quinta-feira, 27 de julho de 2006

Jandira

A vida nunca mais seria a mesma!
Ele sabia bem disso e tentava, de qualquer jeito, recomeçar.
Um novo começo era muito difícil, mas se fazia urgente e inevitável.
Recebera um último aviso de seu avô, morto há quase vinte anos.
Era vital para todos, a sua mudança.
O avô era forte, impressionantemente forte e, por isso, respeitado.
Todas as entidades o tinham como um espírito de luz, um guerreiro.
Filho de Xangô, não admitia injustiças, nem perdoava-as.
Vander fora criado pelas tias, duas solteironas frágeis e magricelas, quase tísicas e pelo avô, forte e marcante.
Na mansão de Botafogo, na rua São Clemente, brincava entre as árvores do pomar.
A velha mangueira e a jabuticabeira eram as prediletas. Doces frutos e sabor de infância.
Mas, com a morte de seu avô, a situação econômica da família foi por água abaixo.
Da mãe, somente as notícias, vagas lembranças de um contato no final da tarde de um sábado e a foto, bela foto de uma mulher com os olhos perdidos.
No Hospital, o nome dela estava arquivado para sempre: esquizofrenia.
De resto, a proximidade do verão trazia as moças bonitas e as suas saias... Adolescente tímido, sem amigos, ensimesmado. “Outro esquizofrênico”,pensavam as tias.
Mas não, era tímido, somente isso.
Daquela timidez voraz que impede o contato com estranhos e limita a monossilábicos diálogos com os mais próximos.
Timidez confundida com incapacidade, mas o tempo provaria o contrário.
Recebera de herança da mãe, um enorme desejo de liberdade, olhando para o céu, onde a imaginava, deu para caminhar a esmo pela praia.
A enseada de Botafogo, lá pelas cinco, seis horas da manhã, tinha um fiel companheiro.
As ondas quebrando nas pernas secas, magras, ossudas.
Morto o avô, nada restou de Botafogo, somente as lembranças.
Quintino, o trem, a estação...
A escola Quinze, onde outros meninos, abandonados e órfãos faziam companhia a Vander.
O temperamento mudava pouco a pouco.
Excelente aluno, começara a sobressair-se entre os outros. Isso gerava admiração e revolta.
Ambas eram motivos para aprender a se defender. Os pescoções e os tapas, os pontapés, a navalha percorrendo a carne, o colega morto.
A vida seguindo entre as grades e a necessidade. Fome e espancamento.
Dezoito anos, hora de sair.
Só, sem mais ninguém, resolveu conhecer a mãe e se reencontrar com o avô.
Paulo, colega de escola, irmão de Jandira, bela Jandira.
Com eles, passou a freqüentar um Centro Espírita em Cascadura.
O avô e a mãe, volta e meia apareciam, em meio a um turbilhão de espíritos de diversos matizes.
Mãe louca, mãe boa, mãe.
Agora o avô, não. Esse era altivo e rabugento.
Não gostara de saber que o rapaz estava envolvido em pequenos furtos, quando soube do assassinato de Paulo e o porquê, o velho resolveu intervir.
Bastava já de tantas e tantas besteiras. Precisava recomeçar a vida.
Recomeçar onde e como?
As tias estavam numa quase mendicância, parece que no interior de Minas, Minas não há mais e agora?
Agora restava Jandira, ignorante nas causas e no autor da morte do irmão.
Jandira, companheira, primeiras experiências, as dele, pois ela já se doutorara nas artes e desastres dos prazeres.
Noites quentes, calor embrasador e a boca de Jandira percorrendo todo o corpo, arrepios e prazer, muito prazer.
Pegar Jandira e partir para o mundo, mundo vasto, vasto mundo, Vander e Jandira, estrada comprida...
Cumprira a primeira etapa da viagem, chegou a Espera Feliz, cidade na Zona da Mata mineira.
Pequena e hospitaleira, Espera Feliz acolhera a ambos, sem mais delongas e perguntas.
Começara a trabalhar na colheita do café, ele e Jandira, ambos fortes e sem medo.
Entre os pés de café, a jararaca, o bote, a quase morte.
Soro salvador, quase mata: doença do soro.
Salvo pelo Dr. Ben Hur, médico afamado por aquelas bandas.
Jandira, agora com dois filhos, dois morenos chorões e catarrentos que traziam alegria e medo.
Medo do futuro, mas Deus é bom, dizia Jandira.
Os primeiros sintomas da doença apareceram em pouco tempo.
Cabeça doendo, corpo doente. Intoxicação por agrotóxico.
A vida não poderia ser mais cruel.
Maldita a hora em que Jandira fora pedir a um pai de santo local a ajuda para curar a doença do companheiro.
Paulo, com todas as palavras, dizia através do cavalo onde se incorporara.
-Assassino!
Quem?
-Vander, assassino!
Como?
A perplexidade tomou conta de todos os que estavam no Centro, todos, menos Jandira.
A cura fora completa, o avô interviera com Xangô e tudo parecia estar bem.
A machadada foi perfeita.
Nem o milagroso Dr. Ben-Hur conseguiu dar jeito...

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