segunda-feira, 27 de novembro de 2006

O Vermelho e o Amarelo

Durante minha estada pela cidade de E..., no interior de Minas, conheci uma figura extremamente interessante.
Filho de uma família daquelas que podemos chamar de tradicionais, herdeiro de uma das maiores fortunas em café e gado na região, tinha algumas características bastante marcantes.
A começar pelos cabelos, ralos e precocemente prateados, como se a lua nova quisesse se mostrar mais forte e adiantara um plenilúnio no mínimo interessante. De uma força física inversamente proporcional à sua capacidade intelectual era famoso pelas confusões que aprontara durante a juventude o que lhe dera, além da fama, algumas cicatrizes pelo corpo, principalmente na face.
Isso justificava seu apelido Touro. Pelo menos era o que ele pensava.
Dono de seus trinta e poucos anos Gilberto, esse era seu nome, tinha se casado com uma das mais belas e interessantes mulheres da região, Carminha que, não se sabe se por posição social ou por um destes injustificáveis arroubos da mocidade, resolvera se casar com o famoso brutamontes.
Aliás, isso é extremamente comum entre as adolescentes e as mais jovens.
Com a venda da imagem do príncipe poderoso em miosina e, na maioria das vezes, com baixa quantidade e má distribuição de mielina, são vendidos como o ideal de beleza a ser seguido e conquistado.
Se bem que, na fase inicial da puberdade temos uma quantidade enorme de figuras afeminadas ou, pelo menos, adamadas sendo imputadas às nossas pré-adolescentes como se fossem belas.
Realmente, a maioria destes musos são, fisicamente, mais parecidos com musas; talvez por que a sexualidade feminina a esta época ainda não esteja totalmente definida e a noção do belo ainda está ligada à recém saída infância com seus castelos, príncipes etc... Todos com certo aspecto de feminilidade que, muitas vezes, surpreendem.
Passada esta fase onde os ídolos de Maria do Carmo eram alguns grupelhos nacionais e estrangeiros que faziam algo que, ligeiramente, se assemelhava à música, ela começou a se interessar pelos estereótipos comuns à primeira fase da juventude, onde a noção de macho perfeito para a procriação se resume no aspecto físico já que, emotivamente, ainda não se firmou o discernimento necessário para se fazer uma escolha de melhor qualidade.
Sob essa visão, como posso dizer, trogloditiana da realidade, Carminha encontrou em Gilberto o par perfeito.
O tempo passando e ao ver que não poderia ter feito escolha melhor para os olhos e pior para o cérebro do que aquela, Carminha foi se irritando cada vez mais até que começou a ter crises “de nervo”; ou seja conversões histéricas, o velho furor uterino dos antigos psiquiatras.
Até que, sexualmente, Gilberto não era dos piores embora não sabia o que e muito menos para que servia o clitóris, coisa que, apesar de ter tentado algumas vezes indicar caminho e serventia, deixava Carminha cada vez mais insatisfeita e irritadiça.
Recomeçara a estudar e isso, aliado à eterna insatisfação sexual deram cada vez mais independência emocional e intelectual à bela senhorinha.
Para piorar a situação, o único filho do casal era a cópia fiel do pai, em todos os aspectos; um era difícil, agora dois era castigo e dos piores.
Algumas mulheres com a gravidez se tornam muito mais belas que antes, desabrocham completamente; e esse era o caso de Carminha que, a cada dia, se tornara mais bonita e mais ‘apetitosa”.
Dona de belos e volumosos seios com dois luzeiros amendoados que brilhavam à distância e com formas perfeitas, a cada dia Carminha se tornava mais desejada. O declínio físico do marido era evidente e, apesar da diferença mínima de idade, três ou quatro anos, esta diferença parecia muito maior, fruto das noites passadas entre jogatina e prostitutas em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro, para desespero e ira de Maria do Carmo.
Com a morte do pai de Gilberto a propriedade e os bens da família vieram todos para ele, filho único, e para sua amada consorte que, com ou sem sorte se tornava cada vez mais agressiva.
Por acomodação, como pensava Gilberto, ou por acomodação em outros braços, o que traduzia a realidade, Carminha, da noite para o dia, começou a ficar mais tranqüila e serena.
As crises passaram a se tornar raras e, depois de certo tempo inexistentes.
A causa da cura da bela moça estava há menos de um quilometro do sitio e tinha um nome, Reginaldo.
Advogado cível recém formado e vindo de Belo Horizonte começou a dar assistência advocatícia a Gilberto a respeito de umas disputas territoriais com seu vizinho de cerca, Zé Traíra, conhecido pelas encrencas que criava e pelas qualidades que justificaram seu apelido.
Reginaldo, um jovem louro nem tão bonito quanto Gilberto nem os cantores dos tempos de pré-adolescente, muito pelo contrário, tinha as características que a jovem senhora passara a buscar em um homem.
A mansidão na fala e o sorriso meio carente conquistaram a moça mas, o que definitivamente desarmou-a foi o fato de que, apesar do jeito manso e carente, o rapaz demonstrava-se protetor e muito carinhoso.
Ah! E sabia a serventia do clitóris.


-Bom dia, meu amor!
O sol acabara de trazer vida a casa e, com ele, um sorridente Gilberto tinha acordado e tentava acordar a esposa.
Coitada, as aulas da faculdade iam até tarde e depois havia as reuniões com os tais de grupo de estudos.
Como era época de provas Carminha estava chegando muito tarde, ontem então, passava das duas da madrugada, pensou Gilberto.
Aliás como o estudo estava fazendo bem! Tinha parado de tomar o antidepressivo e dormia calmamente agora. Crise? Nem pensar!
Carminha, entretanto, entre cansada e satisfeita ainda tentava dormir um pouco, se virou de lado e demonstrando ares de cansaço pediu ao marido para que este a deixasse descansar mais.
Embalde!
Gilberto acordara com a corda toda e queria levar Carminha até a cidade para fazerem as compras semanais.
Como ela não tinha mais tempo, era ele que passara a organizar as compras e sabia que o açúcar e o arroz estavam no final.
-Acorda meu amor!
-Ah Gilberto, me deixe descansar um pouco mais, por favor; ontem a gente ficou até tarde estudando para a prova.
-Depois que a gente voltar você dorme de novo, amorzinho...
Esse “amorzinho” era extremamente irritante, fazia-a lembrar das velhas desculpas que o marido tentava arrumar quando chegava de madrugada das casas de prostituição e dos cassinos clandestinos.
Até hoje quando isso não faria a menor importância, a simples referência ao “amorzinho” causava em Carminha certo mal estar.
Mas,fingindo que não incomodava-se com isso e vencida pela insistência do chato do marido, resolveu levantar mas somente depois de um belo “Vá à merda!” soltado com uma exemplar indignação.

Ir às compras era certa força de expressão, já que o que motivava Gilberto na realidade era uma vontade de agradar à esposa passeando até a cidade coisa que, no começo do relacionamento agradava-a, já que a vida de confinamento na roça parecia-lhe extremamente dolorosa.

Pela enésima vez iriam ao mesmo mercadinho que pertencia a um tio de Gilberto, comprar as mesmas coisas, o velho chocolate que Carminha, nos últimos tempos não exigia tanto; o mesmo açúcar, o sal, o arroz e só; já que o resto era produzido no próprio sitio.


- Tudo bem dona Carminha? E o senhor, “seu” Gilberto, como vai?
Encontrar Reginaldo logo cedo não fazia parte dos planos de Carminha e, como fora pega de surpresa, sem maquiagem e dormira pouco, tentou se esconder, em vão.
Empolgado com o que estava acontecendo e com a oportunidade de colocar aspas no famoso Touro, agora literalmente, Reginaldo estava a todo vapor.
Mas Carminha tinha aquele mau humor matinal comum às mulheres mais irritadiças que muitas vezes vem acompanhado da maldita enxaqueca. Como estava abusando do vinho tinto nos últimos tempos, as crises matinais se sucediam e aquele dia prometia mais uma delas.
Às expensas disto, Carminha não respondeu com a esperada gentileza ao cumprimento do amante.
Este, na certeza de que isso não passava de um subterfúgio para afastar as suspeitas do marido traído não se deu por isso e seguiu o seu caminho, sorridente e cantarolando...

Obviamente Gilberto admoestou a esposa, já que os seus negócios estavam sendo administrados pelo gentil advogado.
- Meu amorzinho- de novo! – você tem que ser mais bem educada, quê que o doutor vai pensar?
- Que se dane você e o doutor! Respondeu a mal humorada Carminha.

Com aquela intimidade que somente a cidade pequena e o parentesco proporcionam, o dono do mercado neste momento resolveu interferir no assunto.

- Por falar em doutor, esse aí tá me saindo melhor do que a encomenda!
- Quê que você está dizendo tio Julio?
- Pois é, não é que esse doutorzinho mal chegou e está de caso com uma mulher casada?

Carminha gelou tudo o que tinha direito e mais ainda. Ficou pálida e começou a querer desmaiar tendo que se apoiar no balcão.
Ao perceber a palidez da mulher enxaquecosa, Gilberto associou o mal estar à noite cansativa e o excesso de atividade da querida esposa e logo acorreu, buscando uma cadeira para que a mesma sentasse.
Depois disso, o tio Julio continuou a falar.
- Como eu estava dizendo, estou sabendo que esse camarada está de caso com uma das mais conceituadas mulheres da cidade.

A curiosidade é uma das maiores características do ser humano. Normalmente os machistas atribuem a ela um aspecto feminino mas isso é puro preconceito, ela é generalizada.

Há esse meio tempo Maria do Carmo aflitíssima olhava de rabo de olho para o tio Julio que sem pestanejar respondeu:

-Pelo que eu sei é carm..

Engraçado como em menos de um segundo algumas coisas podem parecer de uma eternidade ímpar, e este era o caso...

Maria do Carmo estava quase desmaiando, certa de que o Touro iria demonstrar ali mesmo o motivo da fama de estouvado e violento que carregara desde a juventude quando ouviu o final da frase;
-...em, filha da dona Maria , aquela que é casada com o Luis Caixeiro...

De repente, de pálida que estava Carminha ficou vermelha, mas quase roxa com um sentimento de ira absurda e de alívio incontrolável.


A partir daquele dia, as crises recomeçaram e Gilberto começou a desacreditar das orações e benzeções que dona Zulmira, mãe de Reginaldo tinha feito para a cura de Carminha...

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