segunda-feira, 24 de abril de 2006

CARMITA LOURES

Maria do Carmo Coutinho Loures, mulher semianalfabeta, católica fervorosa, daquelas que reza o terço duas vezes por dia, que lê a Bíblia todos os dias, filha do segundo casamento de um fazendeiro da cidade de Miraí, MG, pai de 20 filhos, Marcos dos Reis Coutinho; de uma bondade inesgotável; sobrevivendo de um salário mínimo, morando sozinha até os seus 80 e tantos anos, uma mulher mineira, mãe mineira, avó mineira...No quintal de sua casa, menino em busca do pé de laranja lima. Fazendo as traquinagens próprias da idade, chupando laranja no pé e brincando de esperança, pescando junto com meu pai. A casa da Vó Carmita era meu porto seguro; cinema no centro da cidade, filme de Mazzaropi, o Carlitos da minha infãncia.Nos meus sonhos de criança, aprendendo a conviver com a simplicidade deliciosa de uma casa que tinha uma tomada na sala e outra na cozinha. um banheiro único de chão de cimento, com um chuveiro que sempre dava choque transformando o ato do banho num desespero, até porque a energia elétrica da cidadezinha era muito fraquinha e, volta e meia, caia, deixando a água fria escorrer dolorida.Miraí era a pracinha onde brincávamos, sem medo de nada, criança liberta, dona do mundo. Passarinhos e estilingue, mas nunca matei um sequer, ela nunca deixaria.Um dia, seu irmão caçula, ainda vivo, furtou um frango na vizinhança e pediu para que ela o fizesse ao molho pardo; delicioso, mas, na hora do almoço, o pilantra disse que a irmã estava mudada, que, de acordo com seus princípios religiosos, ela não poderia roubar nada, e ela estava roubando; revoltada, ela se ergueu e, pedindo respeito, disse que naquela casa nunca tinha entrado nada roubado, mais que depressa, se ergue o José Coutinho, acabaste de comer o frango que roubei da Margarida; vizinha da esquerda da casa simples.Meu tio Valério, de quem herdei o Marcos Valério, herói de meu pai, também Marcos, que foi pracinha na segunda guerra mundial, lembranças de uma infância feliz.Me lembro da minha avó que, tal qual a mãe de Gorki, escondia O Capital, e vários manifestos aos quais meu pai tinha acesso e não podiam aparecer, já que a opressão era muito forte e ele, diretor de colégio estadual que, em plena ditadura encenou Morte e Vida Severina com seus alunos, na ultra conservadora Muriaé, onde a TFP de Alckimin reinava absoluta, com seus contatos que, na época, me pareciam obscuros, hoje muito me orgulham.Essa mulher frágil, viúva aos 50 anos de idade, católica fervorosa, humanitária ao extremo, tinha, entre seus ídolos, um certo metalúrgico que surgia no cenário do país, em pleno regime de exceção;Petista de coração e alma, socilalista sem o saber, dizia que via por trás daquela rosto barbudo e cabelos desfeitos, os olhos de um homem bom.Em todas as suas atitudes, socialista; acreditava na igreja de pé no chão, tinha muita alegria quando ouvia qualquer coisa relacionada ao Frei Beto, a Dom Helder e a Dom Paulo Evaristo Arns.Na sua doçura, na ternura de seus olhos, na ingenuidade santa de seussonhos, na igualdade de não olhar nem para baixo nem por cima, do amor equalitário e libertário viveu, sem realizar seu sonho de ver o rapaz de cabelos desfeitos e olhar bondoso se tornar o presidente desse país; No dia 21 de abril de 2000, numa sexta feira santa, o céu católico comemorou a entrada de mais um anjo. Segundo me dizem, foi uma festa fantástica. Hoje, com certeza apreensiva, com as artimanhas dos anjos do mau, mas com a esperança renovada da vitória do bem sobre as sombras, o coração socialista dessa mulher forte em sua fragilidade, torce para que a vida dos humildes, como ela, não seja só uma abertura para o reino dos céus, mas a concretização da dignidade do ser humano nessa terra, nossa terra...

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