natureza, nascidas para morrer e dar lugar a outras.
Como e por que a sua sensação deveria subsistir quando eles já não existem? Que necessidade teria o autor de tudo o que existe de conservar as propriedades cujo sujeito está destruído? Equivaleria a dizer que o poder da planta chamada sensitiva de retrair suas folhas subsiste mesmo quando a planta deixa de existir. Perguntareis sem dúvida como, se a sensação dos animais morre com eles, o pensamento do homem jamais perecerá. Não posso responder a essa questão, não sei o bastante para resolvê-la. Só o autor eterno da sensação e do pensamento sabe como a concede e como a conserva.
Toda a antigüidade afirmou que nada existe em nosso entendimento que não tenha passado por nossos sentidos. Descartes, nos seus romances, pretendia que tivéssemos idéias metafísicas antes de conhecer os seios de nossa ama; uma faculdade de teologia proscreveu esse dogma, não porque fosse um erro, mas porque era uma novidade; em seguida adotou esse erro, porque fora destruído por Locke, filósofo inglês, e era necessário que o inglês errasse. Enfim, depois de haver mudado tantas vezes de princípios, ela tornou a proscrever essa antiga verdade, que os sentidos são as portas do entendimento. Fez como esses governos sobrecarregados de dívidas que ora dão livre curso a certas cédulas e ora as interdizem; mas desde muito tempo que ninguém quer saber das cédulas dessa faculdade.
Todas as faculdades do mundo jamais impedirão os filósofos de ver que nós começamos por sentir e que nossa memória não é senão uma sensação contínua. Um homem que nascesse privado dos seus cinco sentidos seria privado de toda idéia, se pudesse viver. As noções metafísicas não nos chegam senão pelos sentidos: pois como medir um círculo ou um triângulo se não se viu ou tocou um círculo e um triângulo? Como conceber uma idéia mesmo imperfeita do infinito sem estabelecer limites? E como estabelecer limites sem os ter visto ou sentido?
A sensação envolve todas as nossas faculdades, disse um grande filósofo (66).
Que concluir de tudo isso? Vós que ledes, que pensais, concluí.
SONHOS

Somnia, quae mentes ludunt volitantibus umbris,
non delubra deum nec ab oethere nurnina mittunt,
sed sibi quisque facit (67).



Mas como, estando todos os sentidos mortos no sono, existe um sentido que vive? Como, nossos olhos não vendo mais, vossos ouvidos nada entendendo, vedes, contudo, e ouvis em vossos sonhos? O cão está na caça, em sonho; late, segue a presa. O poeta faz versos dormindo; o matemático vê figuras; o metafísico raciocina bem ou mal: temos exemplos contundentes.
Serão esses os únicos órgãos da máquina que funcionam? É a alma pura que, subtraída ao império dos sentidos, usufrui dos seus direitos em liberdade?
Se os órgãos, por si sós, produzem os sonhos à noite, por que não produzirão também, sós, as idéias de dia? Se a alma pura, tranqüila, no repouso dos sentidos, agindo por si própria é a causa única, o sujeito único de todas as idéias que tendes dormindo, por que serão essas idéias quase sempre irregulares, desarrazoadas, incoerentes? Como! É no momento em que essa alma está menos turbada que ela tem mais perturbações em todas as suas imaginações! Ela está livre e é louca! Se houvesse nascido com idéias metafísicas como o dizem tantos escritores que sonham de olhos abertos, suas idéias puras e luminosas do Ser, do infinito, de todos os primeiros princípios deveriam despertar em si com a maior energia quando o corpo está adormecido: nunca se seria bom filósofo senão em sonho.
Seja qual for o sistema que abraceis, sejam quais forem os esforços vãos que façais para provar a vós mesmos que a memória agita o vosso cérebro, que vosso cérebro agita vossa alma, é mister convirdes em que todas as vossas idéias vos acodem durante o sono, sem vós e apesar de vós: vossa vontade não intervêm aí. É portanto certo que podeis pensar sete ou oito horas seguidas sem ter a mínima vontade de pensar, sem mesmo estar seguro de que pensais. Ponderai isto tudo: procurai adivinhar o que vem a ser o complexo do animal.
Os sonhos foram sempre um grande objeto de superstição; nada mais natural. Um homem vivamente comovido pela doença de sua amante sonha que a vê morrer; ela morre no. dia seguinte: portanto, os deuses predisseram-lhe a sua morte.
Um general do exército sonha que vence uma batalha; ganha-a, com efeito: os deuses o advertiram de que seria vencedor.
Não se levam em consideração senão os sonhos que foram confirmados; esquecem-se os outros. Os sonhos participam grandemente da história antiga, tal como os oráculos.
Assim traduz a Vulgata o fim do versículo 26 do cap. 19 do Levítico: “Não observareis os sonhos”. Mas o termo sonho não existe no hebraico e seria muito estranho que se reprovasse a observação dos sonhos no próprio livro em que se diz que José se tornou o benfeitor do Egito e de sua família mediante a explicação de três sonhos.
A explicação dos sonhos era uma coisa tão comum que a gente não se limitava a essa prática: era preciso ainda adivinhar algumas vezes o que outro homem sonhara. Nabucodonosor, tendo olvidado um sonho que tivera, ordenou aos seus magos a sua adivinhação, e os ameaçou de morte caso não chegassem a bom fim; mas o judeu Daniel, que era da escola dos magos, salvou-lhes a vida adivinhando o sonho do rei, com a respectiva interpretação. Essa história e muitas outras poderiam servir para provar que a lei dos judeus não proibia a oneiromancia, isto é, a ciência dos sonhos.
SUPERSTIÇÃO

(Capítulo extraído de Cícero, Sêneca e Plutarco)

Quase tudo o que vai além da adoração de um Ser Supremo e da submissão do coração às suas ordens eternas é superstição. O perdão aos crimes acompanhado de certas cerimônias é uma das mais perigosas.

Et nigras mactant pecudes, et manibu divis inferias mittunt (68).
Ah! nimium faciles qui tristia crimina coedis fluminea tolli posse putatis aqua! (69).

Pensais que Deus olvidará vosso homicídio se vos banhardes num rio, se imolardes um cordeiro preto e se se pronunciarem sobre vós algumas palavras. Um segundo homicídio vos será pois perdoado ao mesmo preço, e assim um terceiro, e cem mortes não vos custarão mais do que cem cordeiros negros e cem abluções! Fazei melhor, miseráveis humanos: nada de mortes e nada de cordeiros negros.
Que infame idéia imaginar que um sacerdote de Isis e de Cíbele, tocando címbalos e castanholas, vos reconciliará com a Divindade! E quem é pois esse sacerdote de Cibele, esse eunuco errante que vive de vossas fraquezas, para se arvorar intermediário entre o Céu e vós outros? Que espécie de patentes recebeu ele de Deus? Recebe de vós algum dinheiro para balbuciar algumas palavras, e credes que o Ser dos seres ratificará as palavras desse charlatão?
Há superstições inocentes: dançais nos dias de festa em honra de Diana ou de Pomona, ou de qualquer desses deuses secundários de que está repleto o vosso calendário: pois podeis continuar. A dança é muito agradável, é útil ao corpo, alegra a alma, não faz mal a ninguém; não acrediteis porém que Pomona e Virtuna se comovam por haverdes saltado em sua honra e que vos puniriam se o não houvésseis feito. Não existem outra Pomona nem outra Virtuna que a enxada e a pá do jardineiro. Não sejais tão imbecil a ponto de acreditar que vosso jardim se queimará por haverdes deixado de dançar a pírrica ou a cordácia.
Existe provavelmente uma superstição perdoável e mesmo reconfortante para a virtude: é a de colocar entre os deuses os grandes homens que foram benfeitores do gênero humano. Melhor sem dúvida seria olhá-los simplesmente como homens veneráveis e sobretudo procurar imitá-los. Venerai sem culto um Sólon, um Tales, um Pitágoras; não adoreis porém um Hércules por ter limpado as estrebarias de Augias e por ter-se deitado com cinqüenta mulheres numa noite.
Guardai-vos de instituir um culto para certos patifes que não têm outro mérito que a ignorância, a vivacidade e a sordidez; que fizeram um dever e uma gloria do ócio e da glotonaria: esses que quando muito foram completamente inúteis durante sua vida, merecerão por acaso a apoteose depois da morte?
Lembrai-vos de que os tempos mais supersticiosos foram sempre os dos crimes mais horríveis.
TIRANIA

Chamamos tirano ao soberano que não conhece por leis senão o próprio capricho, que se apodera dos bens de seus súditos e que em seguida os arrola para ir tomar os dos vizinhos. Não existe tal espécie de tiranos na Europa.
Distingue-se a tirania de um só e a de vários. Essa tirania de vários seria a de um corpo que invadisse os direitos dos outros corpos e exercesse o despotismo a favor das leis por ele corrompidas. Tão pouco existe essa espécie de tiranos na Europa.
Sob qual tirania gostaríeis de viver? Sob nenhuma; mas se fosse preciso escolher, eu detestaria menos a tirania de um só do que a de vários. Um déspota tem sempre alguns bons momentos; uma assembléia de déspotas jamais. Se um tirano me faz uma injustiça, poderei desarmá-lo por intermédio de sua amante, por seu confessor ou por seu pagem; mas uma companhia de graves tiranos é inacessível a todas as seduções. Quando não é injusta é no mínimo impiedosa, e jamais concede favores.
Se tenho apenas um déspota, salvo-me com o simples colar-me a um muro à sua passagem; ou por me prosternar, ou por bater a fronte no solo, segundo o costume do país; mas se houver uma companhia de cem déspotas, estarei exposto a repetir essa cerimônia cem vezes por dia, o que é exaustivo, quando não se tem os fundilhos reforçados. Se eu tiver uma pequena herdade nas vizinhanças de um de nossos senhores, serei esmagado; se reclamar contra um parente dos parentes de nossos senhores, estarei arruinado. Que fazer? Temo que neste mundo estejamos reduzidos a um triste dilema: ser bigorna ou martelo. Feliz de quem escapar a essa alternativa!
TOLERÂNCIA

Que é a tolerância?
É o apanágio da humanidade. Estamos todos empedernidos de debilidades e erros; perdoemo-nos reciprocamente nossas tolices, é a primeira lei da natureza.
Que na bolsa de Amsterdã, de Londres, de Surata ou de Bassorá, os guebros, os banianos, os judeus, os mafomistas, os deícolas chins, os brâmanes, os cristãos gregos, os cristãos romanos, os cristãos protestantes, os cristãos quakers façam suas traficâncias juntos: eles não brigarão de punhal. Por que motivo, pois, nos esganamos quase sem interrupção desde o primeiro concílio de Nicéia?
Constantino começou por baixar um édito que permitia todas as religiões; terminou por perseguir. Antes dele os cristãos apenas eram perseguidos quando começavam a ter alguma força dentro do estado. Os romanos permitiam todos os cultos, até o dos judeus, até o dos egípcios, pelos quais tinham tanto desprezo. Por que tolerava Roma esses cultos? É que nem os egípcios nem mesmo os judeus procuravam exterminar a antiga religião do império, não perdendo tempo em revolver terras e mares para angariar prosélitos: o que queriam era ganhar dinheiro; é porém incontestável que os cristãos desejavam que sua religião fosse a dominante. Os judeus não queriam que a estátua de Júpiter estivesse em Jerusalém; mas os cristãos não admitiam que estivesse no Capitólio. Sto. Tomás tem a boa fé de convir em que, se os cristãos não destronavam os imperadores, é que o não podiam fazer. Sua opinião era que toda a terra devia ser cristã. Eram portanto inimigos de toda a terra, até que esta se convertesse.
Havia entre eles inimigos uns dos outros em todos os pontos de sua controvérsia. Antes de mais nada é preciso considerar Jesus Cristo como Deus, os que o negam são anatematizados sob o nome de ebionitas, que anatematizam os adoradores de Jesus.
Alguns deles desejam que todos os bens sejam comuns, como pretendem que o tenham sido no tempo dos apóstolos: seus adversários os chamam nicolaitas, acusando-os dos crimes mais infames. Outros, tendentes a uma devoção mística, são chamados gnósticos e perseguidos com furor. Marcião é tratado de idólatra por disputar sobre a Trindade.
Tertuliano, Praxedes, Orígenes, Novato, Novaciano, Sabélio, Donato, são todos perseguidos por seus irmãos antes de Constantino; e apenas Constantino fez reinar a religião cristã; os atanasianos e eusebianos se separaram; e desde então a igreja cristã foi inundada de sangue até hoje.
O povo judeu era, reconheço, um povo bastante bárbaro. Degolavam sem piedade todos os habitantes de um desgraçado e pequeno país sobre o qual não tinham mais direito do que sobre Paris e Londres. Entretanto, quando Naamã é curado de sua lepra por se haver banhado sete vezes no Jordão; quando, para testemunhar sua gratidão a Eliseu, que lhe ensinou esse segredo, conta-lhe que adorava o Deus dos judeus por reconhecimento, reserva-se a liberdade de adorar também o Deus de seu rei; pede licença a Eliseu, e o profeta não hesita em conceder-lha. Os judeus adoravam o seu Deus; mas nunca se admiraram de que cada povo tivesse o seu. Achavam muito natural que Camoes concedesse um certo distrito aos moabitas, contanto que o seu Deus também lhes desse um. Jacó não hesitou em desposar as filhas de um idólatra. Labão tinha seu Deus assim como Jacó tinha o seu. Eis belos exemplos de tolerância entre o povo mais intolerante e cruel de toda a antigüidade: nós o imitamos em seus furores absurdos, e não em sua indulgência.
É claro que todo indivíduo que persegue um homem, seu irmão, porque não é da sua mesma opinião, é um monstro. Isto está fora de dúvidas. Mas o governo, mas os magistrados, mas os príncipes, como deverão proceder para com indivíduos que têm um culto diferente do seu? Se forem estrangeiros poderosos, é claro que um príncipe fará aliança com eles. Francisco I., muito cristão, unir-se-á aos muçulmanos contra Carlos V, muito cristão. Francisco I dará dinheiro aos luteranos da Alemanha para sustentá-los em sua revolta contra o imperador; mas principiará, segundo o costume, por fazer queimar alguns luteranos em sua própria casa. Paga-os em Saxe por política; por política queima-os em Paris. Mas que acontecerá? As perseguições criam prosélitos; em breve a França estará repleta de novos protestantes. A princípio deixar-se-ão enforcar, em seguida começarão também a enforcar. Haverá guerras civis, em seguida o S. Bartolomeu e esse recanto do mundo será pior que tudo o que antigos e modernos já disseram do inferno.
Insensatos, que jamais soubestes render um culto puro ao Deus que vos criou! Desgraçados, que o exemplo dos noaquidas, dos letrados chineses, dos parsis e de todos os sábios jamais pode edificar! Monstros, que necessitais de superstições corno o urubu de carniça! Já se vos disse, e não temos outra coisa que dizer-vos: se tiverdes duas religiões, elas se trucidarão; se tiverdes trinta, viverão em paz. Vede ó grão-turco: governa guebros, banianos, cristãos gregos, nestorianos, romanos. O primeiro que experimentar provocar um tumulto é empalado, e todos permanecem em santíssima paz.
VIRTUDE

Que é virtude? Beneficência para com o próximo. Poderei chamar virtude a outra coisa senão ao bem que me fazem? Eu sou indigente, tu és liberal; eu estou em perigo, tu vens em meu socorro; enganam-me, tu me dizes a verdade; esquecem-me, tu me consolas; eu sou ignorante, tu me instruis: chamar-te-ei sem dificuldade virtuoso. Mas que acontecerá com as virtudes cardinais e teologais? Algumas delas ficarão nas escolas.
Que me importa que sejas temperante? É um preceito de saúde que observas; beneficiar-te-ás com isso e eu te felicito. Tens fé e esperança, redobro-te minhas felicitações: elas te concederão a vida eterna. Tuas virtudes teologais são dons celestes: tuas virtudes cardinais são excelentes qualidades que servem para te conduzir ao bom caminho; mas não são virtudes que se relacionem com o teu próximo. O prudente faz o bem a si, o virtuoso fá-lo aos homens. S. Paulo teve razão ao dizer que a caridade implica a fé e a esperança.
Mas como! admitiremos apenas as virtudes que são úteis ao próximo? Então! como poderei admitir outras? Vivemos em sociedade; nada existe de verdadeiramente bom para nós senão o que beneficia a sociedade. Um solitário será sóbrio, piedoso; revestir-se-á de um cilício: pois bem, será santo; porém não o chamarei virtuoso senão quando praticar algum ato de virtude em proveito dos homens. Enquanto for só, não será nem malfeitor nem benfeitor; nada é para nós. Se S. Bruno pacificou as famílias, se socorreu a indigência, foi virtuoso; se jejuou, rezou na solidão, foi um santo. A virtude entre os homens é um comércio de benefícios; o que não participa desse comércio não deve ser considerado. Se esse santo estivesse no mundo, sem dúvida praticaria o bem; mas enquanto não o estiver o mundo terá razão em não lhe conceder o nome de virtuoso: será bom para consigo próprio, e não para nós.
Mas, dizeis-me, um solitário glutão, bêbedo, entregue à devassidão secreta consigo mesmo, é um vicioso: será portanto virtuoso se tiver qualidades contrárias É no que não posso convir: será um homem muito vil se tiver de fato os defeitos que dizeis; mas não pode ser um vicioso, mau, susceptível de punição, no que diz respeito à sua relação com a sociedade, a quem suas infâmias não fazem mal algum. É de presumir que se entrar na sociedade praticará o mal, será um grande criminoso; é até muito mais provável que venha a ser um homem mau do que incerto é que outro solitário, casto, temperante, venha a ser um homem de bem: pois na sociedade os defeitos aumentam e as boas qualidades diminuem.
Faz-se uma objeção mais forte; Nero, o papa Alexandre VI. e outros monstros dessa espécie fizeram benefícios; ouso responder que foram virtuosos nesse dia.
Dizem alguns teólogos que o divino imperador Antonino não era virtuoso; que era um estóico tençoeiro que, não contente de governar os homens, ainda queria ser estimado por eles; que fazia reverterem a si próprio os benefícios que fazia ao gênero humano; que foi toda a sua vida justo, trabalhador, benfeitor por simples vaidade, e que apenas enganou os homens com a sua virtude; neste caso exclamarei: “Meu Deus, dai-nos a basto velhacos desta laia!”

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