sábado, 15 de setembro de 2007

SERTÃO EM FLOR PTE 2

O FAZENDEIRO E O ROCEIRO

Ao Coronel Dr. Salles Filho.



BARNABÉ:
— Munto bás noite, cumpade.

ZÉ JOAQUIM:
“Cumpade, muito bás noite.

BARNABÉ:
— Cumo aminhã, de minhã,
vórto prá minha Fazenda,
vim abraçá meu cumpade
e preguntá se não qué
fazê arguma incomenda
lá pra arguem daquelas mata.

ZÉ JOAQUIM:
“ Não, cumpade. Só desejo
que vancê me arrecomende
a cumade Furtunata.
E, agora, quando tu vórta,
cá pula roça outra vez?!

BARNABÉ:
— Nós támo no mês...

ZÉ JOAQUIM:
“de Março.

BARNABÉ:
— No fim do ano, tarvez.

ZÉ JOAQUIM:
“ Quá, cumpade!... Eu não me engano!
Tu te péga no sertão,
e só vórta aqui, na róça,
d’aqui há dois ou três ano.

BARNABÉ:
— Não, sinhô, pruquê na Côrte
tenho uns negóço a tratá.

ZÉ JOAQUIM:
“Ah! Cumpade!! Eu me esquecia!
E o caso que vancê disse
que me haverá de contá?!

BARNABÉ:
— Outra vez, quando eu vortá.

ZÉ JOAQUIM:
“O que?! Não, sinhô! Agora!
Tu já deu prá madracêro?

BARNABÉ:
— Quem faz viage perciza..

ZÉ JOAQUIM:
“de descanso. Mas porêm
eu quero sabê pruquê
tu perdeu tanto dinhêro.

BARNABÉ:
— Não foi bem perdê, cumpade;
eu não te contei a históra
cumo foi que assucedeu.

ZÉ JOAQUIM:
“Apois bem: me conta agora.

BARNABÉ:
— Me dá premêro um cigarro
daquele fumo gostoso,
que onte à noite tu me dêu.

ZÉ JOAQUIM:
“Toma lá... Pita à vontade.

BARNABÉ:
— Agora...

ZÉ JOAQUIM:
“O que é mais cumpade?

BARNABÉ:
— Um góle daquela nóssa!...
da branquinha!...

ZÉ JOAQUIM:
“Tome lá.
Esta é cana cá da roça!

BARNABÉ:
— Agora farta uma coisa.

ZÉ JOAQUIM:
“Apois fale. O que mais quê?

BARNABÉ:
— Daquele bão!... Do cheroso!

ZÉ JOAQUIM:
“Rapé, cumpade?

BARNABÉ:
— Rapé.

ZÉ JOAQUIM
“Toma lá. Este é do bão.

BARNABÉ:
— Estas venta, Zé Joaquim,
é taliquá um fogão.
Perciza tá sempe quente,
prás indéa refervê.

ZÉ JOAQUIM:
“Se é ansim, bóta cravão.

BARNABÉ:
— Agora munta atenção!
Há três mês, caiu doente...

ZÉ JOAQUIM:
“A cumade?!!!

BARNABÉ:
— Sim,sinhô.

ZÉ JOAQUIM:
“Vâmo! Conta!

BARNABÉ:
— Era uma dô
que ela sentia no figo,
mas porêm arrespondendo
(Lá nela...) im riba do imbigo.
Há dois mês que táva ansim,
e cada dia pió.
Percurei Manué Timbó,
curandêro famanado,
que me disse que ela táva
cum o figo todo impaxado.
Há dois mês que Furtunata
tinha assentado na quarta,
já despois de tantos ano
a gente se tê casado.
Manué Timbó mandou dá
todos os dias três chá
de urtiga e de erva cidrêra
e uma boa esfregação
de banha de quati macho,
prá esquentá toda a paquêra.
Cumo há seis dia a doente
já não descia nos pé
o cabôco aconsêiôu
uma istruvanca de arruda,
lingua de boi, e umas fôia
de pitanga e de coité.
Mas porêm, cumo im três dia
não tinha cessado a dô,
chamei o Antonio Piôiu
mandiguêro e benzedô...

ZÉ JOAQUIM:
“... Que é o avô da Chica Bóde...

BARNABÉ:
— Isso mêmo, sim, sinhô!...

ZÉ JOAQUIM:
“Já sei que o cabra acertou!

BARNABÉ:
— Não fazendo, pouco caso
na sua palava honrada,
dêxe eu falá.. prú favô!

ZÉ JOAQUIM:
“Apois bem — ... Peço perdão!...

BARNABÉ:
— Não tem de quê. Meu cumpade
não dêxa de tê rézão.

ZÉ JOAQUIM:
“Fala, cumpade! Eu premêto
que não te istróvo mais, não!

BARNABÉ:
— Antonio Piôiu, esse hôme
que tem feito tanta cura,
benzeu, rezou, mas porêm
o má não arrespeitava
o diabo das benzedura!...

ZÉ JOAQUIM:
“Crédo im cruz!... Ave Maria!
Não fale tanta hirizia

BARNABÉ:
— Hirizia?!

ZÉ JOAQUIM:
“Apois não foi?!

BARNABÉ:
— Tem rézão! Deos me perdôe!

ZÉ JOAQUIM:
“Deos sempe perdôa a gente,
quando qué se arrependê.

BARNABÉ:
— Vendo que sua cumade
táva im risco de morrê
e já não tendo mais nada,
não tendo mais que fazê,
mandei chamá um doutô
que intendia dessas coisa
de doença das muié
e que eu uvia dizê
que era um grande ômpéradô.

ZÉ JOAQUIM:
“Prá quê, cumpade!.... Prá quê!?
Tu nem parece hôme véio
cum tantos ano de vida!
Pulo quê tu disse atraz,
o má da minha cumade
era espinhéla caida!!!

BARNABÉ:
— Não era, não, Zé Joaquim!
A coisa era mais ruim!

ZÉ JOAQUIM:
“Ruim?! Quá ruim! Quá nada!...
Eu punha a muié curada
só c’um côpo d’água inté!

BARNABÉ:
— Cum isso só?!

ZÉ JOAQUIM:
“E cum Aquela!...
— A Senhora das Candeia,
e a Santa Virge Maria,
que é nossa Mãe, Barnabé.

BARNABÉ:
— Era pércizo um dotô...

ZÉ JOAQUIM:
“Prá ti!... que perdeu a fé!

BARNABÉ:
— Tu, cumpade, im meu lugá...

ZÉ JOAQUIM:
“... Tinha curado a cumade,
pruquê inda tenho uma boca
e duas mão prá rezá!

BARNABÉ:
— Mas porêm... dêxa eu falá.

ZÉ JOAQUIM:
“Não tôu aqui prá outra coisa
se não é prá te escutá!

BARNABÉ:
— O hôme, de munto longe,
de dez legua bem puxada,
im riba d’um Russo Pombo,
apareiado de prata,
veio vê a Furtunata.
O doutô, que era um frangote,
munto bem apessoado,
ânte de vê a duente,
me prêguntou cumo éra
que o má tinha cumeçado.
Não fartando cum o arrespeito
prá um doutô, quando é frômado,
disse o que eu já tinha feito!

ZÉ JOAQUIM:
“Prá falá verdade, eu acho...

BARNABÉ:
— Não fale!...

ZÉ JOAQUIM:
“Já tôu calado!

BARNABÉ:
“O doutô se pôs-se a ri!!...

ZÉ JOAQUIM:
Óia lá!!... Eu logo vi!!..
Apois óia Barnabé!
Tem mm cabra aqui na roça,
o Reimundo Jacaré, que sem sai da paióça,
somentes cum as suas réza,
curava a tua muiéi!

BARNABÉ:
— Eu não sei lá, Zé Joaquim!
Dêxa lá seu Jacaré
e vâmo chegá no fim.
Despois seu doutô me disse
que queria inzaminá.
Arrespundi: seu doutô,
quando quizé; póde intrá.
Furtunatá já sabia
que o doutô tinha chegado.
(Eu li juro, meu cumpade,
que inté naquele momento,
ninguem, a não sê nós dois,
tinha intrado ali, no quarto,
dênde o dia de casado).

A duente, Zé Joaquim,
chorava cum a dô!... Gemia
de fazê pena prá gente
vê a duente gemê!
O doutô tirou do bôrso
um palitinho de vidro,
butou debaxo da braço,
e cumeçou a batê!
Os dedo do hôme batia
ligêro im riba das vêia,
cumo língua de muié.
Despois mandou a duente
abri a boca e butá
a língua toda prá fóra.
Tirou do bôrso o relójo;
tirou do braço o vidrinho;
oiôu prô vidro, e, despois,
prô relójo, vendo as hóra.
Despois, tornando a batê,
quando bateu n’um logá,
a sua santa cumade
gritava que parecia
(cum perdão do meu cumpade!)
carro de boi, quando passa
n’uma vareda, a guinchá.

ZÉ JOAQUIM:
“Coitadinha!... Coitadinha!...
Se eu fôsse vancê, li juro,
que esse cabra, esse mardito,
não comia mais farinha.

BARNABÉ:
— Tu tem rézão, meu amigo!
Coitadinha!... Coitadinha!

ZÉ JOAQUIM:
“Onde móra esse canáia!?
Eu percizo desse bicho
prá levá minhas banana
im riba d’uma cangáia!

BARNABÉ:
— Cumpade! Não me atrapáia!
Dêxa lá de macacáge,
que eu tenho de acordá cedo,
prá segui minha viage!

ZÉ JOAQUIM:
“Ah!... se eu gárro esse serváge!!

BARNABÉ:
— Tu qué uvi ou não qué?!

ZÉ JOAQUIM:
“Fala!... Fala, Barnabé!

BARNABÉ:
— Despois do doutô batê
no lugá que eu já falei,
fez ansim, dando cum os hombo!

ZÉ JOAQUIM:
“Quá foi o lugá, cumpade?!

BARNABÉ:
— Um bocadinho prá báxo
do lado isquerdo do istômbo,
que o Timbó mandou isfregá
cum banha de quati macho!

ZÉ JOAQUIM:
“Isso é munto bão prô figo...
Mas porêm, cumpade, eu acho...

BARNABÉ:
— Espera lá: já te digo.
Despois do inzame, o doutô,
saindo entonce do quarto,
pediu água e a mão lavou.
Levou bem uns três minuto
calado, óiando prá mim.
Ao despois, falou ansim: —
Cumo se chama o sinhô?
“Barnabé” li arrespundi.
“Apois bem, seu Barnabé”.
(me disse, ansim o doutô...)
“só uma coisa, somentes,
“sarvará sua muié”.
— Apois, seu doutô: quá é?
— Seu doutô: eu faço tudo
— que tivé nas minhas mão!!
Entonce o hôme me disse: —
“Sua duente perciza
“fazê uma ômperação”.
Quando uvi essa préposta,
cai de venta prô chão!

Ao despois de dez minuto,
o doutô me alevantou,
e entonce ansim me falou:
“Ou o sinhô manda fazê
“já e já a ômperação,
“cumo inda há pouco eu dizia,
“ou a sua companhêra
“não dura mais de dois dia
“Eu agaranto ao sinhô
“que nenhum perigo tem.
“Não sei os seus pissuido;
“mas porém, eu li prêmêto
“que não li peço um vintem”.
Todo o má de Furtunata
era um tumô, meu cumpade,
que táva roendo prú dento.

ZÉ JOAQUIM:
“Cumpade!... Apára um momento!!...
Pruquê, se tu continúa,
eu istóro!.. Eu arrebento!!!
Se um hôme póde, rezando,
cum a ajuda d’uma oração,
de pé descarço, pizá
nas brasa d’uma fuguêra,
cumo faz os sertanêjo,
no dia de São João!...
Se um hôme c’uma oração
póde movê os rochedo!...
Arrancá d’uma montanha
os tronco dos arvoredo!...
Andá p’urriba das água,
cumo andou Nosso Sinhô!...
Cumo é que tu não podia,
arrancá essa porquêra
do diabo d’um tumô?!!

BARNABÉ:
— Ora! Pula mór de Deos!
O que passou já passou!

ZÉ JOAQUIM:
“Não me fale im Deos!... Não fale!
“Não fale em Deos!... É favô!

BARNABÉ:
— Não falo, mais, não, sinhô!
E a minha históra, cumpade,
já se acabou! Tá acabada!

ZÉ JOAQUIM:
“Quá já se acabou!... Quá nada!
“Conta o resto!... Vâmo lá!

BARNABÉ:
Eu conto, mas não istróve,
que o setestrelo váe árto,
e as três hóra da minhã
eu tenho de alevantá.

ZÉ JOAQUIM:
“Conta o resto! Vâmo lá!

BARNABÉ:
— Tá bão. Ainda eu me fio
na tua palavra honrada.

ZÉ JOAQUIM:
“Cala-te!... Cala-te, boca!...
“Já tôu cum a boca fechada.

BARNABÉ:
— O doutô, que já trazia
n’um baúzinho as ferrage...

ZÉ JOAQUIM:
“Dêxa lá de mapiage,
dêxa o raio do doutô,
que eu quero sabê, somentes,
se a cumade se sarvou.

BARNABÉ:
— O moço levou três hora
prá fazê a ômperação!
Mas porêm fez um trabáio
que, abaxo de Deos, cumpade,
a ele a tua cumade
deve a sua sarvação.

ZÉ JOAQUIM:
“E tu, que sois um cristão,
que nunca dêxou ninguem
intrá dento do teu quarto
a não sê tu e a muié,
tu vae deixá, Barnabé,
um doutô tarapantão...

BARNABÉ:
— Entonce, seu Zé Joaquim,
eu havéra de dexá
a minha bôa muié
morrê cumo um animá?!

ZÉ JOAQUIM:
Óia!!... Se fôsse cumigo!!...

BARNABÉ:
— Espera lá!... Já te digo!
Quando eu vi que a Furtunata
já táva já sem perigo,
arriei meu Passarinho,
e prá casa do doutô,
que era três legua distante,
me puz logo de caminho.
Tinha há três hora saido
prá vê a vó do Penido.
O hôme lá no sertão
tinha tanto que fazê,
às vez inté, certos dia,
se esquecia de comê.
O sino da capelinha
batia as ave-maria,
quando iscutei o tropé
d’um cavalo que na estrada
vinha a toda disparada.
Era ele, sim, sinhô!
Quando me viu, se assustou,
e entonce me prêguntou:

“Cumo váe sá Furtunata!”
Já tá de pé, seu doutô
E ele: “Pruqué motivo
eu devo a seu Barnabé
a honra desta visita,
que me dá munta alegria?!!“

Puxei entonce do bôrso
um imbrúio que eu trazia,
e entregando prô doutô,
disse: — Vossa Senhoria
vae me fazê o favô
de escutá, quéto e calado,
tudo o que eu quero dizê!

Esse é um favô munto grande
que eu peço agora a vancê.

Pedindo entonce licença
prá me podê assentá,
eu cumecei a falá.

Há vinte ano, seu moço,
há vinte ano passado,
que eu — Antonio Barnabé —
cum a fé de Deos sou casado.

Levei dois mês todo intêro
prá pedi ao Zé Vaquêro
a mão daquela muié.

Quando eu ia abri a bôca,
eu sentia uma friage
frévendo, aqui na graganta.
Ói, moço!... a Furtunata
não é muié!... É uma santa!
Me casei. A vez prêmêra
que eu dei um bêjo na mão
da Maria Furtunata,
fiquei tão invrégonhado,
que andei três dias nas mata,
cumo um boi, amucambado.

Doutra feita... Escute lá.

Táva casado há dez ano.

Um dia, tomando banho
nas água d’uma lagôa
munto longe da Fazenda,
do outro lado da Tabôa.
Vi, eu vi que a Furtunata
vinha lá das Gróta Funda,
pulo meu nome a gritá.

E cumo não tinha tempo
da roupa dispindurá
dos gáio d’um piquiá,
varei pulos mato afóra,
os mato cheio de espinho,
prá me escondê, lá, distante
prú detraz d’um tabocá.

É ansim a inducação
que se arrecébe prú lá.

Seu doutô. Eu não sou hôme
de fortuna. Mas porêm,
faço as minha incunumia,
e vou vivendo, vivendo,
cumo Deos qué: má ou bem.

Trago aqui, neste papé,
todo, todo o meu dinhêro.
Não é paga! Não, sinhô!
Eu sei que vancê não é
desses hôme interessêro!

Aquilo que vancê fez,
se eu fosse dono do mundo,
não pagava, seu doutô,
nem li dando o mundo intêro!!

O que eu trago neste imbrúio,
chega bem prá vassuncê
vivê três ano aforgado,
casado, viuvo ou sortêro.

Apois bem!... Munto obrigado!

No chão, aqui, ajuêiado,
cumo um grande pecadô,
eu quero bêjá seus pé!

Mas porêm... Minha muié,
que vancê viu quage núa,
toda núa, seu doutô!!!!!!

Eu li peço prú favô!!!...

Im nome de Jesú Cristo!...
De Maria!... E São José!...

Já!! Cum aquela ligerêza
que vassuncê me falava,
prá fazê a ômperação,
mande arrumá suas máca!...

Sáia d’aqui!... Vá prá longe!...
Bem longe deste sertão!...

Pruquê, se vancê não fô,
eu, cum a ponta desta faca,
li istraçáio o coração.


VOCABULÁRIO



Impaxado — incurgitado.
Assentado na quarta — dado à luz.
Paquêra — intestinos, barriga.
Descia nos pés — exonerava os intestinos, expelia os excrementos.
Istruvanca — mistura.
Mandiguêro — feiticeiro.
Tararapantão — que fala muito.
Russo-pombo — cavalo desta cor.
Mesinha — remédio caseiro.
Pinhão de purga — purgante.
Palitinho de vidro — termômetro.
Varêda — caminho.
Passarinho — cavalo espantadiço.
Amucambado — escondido nos matos.
Maca — saco de couro em que se leva roupa.


A RESPOSTA DO GÉCA-TATÚ

O caboclo Géca Tatú, tendo o mesmo nome do outro, a quem se referiu n’um dos seus discursos uma personagem de grande vulto, ofendido, e julgando que todas aquelas referências foram feitas a si, resolve vir à Capital para rebatê-las, segundo seu modo de pensar. Ouçamos a defesa do violeiro nortista, perante o seu eminente ofensor, o maior brasileiro do seu tempo.


A RESPOSTA DO GÉCA-TATÚ

A João Pernambuco, a alma dos violeiros e cantadores da minha terra.



Seu doutô!... Venho dos brêdo,
só prá móde arrespondê
toda aquela fardunçage
que vancê foi inscrêvê.
Eu não sei lê, mas porêm
o seu Padre Capelão,
que sabe lé munto bem,
lêu prá nós tudo, im três mez,
o seu bunito sermão.
Me dissérum, cá na Côrte,
que o seu doutô faz aquilo
de cabeça e sem trabáio!...
Vancê tem fôrgo de gato
e lingua de papagaio!

Não têje vancê jurgando
que eu sêje argum canguçú!
Não sou, não, seu Conseêiro!
Sou do Norte!... Eu sou violêro,
e vivo naquelas mata,
cumo véve um sanhassú.
Vassúncê já me cunhece!
Eu sou o Géca-Tatú!

Os hóme cá da cidade
me agarante que o sinhô
é o prêmêro entre os prêmêro,
é o mais grande brasilêro,
é o Dunga dos inscritô!....
Mas porém macaco véio
não mete a mão im cumbuca
vazia ansim, seu doutô!

Nós tudo já tá cansado
desta vida de rocêro,
prá dá mio a tantu galo
que só canta no polêro.
Meu patrão e os cumpanhêro
só leva a falá de lêzes,
que é uma grande trapaiada,
imquanto nós leva a vida
surrando as mão c’uma inxada.

Cum toda essa mapiáge,
vassuncê, seu senadô,
nunca um dia se alembrou
que lá, naquelas parage,
a gente morre de sêde
e de fôme.. sim sinhô!
Vassuncê só abre o bico,
prá cantá cumo um cancão,
quando qué fazê seu ninho
nos gáio d’uma inleição!

Vassuncê, que sabe tudo,
é capaz de arrespondê
quando é que se ouve nos mato
o canto dos zabelê!?
Im que hora é que o macuco
se põe mais a piá?
E quando é que a jacutinga
tá mió de se caçá?
Quando o urú, entre as foiage,
sabe mais assuviá?
Quá é de todas as árve,
a mais dêrêita e impinada?
E a que tem o páu mais duro,
e a casca mais incourada?
Vancê não sabe quá é
a madêra que é mais bôa,
prá fazê-se uma canôa!!!

Vancê, no meio da trópa
dos cavalo, seu doutô,
óiando prôs animá,
sem vê um só se movê,
não é capaz de iseuiê
um cavalo isquipadô!

Eu queria vê vancê,
no meio d’uma burrada,
somentes pulo um isturro,
dizê, im conta ajustada,
quantos ano, quantas manha,
quantos fio tem um burro!

Vancê só sabe de lêzes
que se faz cum as duas mão!...
Mas porém não sabe as lêzes
da Natureza e que Deos
fez prá nós cum o coração!

Vancê não sabe cantá
mais mió que um curió,
gemendo à bêra da estrada!
Vancê não sabe inscrevê
no papé, feito de terra,
quando a tinta é a do suó,
e quando a pena é uma inxada!
Se vancê não sabe disso,
não póde me arrespondê!...

Óia aqui, seu Conseiêro!...
Deos não fez as mãos dos hôme
somentes prá ele inscrevê!

Vassuncê é um senadô,
é um conseiêro, é um doutô!
É mais que um Imperadô!...
É o mais grande cirdadão!...
Mas porém eu lhe agaranto
que nada disso seria
naquelas mata bravia
das terra do meu sertão!!
A mizéra, seu doutô,
tombêm a gente consola!

O orguio é que mata a gente!...
Vancê qué sê Perzidente
e eu só quero sê rocêro
e tocadô de viola!

Vancê tem todo o dêrêito
de ganhá os cem prú dia,
prá mió pudê falá!!
Mas porém o que não póde
é a inguinorança insurtá!

A gente, seu Conseiêro,
tá cansada de espera!!

Vâncê diz que a gente véve
cum a mão no quêxo, assentado,
sem fazê caso das coisa
que vancê diz no Senado!

E vassuncê tem rézão!
Se nós tudo é anarfabeto,
cumo é que a gente vae lê
toda aquela falação?

Prá dizê que dois cum dois
faz quatro, seu Conseiêro,
vancê gasta seis tintêro
e fala uma noite toda
e um dia todo intêrinho!
Vossa Incerlença parece
a cumade Ginuveva,
quando intica cum os vizinho.

Preguiçoso?! Madracêro?!
Não, sinhô, seu Conseiêro!!

É pruquê vancê não sabe
o que sêje um boiadêro
criá cum tanto cuidado,
cum tanto amô e alegria,
umas cabeça de gado,
e, despois, a impidimia
carregá tudo, cum os diabo,
im mêno de quatro dia!

É pruquê vancê não sabe
o trabáio disgraçado
que um hôme tem, seu doutô,
de incoivará um roçado,
e, quando o ouro do mio,
vae ficando imbonecado,
prá gente entonce cúiê,
o mio morre de sêde,
pulo Só inturricado,
sequinho, cumo vancê.

É pruquê vancê não sabe
quanto custa um pai sofrê,
vendo o seu fio crescendo,
dizendo sempe: Papái!!
Vem me ensiná o A. B. C.!

Ói aqui, seu Senadô!
Não é só questão de nôme!!

Eu só votava prá um hôme
sê Perzidente, se o cabra
já subésse o que era fome!
Eu não queria sabê
se ele era, como vancê,
— um doutô de falação.
Abasta só que essa hôme
fosse um burro, cumo eu,
mas porém, um bom cristão!
Prá sarvá o mundo intêro
abasta tê coração!

Se eu subêsse, meu sinhô,
inscrevê, lê e contá,
entonce, sim, eu havéra
de sabê cumo assuntá!

Tarvez vancês não déxasse
os sertanejo morrendo,
pió que fosse animá!

Prú móde a politicáia,
vancê qué que um hôme sáia
do sertão prá vi votá
im Joaquim, Pedro, ou Francisco,
quando vem sê tudo iguá!?

Preguiçoso?! Madracêro?!
Não sinhô!... Seu conseiêro!

Vancê não sabe de nada!
Vancê não sabe a corage
que é percizo um hôme tê
prá corrê nas vaquejada!
Vossa Incerlença não sabe
o valô d’um sertanejo,
acerando uma Quêmada!

Vancê mente, sim, sinhô!!

O cabôco brasilêro
tem munto brio e valô!

Nós é que já tá cansado
de trabaiá prôs doutô!
A gente não faz questã
de levá um dia intêro
cum uma inxadinha na mão!
A gente péde, somentes,
prá vancês não se esquecê
que nós tudo sêmo érmão!

Vancê tem um casarão!
Tem um jardim e uma xáca!
Tem criado de casaca!
E ganha, todos os dia,
qué chôva, qué faça Só,
só prá falá, cem mir ré!
Eu trabáio o ano intêro,
somentes quando Deos qué!!
Eu vivo da minha roça,
me isfarfando, cumo um burro,
prá sustentá oito fio,
minha mãe, minha muié!

Eu drúmo im riba d’um couro,
n’uma casa de sapé!!
Vancê tem seu ôtrômóve!
Eu, prá vi no apovoádo,
ando dez legua de pé!!

Neste mez amarfadado,
prú via de não chovê,
vi a róça du feijão
à farta d’água morrê!!
O Só têve tão ardente
lá prôs lado do sertão,
que im mêno de quinze dia
perdi toda a criação!!

A minha vaca, a Férmósa,
que amava cum tanto amô,
pul’uma surucutinga
foi mordida, sim, sinhô!

Na sumana arretrazada,
o vento tanto ventou,
que a páia, que cobre a choça,
foi pulos mato!.. Avuôou!!!

Minha muié tá morrendo,
só prú farta de mêzinha,
e prú farta d’um doutô!

Minha fia, que é bunita,
bunita cumo uma frô,
seu doutô!!! Não sabe lê!
E o Juquinha, que inda tá
chêrando mêmo a cuêro
e já puntêia a viola,
se intrasse lá prá uma escola,
sabia mais que vancê!

Prá falá de tantas lêzes,
vancê viveu assuntando
nesta grande bibrótéca,
mais de quarenta janêro!
Imquanto lá, no sertão,
o Antonio da Caturrita
e o Mundico Cachacêro,
garrando o braço d’um pinhô,
saluça, n’um desafio,
três noite e três dia intêro!

E inda que prú má prêgunto,
vassuncê, que sabe munto,
diga, sem tutubiá: —
quem foi que ensinou o Antonio
e o Mundico Cachacêro
tanta coisa prá cantá?!
Eu — digo à vossa Incerlença
que isso é que é inteiligença: —
o sabê, sem se estudá!!!

Preguiçoso!? Madracêro?!
Não sinhô, seu Conseiêro!!

Vossa Incerlença não viu
um cabôco istruviado,
c’um cravinote ou garruncha,
ispantá um bataião
d’uma prução de sordado!

Vossa Incerlença parece
que não lê munto essas coisa,
ou finge que nunca lêu!

Vancês têm munto talento!!!!
Mas porém pércisa tento
cum a fôme e cum o sufrimento!...
Quem lhe agarante sou eu!

Vancê diga aos cumpanhêro
que um cabra, — o Zé das Cabôca,
anda cantando estes verso,
que, hoje, lá, no meu sertão,
avôa de boca um boca: —
“Eu prantei a minha roça!
“O tatú tudo comeu!
“Prante roça quem quizé,
“que tatú quero sê eu!”
Vassuncê sabe onde tá
os buraco adonde véve
os tatú infomeado?
Tá nos palaço da Côrte
dessa prução de ricaço,
que fez aquele palaço
cum o sangue dos diagraçado!

Vossa Incerlença pérciza
dizê prôs repubricano
que é pércizo tê cuidado!

Patrão!... Vassuncês tem tudo!...
Vancês tudo leva a vida
munto bem adivértida,
passeando lá de ôtrômóve
pula estrada da Avinida!!

Vancês tem rio de açude!!
Tem os doutô da Hingiena,
que é prá cuidá da saude!!
E nós?! Que tem?! Arresponda!!
No tempo das inleição,
que o tempo das bándaêra,
nós só tem uma cangáia,
prá levá toda a porquêra
dos doutô politicáia!

Sinhô doutô Conseiêro!
De lêzes eu não sei nada!...
Meu Dêrêito é a minha inxada!
Meu palaço é de sapé!
Quem da lêzes prá famia
é a minha bôa muié!
Eu sou frômado oito vez,
e sou tômbêm conseiêro,
pruqué tenho oito fiinho!
Quem dá lêzes prá minh’árma
é as dez corda deste pinho!

Vancê qué sê Perzidente!
Apois sêje, meu patrão!...
Nós já ficava contente,
se vancês désse prá gente
uns restozinho de pão!

A nossa terra — o Brazi —
já tem munta inteligença!!
Muntos hôme de sabença,
que só dá prá espertaião!!!!

O que nós pede é a Piadáde!!
É um tico de Caridade,
prá nós vivê, cumo érmão!!

Leve o diabo a falação!

Prá sarvá o mundo intêro!
abasta tê coração!
Prôs hôme de inteligença
trago cumigo esta figa!!

Esses hôme têm cabeça,
mas porêm o que é mais grande
do que a cabeça, é a barriga!!

Vancé, quando faz sermão,
fala munto im riligião!

Apois bem. Nosso Sinhô
que nasceu n’um prezepinho,
falava munto pouquinbo,
cum clarêza e cum amô!

Ele, o Doutô dos doutô
que era o êxêmpro da humirdade,
escuiéu prá seus apóstro,
entre os rico da cidade,
doze pobre, cumo Pedro,
que era um pobre pescadô!

E inté os pé desses hôme
o Cristo um dia lavou!!!

Seu Conseiêro, um consêio:
Dêxe toda a bibrotéca
dos livro, essa estupidêza,
vá estudá o Dêrêito
das lêzes, na Natureza,
vá vê cumo Deos é grande
e cumo póde ensiná
as coisa que um hôme sabe,
sem sê percizo estudá!

Vancê leva nestes livro
lendo e lendo a toda hora!
Mas porém eu só queria
cunhecê, seu Conseiêro,
o que vancê inguinóra!!!

E abasta! Já vou me embora.

Si um dia vancê quizé
passá uns dia de fome,
de fome e tarvez de sêde,
e drumi lá n’úma rêde,
n’uma casa de sapê,
vá passá cumigo uns tempo
nos mato do meu sertão,
que eu hei de li abri as porta
da choça e do coração.

Eu vórto prós matagá,
mas porém, ouça prêmêro.
Vancê pôde nos xingá,
nos chamá de madracêro,
pruquê nós, seu Conseiêro,
não qué mais sê bestaião.

Imquanto os hômé de riba
dexá nós tudo mazômbo,
e só cuida dos istômbo,
e só trata de inleição,
seu Conseiêro há de vê,
pitando o seu cachimbão,
o Géca-Tatú se rindo,
cuspindo, sempe cuspindo,
óiando ansim prá vancê,
cum o quêxo sempe na mão.

Eu sei que sou um animá!

Eu não sei mêmo o que eu sou!

Mas porém eu li agaranto
que o que vancê já falou,
e o que indá tem de falá,
e o que inda tem de inscrevê...
todo, todo o seu sabê,
e toda a sua saranha,
não vále unm palavrinha
daquelas coisa bunita
que Jesus, n’uma tardinha,
disse im riba da montanha!


VOCABULÁRIO



Brêdo — mato.
Fardunçage — reunião da muitas vozes.
Cangussú — onça.
Sanhasú — pássaro canoro.
Lêzes — plural de lei.
Mapiage — algazarra.
Cancão — pássaro comedor de frutas.
Zabelê — pássaro, cujo canto prenuncia chuva.
Jacutinga — ave de corpo esguio.
Urú — pequeno galináceo cor de rapé.
Burrada — tropa de burros.
Isturro — rincho.
Curió — avinhado (pássaro).
Madracêro — negligente.
Imbonecado — com espigão.
Acerar — cortar o matagal nas queimadas, para evitar a propagação do incêndio.
Istruviado — destemido.
Talento — força, coragem.
Pinho — viola.
Mazombo — triste, necessitado.
Saranha — palavreado.


BRAZ MACACÃO




BRAZ MACACÃO

A Alfredo Reis Junior.



Apois sim: se o seu doutô
nhô môço e seu capitão,
nhá dôna e seu coroné
e mais o patrão quizé
a minha históra iscutá,
não faço questã... E, inté,
posso agora cumeçá.

Digo a mêcê, dende já,
que eu levei a vida intêra
pulos sertão, a viajá.
Os sertão lá do Ceará,
de Pernambuco e Bahia,
Paraíba e Maranhão,
cunhêço, cumo cunhêço
os dêdo aqui destas mão.
Mas porém sou naturá
d’outras terra, meu patrão.

N’um rancho todo cercado
d’um roçadão de mandióca,
d’um grande mandiocá,
eu naci im trinta e nove,
na serra de Ibitipóca,
que é lá prás Mina Gerá.
Apois oitenta janêro
carrégo aqui neste peito,
que é um véio jiquitibá

Meu avô, Zé Tinguassiba,
o rêis de todo os violêro,
a mais pió tatajúba
dos cabra de arreinação,
foi tômbêm o mais surúba,
o mais grande cachacêro
que Deos butou no sertão.

Im Santa Cruz das Parmêra,
ao dêspois d’um desafio
c’um o João da Chica do Rio,
morreu numa xumbrêguêra,
cum a bôca n’um garrafão.

Que lá, no Rêno do Céo,
cum Jesus e a sua graça,
Deos o tenha e não li farte
c’um garrafão de cachaça.

Meu páe, um timbú veiáco,
chamado Manué Macaco,
tinha os pé rasgado e chato
e uma cara de bugiu!
Foi o caititú mais fêio
que no mundo já se viu.
Mas porém juro a vancê,
juro pulas cinco chaga
de Cristo Nosso Sinhô,
que nunca se viu no mundo
uma cabra gemê nas corda
cumo meu pái, seu doutô.

Hôme séro cumo quê,
dansadô de recortado,
caxambú, catêrêtê,
pimpaião que nem um galo,
mais léve que uma penêra,
foi o ladrão de cavalo
mais honrado e arrespeitado
da Serra da Mantiquêra.

Era o orgúio da famia.

C’um tiro de bacamarte,
n’um Sertão lá da Bahia,
morreu quáge cum cem ano
n’uma vespra de Natá,
quando rôbava um piquira,
o mais férmoso da tropa,
que vinha prá Capitá.
Dando um bêjo no piquira,
dêu de ispóra no bichinho,
que azulou pulos caminho,
no avôo d’um isquipádo,
indo cai munto longe,
c’um o peito dispedaçado,
n’um pé de barbatimão,
e uma medáia de sangue
purriba do coração.

Que Deos o tenha no Céo,
prú muntos ano, a seu lado,
e São Jorge tome tento
cum seu cavalo, senão,
tá no fundão... tá rôbádo.

Vim prô mundo cum esta cara,
cum este carão de môno,
pruquê a Chica das Coivara,
a minha mãe, meu patrão,
foi a mais fêia das cara
que o tinhoso do capêta
mandou aqui prá este mundo,
que róda cumo um pinhão,
adonde eu fui bautizado
cum o nome de Macacão.

Se Deus não me désse o dão
de violêro afamanado,
e se não fôsse as muié,
eu já me tinha inforcado,
seu coroné, seu doutô.

Mas porêm... (Deus me perdôe!...)
tenho a viola e a garganta
que tanto e tanto cantou!
Tenho este peito, — o polêro, —
adonde, vendo uma franga,
d’aqui ou lá do sertão,
inda bate as aza e canta
um galo véio e fulêro,
que se chama: — coração.

Se não fôsse o galo véio,
— o coração — já se vê,
eu não teria matado
um hôme, no fim da vida,
que é essa a rézão da históra,
que eu vou contá prá vancê.

Rio Preto, Catinguêra,
Azulão, Pedro Japi,
José Maria, Aruêra,
Bêra d’Água, Bemtevi,
Sarvina, Chica Barróza,
Turbana, muié do diacho,
cantadêra que não tinha
arrecêio de hôme macho...
Jêrôme Junquêro, um cabra
cantadô cheio de brio,
que im São José das Piranha
morreu de repentemente,
cantando n’um disafio...
Esses violêro de fama,
que no Norte eu cunheci,
tinha sobrôço, nhô môço,
do meu pinho vencedô,
que dos meu tataravô
c’um orgúio arrêcebi

Cum perdão de quem me ouve!
Vendo um pedaço de sáia
dansando n’um miudinho,
meu coração, coitadinho,
firido, arrastando as aza,
chiava dento do peito,
taliquá cumo castanha,
quando se bóta nas braza.
(Cala a bôca, Macacão!
Cuntinúa a tua históra!...
Dêxa de sê bobaião!...)
Ói aqui, seu capitão: —
me faça agora esta conta
certinha... cum prefeição!
— Violêro dênde os quinze ano,
e de sete em sete dia,
tendo uma nova paxão,
cum sessenta e seis inverno,
diga vossa Sinhoria:
quantas paxão eu já tinha
no baú do coração?
Apois seu Braz Macacão
cum essa bagage pezada
de tanta dô incruada
dos amô, que tinha tido
pulas cabôca indiabrada
dos mato do seu sertão,
um dia deu de viage
prás banda de Pernambuco
cum esta viola assanhada,
prá se batê cum as viola
daqueles cabra do Norte,
que tem fama de chorão.
A rézão dessa fugida
da minha terra querida,
foi prá vê se era possive
me esquecê nas outras terra
de tanta paxão que eu tive
na terra onde fui nacido!
Véio já, pensei, nhá dona,
que, percurando outras banda,
nunca mais sofresse as magua
que prú via das cabôca
eu já tinha padecido!
Sem desfazê nos presente,
o diabo d’uma cabôca
— inda tâvá prá nacê
que me quizesse querê!
Apois bem. Ói vancê.
Tinha sessenta e seis ano
quando cheguei no Arricife,
c’uma sôdade danada
daquela Mina Gerá!
Vancê sabe que a sôdade,
que faz a gente pená,
é cumo a lua, que sempe
vai acumpanhando a gente
prá toda a parte onde vá.
N’um sertão de Pernambuco,
lá, im Pajeú de Frô,
eu vi a Xixi da Gróta,
a figa d’uma morêna,
bunita cumo os amô.
(Devo dizê a mêcê
que ánte de vê a Xixi,
já tinha andado maluco.
prú três ou quatro bichinha
que eu vi lá prá aquelas banda
dos sertão de Pernambuco).

Eu vi a Xixi da Grota
no rancho d’um violêro
chamado: — Zé do Assucêgo.
Ai!.. Seu doutô!... Que rabicho!
Ai!... Nhá dôná!... Que chamêgo!

Eu logo bispei que a bicha
táva cum os óio perdido
pulo Pedro Cumaé.
O Cumaé era um bóde
perrêngue e todo barrido,
que, sambando, paricia
que tinha musga nos pé.

Prá dizê cumo era linda
a Xixizinha da Gróta,
seu doutô!... Fárta a palava!...
Eu nunca mais vi, n’um samba,
uma cabôca marvada
sambá, cumo ela sambava!!!

Eu me alembro do vestido
cum que ela táva vestida
(Destas coisinha da vida
a gente nunca se isquéce).

Nhá dôna, o vestido dela
tinha a cô das fôia verde
das árve, quando aminhece.
A fita dos seus cabelo
era amaréla, amaréla,
cumo as fulô do argudão.
E a fulô que ela trazia
na cóva do cabeção,
era da cô da tristeza
do coração dos duente,
que sófre do coração.
As chinéla, as chinélinha,
era, sem tirá nem pô,
mimosa e piquininha
dois ôvo de bêja-frô.
O lenço, o lencinho dela,
seguro no cós da sáia,
era mais branco e arrendado
que a renda do lenço d’água
que a onda estende na práia!
Tudo nela era mimoso!...
Era lindo e incantadô!
O nariz era um biquinho
tão bem feito e ingraçadinho,
cumo o da fôgo-pagou.

Tinha, a carinha redonda,
que nem que fôsse uma bóla.
O corpo ansim tão bem feito,
cum as cadêra, arredondada,
paricia uma vióla!

Xinguei tanto esta viola,
cantei tanto aquela noite
esta toada sôdosa
prá cabôquinha iscutá,
que fiquei cum o céo da bôca
duendo só de cantá.

CANTO

“Xixi da Gróta!...
Eu já me perdi!...
Já tôu perdido
prú ti, Xixi!....
Xixi da Gróta!...
Pruquê eu te vi,
si tu não gosta de mim,
Xixi?

Eu sonhava esta noite
que a lua naceu,
e despois n’um suspiro,
entre as nuve morreu!
O capim mais mimoso
o veado comeu!
Oh!...
O veado comeu!...

Côro

O capim mais mimoso
o veado comeu!

CANTO

“Xixi da Gróta!...
Eu já me perdi!...
Já tôu perdido
prú ti, Xixi!....
Xixi da Gróta!...
Pruquê eu te vi,
si tu não gosta de mim,
Xixi?

Eu sonhei que eu sonhava
de um dia sê teu!...

E minh’arma assubindo
prô céo... se perdeu!...
O capim mais mimoso
o veado comeu!... Oh!...
O veado comeu!...

Côro

O capim mais mimoso
o veado, comeu!

Cantei tanto esta tuada
que o coração me duêu!

Mas porém..., Quá, meu patrão!
Era o Pedro Cumaé
o rêis do seu coração.

Cumo violêro e cantô,
o hôme podia sê,
quando munto... um piriquito.
Mas porêm... prá quê minti?!
Era um cabôco bunito!!

Seu capitão arrepáre
no que agora eu vou dizê: —
vassuncé, que é fêio e véio,
tempére as corda d’um pinho,
tóque e cante a noite intêra,
que vancê logo há de vê
que as muié fêia ê qué iscúta,
apois as muié férmoza
nem faz caso de vancê!!!
Só as fêia, as muié fêia,
é que aprêcia estas coisa
de cantoria, patrão.
Seu coroné: é um fenômico,
que ninguem sabe a rézão!!!

Xixi da Gróta sambou,
toda a noite sapatiou,
e nem uma vez, sómentes,
nem uma vez só me oiôu.

Quando o samba se acabou,
e eu ia me aritirando,
ela disse ansim, baxinho,
lá prô Pedro sarambê: —
“Crédo im Cruz! Váe-te, Capêta,
“que ele é feio cumo quê!”

Pegando a minha viola,
me atirei pulas istrada.
Limpa e azú, a madrugada
vinha brotando, facêra.
Na sombra das capuêra,
dando bom dia prô dia,
cunversava as juriti.
Prêta, cumo uma penúge
caída d’aza da noite,
uma graúna cantava
nos gaio dum tamburi.

Pulos canto da graúna,
jurei, jurei, sem temô,
que nunca mais eu havéra
de sê mêganha do Amô.

Butei cêbo nas canéla
naquele dia, patrão,
e lá me fui prô Ceará,
cum a bagage mais pezada
no baú do coração.

Nos verde lá do Ceará,
eu vi munta tentação,
munta, munta férmuzura,
mas porém logo alembrava
da graúna que cantava,
quando eu fiz aquela jura!

Mas porêm... ói o pecado!!
O isprito do coração,
que anda sempe atrapáido,
é um cabra discôronhado,
que eu não conheço, nhôr, não.

É farso cumo um ladrão!

Vêje lá, seu coroné.
Um dia, im Baturité,
fiquei outra vez chumbado!...
Andei de canto chorado
pulos óio arrenegado,
os óio d’outra muié,
que eu vi lá n’um casamento
d’um tá de Pedro Pinhé.

A cearênse era uma fia
lá de Quixêramubim.
Era o dia... o dia... de...
Nosso Sinhô do Bomfim.

Prú mando de seu Pinhé,
prá festa fui cunvidado
pulo um cabra famanado,
chamado — Juca Cumbúca,
um tocadô de viola,
namorado da cabôca,
que se chamava: — Inhatúca.

O cabra disfabriçado
me foi dizendo na cara
que prá um grande disafio
eu tava disafiado.

Sim, Sinhô! Mina Gerá
ia brigá cum o Ceará.

No dia do casamento,
e tômbêm do dsafio,
o Cumbúca, inda cedinho,
cum o tuim todo incebádo,
cantando pulos caminho,
passou pulo meu ranchinho,
cheio de róço e cum o pinho
nos seus braço alevantado.
Cheguei na porta do rancho,
e c’um sárva de párma
arrêcibi meu rivá,
que foi siguindo e cantando,
inté n’um capão de mato
o seu vurto se apagá.

No hora que no sertão
o aribú triste na noite
istende prú toda a terra
as aza cô de arcatrão,
tirei um são na viola,
e lá me fui caminhando
prá festa do seu Pinhé,
nestas corda puntiando.

Vassuncê qué me iscutá
o canto que ia cantando?
Ora, entonce, iscute lá.

Côro

“Que será,
se as muié me dexá?

CANTO

Que será de ti, meu peito,
que saluçando ficou,
dênde que a Xixi da Gróta
treidôra me abandonou!!

Coro

Que será,
se as muié me dexá?

CANTO

Que será de ti, viola,
tu, que já tanto chorou, se eu te abandoná, viola,
cumo ela me abandonou?!

Coro

Que será,
se as muié me dexá?

CANTO

Que será de ti, minh’arma,
se eu dexá de sê quem sou?!
Que será de ti, sôdade?!
Que será de minha dô?!

Coro

Que será,
se uma muié me amá?

Quando cheguei na portêra,
o sinhô Juca Cumbúca
já táva im pé, me isperando,
cum as barba de bóde macho.
Ante de intrá na tronquêra,
lavei os pé no riacho,
no capinzá inxuguei,
a mão do cabra apertei,
e quando na chôca intrei,
cum a vióla toda catita,
toda rosada de fita,
n’uma tuada bunita,
o noivo e a noiva sarvei.

CANTO

“Sarve os dôno desta casa,
sarve o seu Pédro Pinhé!...
Sarve o noivo e os pái da noiva,
que tem nôme de Isabé.
Sarve todo os cunvidado,
que vêio aqui prá forgá.

Sarve esse grande violêro,
João Cumbúca, meu rivá!
Deos estêje nesta casa
prá nós tudo abençuá”.

Antonio Burro, um tropêro,
me dando n’uma canéca
três dêdo daquela aguinha
dos verde canaviá,
arrepitiu lá cum os outro:
— Prá nós tudo abençuá.

Entonce peguei no pinho,
e fui intrando a cantá.

CORO

“Eh! Bambêra!... Eh! Bambará!...
Meu coração tá sambando,
cumo um cravão a quêmá!
Quando a lua vem nacenio,
tômbêm samba o parmitá!

CORO

Eh! Bambêra!... Eh! Bambará!

CANTO

Óia a luz das estrelinha,
lá no céo tudo a briá!
É o Sinhô qué tá sambando,
e as estrela — a puêra a avuá!

CORO

“Eh! Bambêra!... Eh! Bambará!...

As caboquinha iscundia
as carinha prá se ri!...
Vancê já sábe o que era!!
— Era esta cara de môno,
— meu carão de sucuri!

Agora o que eu mais senti
foi quando vi meu rivá,
que era um cabrócha bunito,
cumigo se adverti.

Mas porêm... dexêmo lá,
que quem tem bôca é pra ri.

Pedro Pinhé, um cafuzo,
cum uma cô de porco assádo,
táva todo invrégonhado,
c’um camisão de riscado,
bruza e carça de argudão.
A noiva, que era bunita,
táva assentada do ládo,
cum um vestido derrengado
do mió madapôlão.

Prú viá de tá carçado,
dênde a minhã, seu Pinhé,
pra pudê sambá c’um a noiva,
tirou as bota dos pé.

O casamento, nhá dôna,
tinha gente cumo terra!...
Nunca vi tanta muié!!!
E cada quá, meu patrão,
de fazê um hôme santo
andá de fuça prô chão.

A cafúa do rocêro,
que era um cabra surumbamba,
táva cheia dos vizinho,
dos hôme e mais das muié
que vinhêro de dez legua,
prá dá de perna no samba.

A Verdiana, a Quininha,
a Imbê Corôa, a Chiquinha,
a êrmã da noiva, uma onça
chamada Maria Rita...
Seu capitão!... Seu doutô!...
Nhô moço!... Seu coroné!...
Quanta cabôca bunita!
Prá se sambá toda a noite
tinha inté muié de sóbra!
Nhá dôna!... a Maria Rita
era muié que, sambando,
ficava chêrando a cobra!
Mas porém a férmuzura,
a dôna daquela festa,
era Ela!... Era a Inhatúca,
que andava tirando linha
cum o tá de Juca Cambúca!
Eu juro prú Santo Antonio!
Quando avistei o demonio
da Inhatúca, aquela frô,
o juramento, nhá dôna,
c’um tiro dos óio dela,
caiu morto, e dispenado
cumo um tiê-sangue istrépado
cum o tiro d’um caçadô.

Outro chamêgo danado!...
Outra paxão, seu doutô!

Inhatúca éra fermosa
prá dá cabo d’um cristão!
Arta, arisca, quando andava,
vassuncê via uma êma,
andando pulo sertão.
A bôca, rasgada e rôxa,
quando abria prá falá,
ja não paricia bôca!...
Paricia, toda aberta,
a chaga de Jesú Cristo
na frô do maracujá!
Se derramava no samba,
cumo a fulô da canéla
se abrindo dento dos ramo,
e cum os cabelo pintiado,
cumo a corôa amarela
do peito dos gaturamo!
Cum a camizinha mimosa,
a sáia sarapintada
d’umas ramáge de rosa
e cum os cabelo caido,
quando sambava, ispaiva
um ôrôma de gêma de ôvo,
um chêro de pano novo,
uma catinga chêrosa
da chita do seu vestido!

Ai, nhá dôna!... Ai, nhá dôninha!...
Vassuncê não sabe, não!...
Só quem sabe é meu patrão!...
— Um chêro de chita nova
é uma coisa dos diabo,
que faz má prô coração!

Arta noite, quando o galo,
lá nas mata saluçou,
meu rivá se alevantou,
e eu tômbêm me alevantei.
Ele a viola temperou:
eu a viola temperei:
n’um banco ele se assentou:
eu n’um baú me assentei:
foi ele quem cumeçou:
eu com a arresposta isperei.

Foi ansim que ele cantou.

CANTO

JUCA CUMBUCA

— Tempéra a tua viola,
— que a minha já temperei!
— Eu devo cantá prêmêro,
— pruquê te disafiei.

MACACÃO

“Eu venho de duas legua,
“prá via do teu chamado
“Vim cumpri as tuas órde,
“que eu sempe fora bem criado.

CUMBUCA

— Tu vêio de duas legua,
— caminhando, sempe a pé!!...
— Tu já tá véio e cansado!...
— Descansa, se tu quizé.

MACACÃO

“Sessenta e sete já tenho,
“mas porêm eu te agaranto
“que, se uma muié mandasse,
“eu caminhava outro tanto.

CUMBUCA

— Já fico te cunhecendo,
— cumo um véio proziadô.
— Eu nunca fui caminhêro,
— sou violêro e cantadô.

MACACÃO

“Se sou véio e tenho próza,
“não vim aqui prá prózá!
“Abre o peito e sórta o verso
“e vâmo as conta ajustá.
“Não sou d’aqui desta terra!
“Sou lá das Mina Gerá!...

CUMBUCA

— Eu nunca te pedi nada,
— pr’agora tú vim cobrá!...
— Se as conta é feita cum os verso,
— tu tem munto que pagá
— Eu já te disse, cabôco,
— que eu sou fio do Ceará!

MACACÃO

“Tudo o que eu perdê te pago!
“Vâmo lá!... Dêxa de chôro!
“Na cabeça eu trago munto
“dinhêro, se o verso é ouro.

CUMBUCA

— Dexa de próza, Minêro,
— váe cantá c’os aribú,
— que eu não vou cantá cum hôme
— fêio e véio, cumo tu!

MACACÃO

“Que tem a fiziúlústria
“cum a nossa impruvisação?!
“O feio véve na cara!...
“E o verso, no coração!

CUMBUCA

— Quem é que vê, sem tê pena,
— um galo véio brigando
— c’um galarote que agora
— os dois ferrão vem botando?

MACACÃO

“Tu tá falando a verdade!...
“Tu não tá mintindo, não!...
“Tu tem crista de frangote!...
“Cuidádo cum os esporão!...

CUMBUCA

— Se a briga é só cum as viola,
— do esporão nõo me arrecéio.
— Com um frango canta outro frango:
— c’um galo véio, — outro véio.

MACACÃO

“Quando é musgo, um galo musgo,
“imquantó a voz não perdê,
“só c’um outro galo musgo
“é que pôde se batê!

CUMBUCA

— Tú póde insurtá, Minêro,
— que hôme véio eu não dizánco!
— Eu tenho os cabelo preto!...
— Tu só tem cabelo branco!...

MACACÃO

“Qué dizê que essa cabeça
“não tem luz prá inluminá!...
“E a minha ficou tão branca,
“que inté parece o luá!

CUMBUCA

— A véice é cumo a lua,
— que tem a luz munto fria!
— E a mocidade, Minêro,
— é a luz do Só, que é do dia.

MACACÃO

— Seu bobaião!... Me arresponda: —
— quando o Só cumeça a ardê?!
— É quáge à boca da noite,
— quando tá quáge a morrê!!

CUMBUCA

— O coração é a viola
— do peito dos violêro!...
— E o teu coração, cabôco,
— tem quáge oitenta janêro!

MACACÃO

“Tem quáge oitenta janêro
“e tá quente, cumo o Só!
“A viola, quando tá véia,
“é quando fica mió.

CUMBUCA

— Cabôco!... Dêxa de próza!...
— Dêxa de próza, Minêro!...
— Eu sei que o teu coração
— é um galo véio e banzêro!...

MACACÃO

“Mas porêm, vendo um franga,
“bate as aza no polêro!...
“Canta, cumo um galo novo,
“vendo um outro no terrêro!

CUMBUCA

— Tu tá perdendo o teu tempo,
— e as muié já qué sambá!
— Nhatúca é uma frô bunita,
— que não é pra tu chêrá!

MACACÃO

“Sei que Inhatúca é uma rosa!...
“Sei que tu é um bêja-frô!...
“Sei que eu sou um pásso véio!!!
“Um sabiá cautadô!!
“E a frô só guarda, serena,
“a doçura do seu mé
“prô pásso rico de pena,
“prô bêja-frô, tão galante,
“que é pobre, cumo um briante,
“e é um burro, cumo tu é!”

No fim deste pé de verso,
sortando uma gargaiada,
o violêro, o seu Cumbuca,
que era pobre de cabeça,
mas, porém, rico de perna,
lá foi sambá c’um Inhatúca.

Mangando da minha cara,
cutucando uma nas outra,
de mim se ria as muié!
Só duas, seu coroné,
duas muié, munto fêia,
parece que não se riu.

A móde que um pingo d’agua
inté dos óio caiu!!

O samba istórou e, entonce,
intrando naquela hora
uma prução de violéro
acumpanhando um gaitêro,
cumeçou todo a tocá.

Não tinha mais que isperá!

Proveitei a barafunda
daquela intrada dos musgo,
prá pudê me arritirá.

Quando já táva lá fóra,
e, pula aberta dos mato,
eu vi a rosa Inhatúca
cum o bêja-frô a sambá,
sinti ansim cumo um ingúio
prá querê me sufócá.

Pulas fôia do ispinhêro
que vinha aos pouco se abrindo,
podia logo se vê
que a minhã não táva longe...
Não tardava a amanhecê.

No minguante àquela hora,
no cacurúto da serra,
um fiapinho da lua,
munto fininho... fininho,
nacia cumo uma fôia
d’arguma rosa amarela,
que vêio se disfoiando
lá do céo, pulos caminho!!...

Pulo prêmêro suspiro
que a lua dáva prôs mato
daquela serra, a nacê,
supriquei a Deos, de juêio,
que eu ficasse cégo, cégo,
se eu dêxásse mais um dia
uma muié me vencê!
Na tarde daquele dia
dei cumigo de viage
prás terra da Paraíba...
lá prôs sertão... já se vê.

Mas porêm... já tôu cansado
de falá, seu capitão.

Peço agora prémissão
prá vassuncês me isperá
um tiquinho, inquanto eu vou
c’úm trago de manduréba
os grugumio móiá,
prá despois, cum mais corage,
entonce cóntinuá.

II

No dia de Santo Antonio,
eu cheguei na Paraíba,
que é a terra dos coquerá.

Quanta morena xirúba,
que inté os óio da gente
duia, de tanto óia,
eu vi im Campina Grande,
Itabaiana e Pombá!

Sindóca!! Lulú!... Frôzinha!..

Pul’essas três cabrocinha
o coração andou mêmo
n’um disispêro imbeiçado!
Mas porêm, patrão!... Cum Deos
nem prú brinquedo se brinca,
que o juramento é sagrado!
Patrão!... Meu Patrão!... A gente!....
Sem querê!... Um dia!... Sente!...

É a tal história, patrão!...

Deos do céo é munto bão!...

Vêje só!!... N’uma treição...
n’um instantinho... n’um momento,
o amô varando este peito,
deu cabo do juramento
e iscurraçou a rézão!!

Agora, diga, arresponda: —
que curpa eu tenho, patrão?!

Perto de Campina Grande,
foi que eu vi essa cabôca,
que tinha o nome de Isbéla!

Não foi Deos quem me cegou!...

Foi ela, patrão!... Foi ela!!

A Isbéla, o diacho moreno,
já passava dos cincoenta
bem puxado, sim, sinhô!!
Já tinha os cabelo branco,
cumo a frô da laranjêrá!
Mas porêm era sortêra!...
Sortêra, sim, seu doutô!...

Essa matintapêrêra
só o Capêta é que inventou!

Era um dia de função,
uma bautizado, na casa
do Chico da Encarnação.

As muié, no copiá,
paricia um frumiguêro,
que a chuva vem assanhá!
Quando uma se desmanchava,
no côco a redôpiá,
a lua no céo parava,
e lá do céu atirava
suas rosa de luá!

Meu patrão!... Eu pintiava
os cabelo da viola,
cum tanto carinho e amô,
e a cabôca nem me óiava,
nem falava, nem sambava!...
Táva triste!... Sempe triste!...
Sempe triste, sim, sinhô!!

Vassuncê qué vê, nhá dona,
um quebranto arrenegado,
que mata e que não tem cúra!?
É um hômem criá chamêgo
pu’uma muié madura,
que um dia foi tão férmosa,
que inté as garra do tempo
arrespeita a férmuzura!!!

Sube despôis, seu doutô,
que ela amava um cangacêro,
que se foi d’aquelas terra
e nunca mais lá voltou.

A cabeça toda branca
prá banda do coração
cumo uma frô discaindo,
paricia ansim tão branca,
a frô da noite se abrindo!

A cara, cheia das ruga
dos ano, que não perdôa,
parecia uma lagoa,
quando o ventinho da tarde,
cum a frô das água brincando,
passa pula frô das água,
e as água váe inrugando.

Nhá dôna, a cabôcla Isbéla
tinha a péle tão chêrosa,
que paricia a mangaba
já passada de madura,
que é quando tá mais gostosa!

Quando falava, nhô moço,
cantava, ansim como canta,
de tarde, chamando chuva,
lá nos mato, os zabelê!

E a bôca, e a bôca, nhá dona,
que paricia um suspiro,
que táva sempe a gemê,
e cumo aquele bêjo,
da noite bêjando a ôróra,
quando aminhéce a chové.

Os dois óio da serrana
era duas rosa murcha,
que despois de munto tempo
a gente incontra no fundo
d’um baú, cumo guardou,
mas porém arrecendendo
um chêro sêco de morte,
que tarvez sêje inda um sonho
da mocidade da frô!

Já vinha nacendo o dia,
quando, triste, ela saia
da festa, prá casa dela!
Era triste, mas porêm
toda alegria da festa
era a tristeza de Isbéla!!

Saiu sozinha! Eu, sozinho,
lá me fui pulos caminho,
derramando na vióla
esta tuada, atraz dela!

CANTO

“Teu rosto chêra,
cunho um gáio de alicrim!
Tu é facêra!...
Tu qué dá cabô de mim!...

Tu é mimosa,
cabôca, meu bem!
Frô mais chêrosa
no mundo não tem!!...
Vem! Amachúca!... Amachúca
no chão,
meu coração!

Eu sou juruti perdida,
gemendo de amô,
cá no meu sertão!!
Minh’arma ficou firida,
pruquê tu firiu
este meu coração!

Chora a viola,
como chora a ribaçã
quando consola
a tristeza da minhã!

Tu é mimosa,
cabôca, meu bem!
Frô mais chêrosa
no mundo não tem!...
Vem! amachúca!... Amachúca
no chão,
meu coração!”

Eu só dêxei de cantá,
quando ela im casa chegou!

A casa onde ela morava,
dava a gente uma alembrança
d’um brinquedo de criança.

N’uma bibóca da serra,
bêjada pulo um regato,
paricia aquela casa
uma frô feita de terra,
sonhando dento dos mato.

Passando as mãos pulas trança
da cabelêra de páia
do ranchinho de sapê,
um assoprozinho da aráge
cantava pulas foiáge,
cumo um saci-sêrêrê.

Isbéla, abrindo a portinha
daquela casa pequena,
se assumiu destes meus óio,
cumo, de longe, um adeus,
sacudindo as suas pena.

Ai, véia dos meus pecado!
Garrei de novo o insturmento,
varejei pula portêra,
e, n’uma pedra assentado,
debaxo das aza verde
d’uma jaboticabêra,
disfôiéi toda a minh’arma
neste acalanto maguado.

CANTO

“Cumo tão férmosa e linda
a minhã vem a rompê!
Abre a jinela da choça!...
Vem um adeus me dizê!...
Cumo tão férmosa e linda
a minhã vem a rompê!

N’uma minhã, tão cherosa,
cum os passarinho a brincá,
cumo é gostoso uma bôca
cum sintimento bejá!
N’uma minhã tão férmosa,
cum os passarinho a cantá!!”

No fim deste pé de verso,
ela chegando a jinela,
vrêmeia, cumo uma rosa,
disse ansim: — Que cara feia
n’uma minhã tão férmosa!!

Na ingreja daqueles mato,
naquela minhã cherosa,
não jurei, pruquê eu sabia
não sê percizo jurá!

Era a úrtima muié
que me fazia pená!
Agora nem o Tinhoso
me fazia neste mundo
outra vez me achamegá!

Setenta e nove janêro
carregava eu neste peito,
que é um véio jiquitibá.
Na noite daquele dia,
eu dêxei Campina Grande,
e prós sertão da Bahia
intrei logo a viajá.

Seu doutô, quantos chamêgo,
quantas paxão de arrilia
pulas cabôca dengosa
de Sergipe, Isprito Santo,
e essa terra da aligria
essa mulata sestrosa,
que é a sua terra: a Bahia!

Seu coroné: minha históra
nunca mais acabaria.

Abasta só li contá
a paxão mais disgraçada
que me fez sofrê patrão,
dez ano n’uma prizão!!!

Fazia duas sumana
que este seu Braz Macacão
tinha chegado do Norte
das viage lá dos sertão.
Quando se deu este caso,
já táva perto de Mina,
na minha terra, patrão.

Magine que esta cabeça
já táva toda isfiápada
de fiapo de argudão!

Agora, iscute vancê.

Foi num dia de Sant’Anna,
na chôça d’um caçadô:
chamado — Manué Praquê.

Rébéca, fráuta, pandêro,
crarinêta, violão,
um bandão de cavaquinho,
uma prução de violêro,
um ófiscride, um gaitêro,
que era um cabra mêmo bão;
caxambú, samba do Norte,
miúdinho, catêrêtê,
nada fartava na festa
do caçadô — seu Praquê.

Outro amô!... E o que é pió,
outro amô discunxavado!...

Mas porêm... quem o curpado?!

Deos!... Só Deos, seu capitão!

Cumo Deos, sendo tão bão
faz uma cabeça branca
prá servi de mangação?!

Eu li digo, sem sobrôço,
a rézão, seu coroné: —
é pruquê Deos morreu moço,
munto moço e munto louro,
cum os cabelo cô de ouro,
sem amá uma muié!

E alem disto, é uma verdade
que eu já disse e que arrepito:
Jesus, o fio de Deos,
foi hôme e hôme bonito.
Pulas chaves que São Pedro
traz infiada nas mão,
eu juro que não quebrava
o juramento sagrado,
se Deos não tivesse feito,
aqui, dentro deste peito,
esta viola de carne,
que se chama coração.

Um hôme, cum oitenta ano,
que tem a “viola” incordoada,
sem uma corda quebrada,
cumo o seu Braz Macacão,
pôde jurá toda a vida
prú tudo que ele quizé,
que o dôno dessa “viola”
não é Deos nem o Capêta!
É o diabo da muié!!!

Naquele catêretê,
cum o cantadô mais falado
me istripei n’um desafio
do Morro da Cataláia,
que é lá no Estado do Rio.
Esse cabra adoradô
da fermuzura, cumo eu,
se chamava — Zé Xôfreu!

Sintindo agora outro amô,
e vendo, seu capitão,
que eu táva discunjurado,
perdido, sem sarvação,
me garrei cum a Mãe de Cristo,
cum a Santa Virge Maria,
cumo se fosse um murcêgo!
Quando entra rabo de saia,
não se pede a Jesú Cristo,
que andou aqui neste mundo,
sem tê sintido um chamêgo!!

Ói!... A Virge perdoôu!

E eu li juro, sim, sinhô,
que esse perdão não ispanta!

Im vez de Santa Maria,
o nôme dela era ansim,
meu patrão: Maria Santa!

Zê Xofreu tinha vinte ano
e eu tinha setenta e nóve!
Agora, prá cumpará
a viola dele cum a minba,
era cumo uma andorinha,
cantando cum um sabiá!

Era férmoso e impenado,
mas porém, im três minuto,
despois de abri a garganta,
dizendo uns verso abobado,
eu disse um verso baxinho,
mas porêm, tão acertado,
que o mazarcão tarambéla,
dexando a viola do lado,
fugiu, desavregonhado,
e lá foi sambá cum ela!

Os musgo entonce gritando: —
“Fóra!... Fóra o trapantão!...”
introu tocando a rébéca,
a crarinêta, o ôfiscride,
a fráuta, a gaita sapéca,
im louvô do Macacão!

As muié não tinha uvido
aquele verso, patrão!
No meio de tantas cara,
não tinha uma cara feia!...
Vancê me intende!... Apois não!

Agora, cum os réco-réco,
a gaita, a fráuta, as viola,
e os cavaquinho pachóla,
rolava o cateretê!

Maria Santa, que ainda
não tinha dezáseis ano,
currupiava e sambava,
que mecê nem póde crê!

Não era ainda galinha!...
Já não era mais pintiunha!...
Era!... Era!. . Seu doutô!...
(Cum perdão de quem me ouve!...)
era uma franga, que tava
já se aninhando prá pô!

Quando eu vi aqueles óio,
não sei dizê, não, sinhô,
se o que eu sentia aqui dento
era friage ou calô!
Apois, dento deste peito,
o coração, a batê,
táva ansim cumo uma estrela,
quando tem febre, a tremê.

Dento daqueles dois óio,
qué vancé creia, qué não,
cantava todos os pásso,
que tem no Norte e que canta
nas mata do meu sertão.

Nhô moço!... Seu capitão!...
A dô mais grande, a disgraça
da dô de todas as dô,
é um véio criá chamêgo
pul’uma cabrochazinha,
cumo essa Maria Santa,
que a minh’arma isbandaiou!

Nhá dôna!... A Maria Santa
de tudo era o — ai Jesus!
C’um vestidinho incarnado
e os braço abérto prôs lado,
taliquá feita uma cruz,
ia sambando e dêxando
no lugá que ela passava,
— um chêro quente de fôgo
— e um gôsto fresco de luz.

Nhá dôna, aqueles cabêlo,
que tinha tanta frêscura,
era mais preto, nhá dôna,
que o fundo das sipurtura!

Vassuncê não via a boca!
Apois, naquele lugá,
só se via, noite e dia,
uma coivára a quêmá!

E ela ia!... ia!... ia!...
E, quando já se assumia!...
quando, longe, se perdia,
lá, no terrêro, a sambá,
parecia que a cabôca
era ansim cumo um suspiro
que sáe do peito da gente,
e vae-se embóra, a avuá!...

Déus do Céo! Núm intrevisto,
Xinguei Jesus, Jesus Cristo
Nosso Pai, Nosso Sinhô
e logo n’outro intrevisto,
me agarrei na siricáia
do Santo Rabo de saia
da Santa Virge Maria,
que é Nossa Mãe, Seu doutô!!!
Ela, que é Mãe, é que cura
toda as duença do Amô!

Entonce, rasguei o peito,
e comecei a cantá.

CANTO

“Bôca de estrela,
que Deos fez só prá briá
Arma de rosa,
que tem rosa inté no oiá!

CORO

Uê!.. Uô!... Uê!... Uá!...
Arma de rosa,
que tem rosa inté no óiá!

CANTO

Bôca vremêia, cumo as pena do tiê!...
Nariz de frô!... Coração de Caxinguelê!...

CORO

Uá!.. Uô!... Uá!... Uê!...
Bôca vremêia, cumo as pena do tié!

CANTO

Corpo de abêia, cum dois pé de arapuá!...
Papo de rola, quando come inté fartá!...

CORO

Uê!.. Uô!... Uê!... Uá!...
Ôiá de onça e coração de sabiá”

O Zé Xôfrêu, inciumado,
cum os ôio disbugaiádo,
passou as mão no tupéte
dos cabelo pixãim,
pegou no pinho, e o safado
cumeçou cantando ansim: —

“Violêro bão é o violêro
da Fazenda!
Quando o patrão tá im casa,
o violêro tá na venda.”

O cabra teve uma sarva
de párma das caboquonha,
e dos hôme dansadô!
Maria Santa arrancou
a frô que tinha no peito,
e deu prô cabra a fulô.

Os musgo entonce gritando:
“ Macacão! Eh! Macacão!!...
“Sustenta agora o motivo!...
“Segura esse mafião!...”

Eu, entonce, arrespondi: —

CANTO

“Violêro bão é o que só sabe dansá,
— e se vai metê na venda,
prá mió se incachaçá”.

Agora, sim, meu patrão!
O Zé Xôfrêu, incobrado,
cum os óio dispipocado,
puxou de dento do couro
a cala bôca ispeiáda,
prá me dá uma fisgada!

Vendo a morte ali, presente,
eu fiz prô bicho uma figa,
e dando um pulo prá frente,
miti-lhe o caxêrenguêngue
na paquêra da barriga!

Matei o cabra, seu môço,
pulo acaso!... Sem querê!...

Matei um hôme, nhá dona,
prú via de quê? De quê?!

Do mardito galo véio,
do coração martratado,
cum perdão de vassuncê!!

Andei três mez iscundido,
nos côvôado das serra,
nas gróta iscura, nas terra
de dento dos capuerão,
inté que um dia fui prezo
pulos gafônha, os méganha,
prá sê trancado dez ano
na inháca d’uma prizão.

Peço agora prémissão
prá não falá nesse tempo
que eu tive lá na prizão.

Isso já não tem valô!...

Seu doutô faça de conta
que dez ano já passou!!

Faça de conta, outra vez,
que eu, honte, de minhãzinha,
despois da pena cumprida,
me alibertei do xadrez.

Lá do xadrez, da bibóca,
regressei prá minha terra.
a serra de Ibitipóca.

Ai! Despois de tantos ano,
eu ia matá, nhã moço,
a afobação da sôdade
de vê aqueles caminho
cumo o cavalo, viajando,
cum três dias de secura,
mata a sêde na frescura
das água d’um riachinho!

Tinha dexádo a viola
cum o Chico Tinguá, o pái
do Zé Coró — meu cumpade.
Prá falá toda a verdade,
seu coroné, meu cumpade
me oiôu, e não cunheceu!

Vêje cumo vortei eu!!

Despois de muntos abraço,
eu preguntei: — Quéde o Chico? —
Cumpáde disse: “Morreu!”
— E a Sarafina? A Caxiga? —
“Serafina tá casada!
“A outra morreu prú móde
“dum nó que deu na barriga!”
— Joaquim dos Santo inda véve?
—Que é feito de Zé Mundipra?
“Joaquim dos Santo morreu
“de coisa feita” — E o outro? —
“Morreu prú via da ezipra”.

Nisto, chegando o Rapoza,
véio, trôpo e já sem dente,
que nem um cão paricia,
eu inguli as prégunta
que prô cumpade fazia.

Cumpade entonce me vendo
que eu táva triste, falou:
“Tu hoje qué hi n’um samba
“onde tem muntas muié,
“im casa do Chico Frô?”
— Vai buscá minha viola —
arrespondi prô cumpade,
cumo quem nada iscutou.

Muié!!? Muié!? Seu doutô!...
Isso é lá cum o coração!...
Ele é quem sabe essas coisa
e lá se intende com a dô
Quando o cumpade vortou
cum a viola toda cinzada
de poeira e teia de aranha,
sunti uma dô tamanha,
que inté nem posso ixpricá!

Chico Tinguá me istranhava!
Nunca me viu eu chorá!

Naqueles tempo, nhá dona,
cúm as corda daquele pinho,
e os grugumio moiando
de vez im quando nó suco
dos verde canaviá,
discunjuntei munto cabra
dos sertão da Paraíba,
de Pernambuco e Ceará!

De minhã, minha viola,
alegre e passarinhêra,
cantava que paricia
essa cabôca facêra
dos mato: — a Maria é dia.
Se era de tarde, fingia
a sabiá laranjêra
que chóra uma tarde intêra,
gemendo, que mete dó!
Agora, à boca da noite,
quando o Só se adispedia,
nhá dona, as corda gimia,
cumo a inhambú chororó!

Mas porêm, naquelas noite,
cumo só tem minha terra,
quando a lua, lá na serra,
chêrando a muié nacia,
não sei se as corda cantáva,
se chorava ou saluçava,
pruquê, patrão, a viola,
vendo a lua... indoidicia!

Prá matá tanta sôdade,
de juêio, naquela hora,
eu dei um bêjo na boca
da viola, seu capitão!
O dia vinha morrendo
im todo aquele sertão!

Lá, prás banda adonde o Só
merguiôu, quêmando o incenso
das nuve branca do céo,
na úrtima Ave-Maria,
parece que aqueles monte,
ansim, de pé, cumo táva,
ispiava, óiando arguem
, arguem que os monte isperava,
e àquela não via!!
Sempe a muié, meu patrão!

Apois, quem era a muié,
que im riba daquele monte
tão fermosa aparicia!?

Era morena e parece
que táva um pouco inciúmada,
pruquê trimia... trimia!

Quem era, patrão, quem era?!

Não sabe? — A Estrela da tarde,
que munto longe nacia!

Há tanto tempo que o céo
do meu sertão não me via!

Naquela noite o iscampado
lá do céo do meu sertão
ficou de todos os lado,
todo crivado, crivado
de tanta inluminação,
que eu li juro, meu patrão,
pula minha sarvação,
que dêndê que eu me intendi,
um céo tão inluminado,
tãi estrelado, estrelado,
como aquele, eu nunca vi!!!

Tinha tanta, tanta estrela,
tanta pontinha de véla
lá no céo, todo acendido,
que eu pensei, naquela noite,
que aquilo tudo era o interro
de Deos, que tinha morrido!

Apois foi naquela noite
que eu me arritirei prá sempe
das terra do meu sertão!

E aqui findou toda a históra
do grande Braz Macacão.

Se eu hoje ficasse cégo,
eu li dizia, patrão,
um a um, todos os nome
dos sertão prú donde andei,
só pulo chêro das árve,
pulas cunversa dos pásso,
que tanta vez iscutei.
Pulo toque dos violêro,
triste, alegre ou gemedô,
eu dizia o nome todo
do violêro ou cantadô.

Se eu bejásse agora mêmo
uma só daquelas boca,
despois do bejo, eu dizia
todo o nome das cabôca.

E pulo bêjo chêroso,
eu havéra de dizê,
cum os dois óio bem tapado,
o dia, a hora e os mato
prú donde ela tinha andado!

Sempe a muié!... A muié!...

Vancê sabe que essa bicha
não dêxa o diabo dum hôme
neste mundo assucégá!...
Ela!... A muié, seu doutô,
é taliquá cumo o Só,
que vae seguindo cum a gente
prá toda parte onde vá.

Meu patrão!... Seu coroné!...
Nhô moço!... E mais seu doutô!...
Nhá dona!... Seu capitão!...

Vassuncês diga o que é
um coração de hôme véio,
que quanto mais véio fica,
mais aprecêia a muié!

Vassunscês ri?! Falo séro.

O coração do ôme véio
é um burro véio trotando,
d’aqui, dali trupicando
na derradêra viage,
que faz lá prú çumitéro,
comendo pulos caminho
uns resto seco de espinho
que vae topando no chão,
bebendo uns pingo de orváio
dos óio — as duas cacimba
da fonte do coração!...

Im riba d’uma cangáia,
duas muié carregando
cum o pezo todo da idade:
uma, já morta: a Esperança,
outra, inda viva: a Sôdade!...

Inté caí cum a Esperança
e o cadáve da Sôdade
e os fruto podre dos ano
que ele leva nos jacá,
prá arrecebê, afiná,
o bejo de amô da boca
da namorada dos véio,
que toda magua alivia/
que toda a pena consola!...
A Morte, patrão, a Morte!!
Essa cabôca fié!!
Muda!... Surda!... Cega e fria!
Que ao despois de uma viola,
é a mais mió das muié...


VOCABULÁRIO



Tatajuba — planta urticácea.
Arreinação — arrelia.
Surúba — valentão.
Xumbreguêra — bebedeira.
Timbú — animal feio e mal cheiroso.
Caititú — porco selvagem.
Recortado, caxambú, cateretê — danças.
Pimpaião — galante.
Piquira — cavalo pequeno e de raça.
Barbatimão — árvore leguminosa.
Capêta — diabo.
Perrêngue — teimoso, desordeiro.
Fogo-pagou — pequena juriti, que, cantando, diz essas duas palavras.
Reis — rei.
Sarambé — parvo.
Meganha — soldado.
Tuím e pixãim — cabelo de preto.
Róço — orgulho.
Tronquêra — cancela.
Sucurí — cobra venenosa.
Derrengada — esparramada.
Madapolão — morim.
Cafúa — choça.
Tirando linha — namorando.
Banzêro — moleirão, estúpido.
Fiziulustria — fisionomia.
Xirúba — faceiro.
Matintaperêra— ave que canta à noite.
Saci-sererê— ave, cujo canto imita o seu nome.
Tinhoso— diabo.
Mafião— cobarde.
Tarapantão— muito falador.
Arapuá— abelha grande.
Cala-boca— faca.
Caxêrenguêngue— faquinha.
Cavado— cova, buraco.
Capoerão— mata.
Gafonha— soldado.
Inháca— mau cheiro.
Ezipra— erisipela.
Pabola— mentiroso.


ASSOMBRAÇÕES




ASSOMBRAÇÕES

A Raphael Barboza.



Não se ria, meu patrão!
im dia de sexta-fêra,
não se deve andá de noite
nos mato lá do sertão.
Apois, n’uma sexta-fêra,
eu sai cum o Zé Texêra,
um cabôco amarelão
e a cuja muié do dito,
prá sambá, n’uma fonção,
im casa do Piriquito.

A casa ficava longe!

A noite táva mais preta
que um carôço de fejão.

Quando nós ia quebrando
o mato arto da estrada,
nós uvimo um assuvio
prás banda da incruziada.

Era ele!... Eu já sabia!...

Ninguem ansim assuvia
pelos mato, àquelas hora!

Era ele, meu patrão!
Era o isprito do cabôco,
que a génte chama; Caipóra!
Mas porêm o Zê Texêra,
que só queria sambá,
Jurava pulos dois óio
que aquilo tudo era o vento
nas fôia dos matagá.

De repente, a gente isbárra
c’um mardito caititú!

O diacho do cabôquinho
tinha uns óio inda mais preto
do que o rabo do aribú

O Caipóra, meu patrão,
que é o mais grande caçadô,
não é máo!... É muito bão!
Se ele arrecebe um favô
do caçadô do sertão,
não háy caça mais que escape
do tiro do caçadô!

Agora, se o que ele péde,
o caçadô não li dá,
póde atirá, cumo quêra,
que nunca mais caçará.

Apois bem. O cabôquinho
pediu fumo prô Texêra
e, despois, fogo prá mim!

Eu, que táva apreparado,
Abrindo o meu patuá,
dei logo prô renegado
um rôlo de mapinguim.

Quando acendeu o cachimbo,
distampou numa risada,
e lá se foi na carrêra,
prás banda da incruziada.

Se eu não tivesse trazido
fumo e fogo prá acendê,
ele fazia na gente
tanta cósca, tanta cósca,
inté a gente, se rindo
de tanta cósca — morrê!

Nós inda uvia o assuvio
do Caipóra, do Tinhoso,
que lá prá longe se foi,
quando, do mato, tampado,
saiu um bicho afobado,
urrando que nem um boi!

O animá, de quatro pé,
passou prú perto da gente,
n’uma carrêa inferná!
Os berro que ele berrava
inté fazia os cabelo
prá riba se arripiá!

Eu já sabia, patrão,
o que era aquilo!... Apois não!

Vancê não ria, patrão!

Era uma Mula de Pade!

Era o isprito da muié...
da Chica!... A minha cumade,
que as boca lá do sertão
dizia que tinha sido,
im vida (Deos me perdôe!!)
— a muié do Capelão!

Era a cumade virada
n’uma Mula sem Cabeça,
que vinha pinoteando,
sartando, corcoveando,
no meio das babatão!

Cruz im crédo, meu sinhô!
Eu fiz o pulo siná
e rezei uma oração!!

E o diabo da árma penada
lá se foi, dando patada
e urrando, dizimbéstada,
de arrebentá os purmão!...

Não se ria, meu patrão!!
Não se ria, pruquê a históra
não chegou inda no cabo!

A noite de sexta-fêra
é uma noite dos diabo!!
Escute agora, seu moço!

A gente fumo seguindo
pulos caminho móiádo!...
A casa do Piriquito
táva longe inda um bocado.

Eu sentia cá nos bófe
esse frio de pavô,
que toda a arma penada
vae dêxando onde passou.
Eu sempe discunfiei
do Texêra — o amarelão!

O cabôco era amarelo,
cumo a fulô do argudão.
E era certo o que eu pensava
cum o sêsso do coração.
Vancê tá rindo, patrão?!
Vancê ri, pruquê não sabe
que coisa é uma assombração!!!
Ói!... A gente travessava
uma pequena pinguéla,
prá segui pula varêda
do Buraco da Panéla,
quando o Texêra aparou,
e ansim prá nos dois falou:

“Vancês espere um momento,
“que eu vou aqui!... Vórto já”:
E introu no brêdo e se pôs-se,
como um cavalo, a ispojá.
Nú im pêlo, o Zé Texêra,
o raio do curibóca,
si ispaiava pula terra,
taliquá galinha chóca!!

Despois, rompendo dos mato,
fuçando de quatro pé,
meteu os dente, inraivado,
na saia azú da muié!

Ao despois, dando um gemido,
dezimbéstou pulos mato,
que inté os mato assustou!

Foi correndo!... Foi correndo!...
Inté que n’uma baxada,
n’um cacimbão se afundou!

Eu não sabia, patrão,
que o homem que tem a cô
como gente que não come,
vira sempre Lubizôme.

Eu só sei que lás prás tanta,
com um luá munto bunito,
quando o samba táva quente
im casa do Piriquito,
o dia do impalamado
chegou na festa ispantado
óiando e rindo prá gente,
trazendo uns fiapo de pano
da sáia azú da muié
garrado ainda nos dente!

Quando a Maria Naváia
tirou ele prá dansá,
o cabra, a se ganziá,
pulando cumo biscáia
que não se dêxa amuntá,
passando perto d’um hóme
cum os cabelo assaranhado
e uns carrapicho ispetado
na furquia dos bigode,
sempe a samhá, a sambá,
ia sortando atraz dele
uma murrinha de bóde,
que foi um Deos nos acuda
de todo o mundo ispirrá!!!

Vancê póde ri, seu moço,
não crendo no que eu li digo,
jurgando que é brincadêra.
Eu é que não sou mais burro
de andá no meio dos mato,
im noite de sexta-fêra.


VOCABULÁBIO



Caipóra — ente fantástico.
Caititú — mamífero paquiderme.
Patuá — bolsa.
Mapinquim — fumo de rolo.
Tinhoso — o diabo.
Tampado — fechado.
Afobado — anciado.
Mula Sem Cabeça — alma de uma mulher transformada nesse monstro.
Babatão — fogo fátuo.
Sêsso — juízo, pressentimento.
Pinguéla — pau servindo de ponte.
Brêdo — mato.
Caribóca — mestiço.
Desincantado — homem outra vez como era.
Cacimbão — buraco fundo n’um despenhadeiro.
Carrapicho — espinho de várias plantas.
Assaranhado — embaraçado.
Ganziá — mover-se como o ganzá, quando é tocado.


A JUSTIÇA DO CRIME



O criminoso, preso há dois dias, em pleno sertão, é apresentado à autoridade, a quem vai falar, explicando a razão dos seus dois últimos assassinatos.
A JUSTIÇA DO CRIME

A Julio de Moura



Seu doutô: fui prezo ant’honte,
lá perto do Serrradão.
Tenho aqui no cravinóte
onze risco, mas porêm
não sou criminoso, não.
Fui prezo pulos sordado
prú via d’uma traição.

Saberá Vossa Sinhoria,
o sinhô doutô Juiz,
que cada risquinho deste
é uma morte que eu já fiz.
Eu li juro que estas mão
nunca fez fogo prú um hôme,
sem motivo e sem rézão.

Seu doutô: das outras nóve
não paga a pena falá.

Abasta só li contá
a rézão de toda a históra
das duas úrtima morte,
prá vancê pudê julgá.

Seu coroné Chico Inaço
que era um véio sortêrão,
me mandou chamá um dia,
prá mim dá cabo d’um moço,
o fio d’um fazendêro,
prú nome: doutô Janjão.
Se eu fizesse esse trabaio,
Seu moço, o coroné,
dava prá mim cem mir ré!!!!

Prá arrecebê os pataco,
eu tinha de li trazê
uma orêia do veiáco.
Prêmêro (era o meu custume)
eu preguntei, cum arrespeito,
que é que o moço tinha feito.

Seu Chico Inaço porvou
Que Seu Janjão, o doutô,
tinha róbado a Tumaza,
que era uma cria de casa,
munto moça e boazinha;
e, despois d’uns mixirico,
prú via lá... d’umas coisa,
tinha matado a bichinha.

Ao despois de te certeza
que o caso era verdadêro,
fui assuntá cum o moço,
— o fio do fazendêro.
Tive sorte. Eu me isbarrei,
cara a cara cum o canaia,
muntado n’uma biscaia.

O lugá era o mió
pra se fazê o trabáio.

Mais depressa do que um raio,
peguei na camba do freio,
e disse: — Seu moço, desça!...
— Senão levá já dois tiro
— no côvôado da cabeça. —

Seu Janjão, que conheceu
o cabra que li falava,
tremendo, desapiava!

Quando li disse a rézão
pruque eu ia li matá,
o moço caiu de juêio
e cumeçou a chorá.

Ao despois de confessá
que ele tinha feito tudo
que o Coroné me contou,
tremendo, me preguntou
se eu li podia fazê
um outro grande favô...
pagando bem... já se vê.

— Vancê diga — arrespondi
e o bacamarte iscundi.

Entonce o doutô me disse
que o seu Chico, o coroné,
tinha róbado a muié
d’um vaquêro da Fazenda,
que era um hôme tão honrado,
que, no fim de quatro dia,
já tinha sido enterrado.

Me contou que munta gente
do lugá sabia disso:
que a cabôca do vaquêro
prá via d’uma doença,
tinha levado um sumiço!...
E que ele, im lugá de cem
dava duzentos mir ré,
pra matá seu coroné.

— Apois, sim! — disse prú moço.

Ele tirou da cartêra
o papé verde e pintado,
dizendo munto incruado:
“Toma lá!... Isso é prá tu
dá um tiro bem na boca
daquele cabra safado”.

— Vancê têje sem cuidado
— o hôme, im dois os três dia,
— vae atraz de vassuncê.
— Minha palavra tá fixe,
— Mais do que o preto no branco
— de quem prendeu a inscrevê.

— O negôço tá fechado!...
— Pode morrê discansado! —

Mas porêm, quando o mocinho
já ia, sem me intendê,
fazendo infúca cum o corpo,
prá amuntá todo lampinho,
e pula istrada corrê,
eu tirei o bacamarte,
e disse: vancê não segue,
pruquê tômbém vae morrê!

Pum!... Cum um tiro bem certêro,
butei o bicho no chão!

Curtei bem rente uma orêia!...
Imbruei!... E guardei dento
cá do borso do gibão.

Ante de eu hi percurá
seu coroné, quiz sabê
se era mintira ou verdade
aquelas coisa que o moço
disse ante de morrê.

Era verdade, patrão,
o que disse o seu Janjão!

Fui tê cum o seu Chico Inaço,
e disse: — Seu coroné,
— tá aqui a orêia do hôme! —
E ele, rindo, dissi: “Tome!...”
E me deu os cem mir ré!!!

Quando ele ia dando as costa,
satisfeito e impanturrado,
eu garrei no braço dele,
e disse: — Seu Chico Inaço!...
— Vancê tômbem tá curpado!
— O moço me contou tudo,
— tudo, tudo, pulo intêro,
— aquilo que vassuncê
— fez com a muié do vaquêro!
— O crime de vassuncê
— foi prú via de muié!
— Seu coroné me pagou
— prá dá cabo do mocinho
— do seu Janjão, cem mir ré.
— E o moço, cum curpa iguá,
— mas porêm, mais liberá,
— me deu mais!... Me deu duzento,
— prá matá seu coroné... —

Puxando o boca-de-sino,
eu que fui um bom Juiz,
e vancê chama assassino,
dei um tiro tão férmoso,
tão macio e tão gostoso,
que o coroné invisgou
e ali quétinho ficou!
Apois bem. Se o seu doutô
não me jurga um criminoso,
aperte aqui nestas mão!
Se me jurga um assassino,
me mande já prá prizão,
que é só ansim, meu sinhô,
que nós intende a Justicia
lá prás banda do sertão.


VOCABULÁRIO



Biscaia — égua.
Trabaio — o trato, a morte.
Camba do freio — o freio.
Bacamarte — revólver de cano largo e curto.
Papé verde e pintado — o dinheiro, a nota de duzentos mil réis.
Incruado — feroz, cruel.
Preto no branco — a tinta no papel.
Lampinho — galante.
Fazer infúca — fazer tentativa.
Gibão — veste de couro.
Boca de sino — revólver.
Invisgar — cair para o lado.


A MÚSICA DO MORTO




A MÚSICA DO MORTO

A Junquilho Lourival.



Eu vinha do sertão e era o meu guia
um caboclo de gestos altaneiros,
que, segundo ele próprio me dizia,
era a flor dos mais célebres gaiteiros.

Ao passo dos cavalos madraceiros,
a história passional me referia
do seu mestre de canto e de harmonia,
que foi sempre o primeiro entre os primeiros.

O gaiteiro, o seu mestre bem amado,
tinha sido atrozmente desprezado
pela mulher mais linda do sertão.

Fazia muito tempo que morrera,
e a gaita divinal emudecera,
como emudece a voz de um coração
II

Era uma noite astral de primavera!
Noite aromal, de rústica pureza
e tão cheia de luz, que se dissera
que era a Festa Natal da Natureza.

A serra em que eu nasci, lá, bem distante,
se sumia tão meiga e tão veloz!
No caminhar, pausado, mas constante,
nós fugíamos dela e ela, de nós!

Ao sol do meu sertão, que a terra incrua,
já tinha dito adeus, no fim do dia!
Mas o sol, que se foi, deixou-me a lua,
que é o sol argênteo da Melancolia.

O caboclo falava do seu mestre,
sem guardar um momento, um só, de tréguas,
e entre o verdor do matagal silvestre
nós já tínhamos feito bem seis léguas.

De repente, avistei à luz nevada
do clarão do luar suave e etéreo,
os braços de uma cruz, meio inclinada,
como o emblema feral d’um cemitério.

Saltando para o chão, rapidamente,
com a mão esquerda as rédeas segurando,
com a direita, n’um gesto reverente,
o caboclo me disse, a cruz mostrando: —

“Patrão! Pequena pauza permiti!
“Não vos malestareis, certo, comigo
“N’um grabato de terra dorme ali
“meu grande mestre!... O meu saudoso amigo!

“Era um belo rapaz! Era um portento!
“Pois que ninguém, ninguém melhor sabia
“tirar como ele, um som neste instrumento,
“com mais amor, mais arte e melodia.

“Não passo por aqui, sem que, primeiro,
“soluce, nesta gaita dolorida,
“este canto de amor, o derradeiro,
“que ele fez p’ra mulher, que amou na vida”.

E a gaita dedilhando, ali, de bruços,
gemeu, com tanta mágua, que é de crer
que o finado, escutando os seus soluços,
despertasse e chorasse de prazer!

Porque a voz do instrumento apaixonado,
no soluço do eco prolongado,
de longe para nós repercutia,
como se o morto, súbito, acordado,
n’outra sanfona, ao mesmo tom maguado
respondesse da campa em que dormia,
E a golope partimos pela estrada!

Mas, no deserto da amplidão sonora,
por muito tempo, ainda, ouvi magüada,
a voz da gaita, pela noite afora!!

........................................

A lua, em que o sertão todo se espelha,
transmontava no albor da extrema-unção,
como transmonta uma saudade velha
no horizonte sem fim da coração.
(OFERTÓRIO)

Minh’alma, que por ti soluça e chora
o fel de um pranto amargo e delirante,
inda agora repete, a todo o instante,
estes versos que eu vou dizer-te agora.

— Aquela voz monótona e chorona
da gaita do gaiteiro, dolorida,
era tal qual essa outra voz sentida
do humano coração, que é uma sanfona,
e vive, — quando o Amor, triste, o abandona,
quando a Esperança morre, emurchecida,
prosseguindo o seu longo itinerário,
no deserto do peito solitário,
— a sanfonar a música da vida.

(1) — Os enterros no sertão eram feitos a rede.

(*) — O sertanejo refere-se ao poema Alma em Flor, do ilustre acadêmico.

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